A partir dos espetáculos assistidos, das conversas realizadas e dos textos criados para a Edição 3 d’Esse texto
Começar pela ideia dos fantasmas. Imaginar sua possibilidade, cientes de que o lugar que os guarda e expõe é uma história. Considerar que você, espectadora, sentou-se diante de um palco para ver uma história; diante de um arquitetónico livro, eis você, leitora, a ler uma história. Um convívio entre literatura e teatro. Imagino mais, caro amigo, imagino que sobre este palco arde uma lareira. Mesmo sem vê-la, ainda que nela não se queimem as personagens, o palco emana algo invisível para umas, mais evidente para outras. Este algo ou o mistério e seu chamado, ou a fagulha de um gesto pequeno-incendiário. Sentado diante de Sombras, pinçando desse espetáculo algo que o faça continuar a crepitar, o que você me faria imaginar?
Começaria assim, amigo: uma mãe e uma filha. A primeira, imbuída dos valores familiares moldados pelo Estado Novo português, acolhe a segunda que, com o marido preso e uma recém-nascida nos braços, é forçada a regressar ao lar de infância. Ali há sombras da ditadura, da morte, da tortura, do medo. A imagem que paira é essa: são duas mães a pensar sobre o que pode assolar o futuro de suas filhas. Diante de Sombras, tenho essa estranha sensação de estar diante de um texto antigo; não apenas por evocar um passado histórico, mas por contar uma história a partir de uma dimensão formal pedagógica.
Tenho certeza de que com essa expressão, "dimensão formal pedagógica", ainda não sei o que quero dizer. Mas uma das minhas coisas preferidas aqui, entre as nossas trocas e conceções para a nossa revista, é justamente essa: jogar uma ideia amorfa, uma intuição, uma pista, para que, juntos, possamos desdobrá-la.
Pensando na ideia dos fantasmas que, de algum jeito, inaugurou essa nossa terceira edição, faço uma conexão entre esta peça e sua tentativa de revelar seus próprios fantasmas. No caso, são fantasmas históricos de um país, que assombram o presente e o futuro. Ela não nos convoca a desaprender uma verdade histórica, mas sublinha um aprendizado em que não cabem dúvidas. O medo do futuro está sendo dito, não sentido. A dramaturgia tenta me ensinar a contar uma história.
Como você sente essas palavras? Ou melhor, você que não viu Sombras, a partir dessas poucas palavras, como imagina esse trabalho?
É intrigante imaginar o que não foi visto. Suas palavras me fazem procurar: aquelas duas mulheres, a proximidade dos seus rostos, suas inquietações. Sinto uma leveza provocada pela ausência masculina no palco, mas o medo, paradoxalmente, continua a assombrá-las. O assombro, as sombras. Porque, mesmo sem a presença de homens, o medo persiste? Penso no trabalho de um escritor, na sua paixão pelos hábitos, a paixão por fantasmas históricos, e como essa paixão dificulta a possibilidade de escrevermos outro texto.

Quando mencionas a "dimensão formal pedagógica" de Sombras, penso sobre um teatro aprisionado em determinados modos de fazer. O medo que é "dito, não sentido" é consequência inevitável desse hábito no fazer: ele aparece nas palavras, mas não provoca corpo – seja o da atriz ou o nosso, como espectadoras. É um medo intelectualizado, emoção apenas nomeada. A metáfora da ponte, construída no segundo texto crítico desta edição, ecoa: Sombras me parece erguido sobre uma travessia inacabada, o presente condicionado pelo peso do passado, o futuro obrigado a ser frustrado. Mas não há futuro porque não foi possível ou porque o autor não quis? Qual diferença entre fatos da vida e atos de uma dramaturgia?
Também no segundo texto desta edição, especulamos que lembrar não é um simples ato de arquivo, mas de invenção. E talvez o que Sombras me impeça, enquanto imagino o espetáculo diante de mim, seja inventar novos modos de atravessar a história já contada. Da mesma forma como a história recente de Portugal não acaba ao ser contada, será que o medo desaparece simplesmente por ser nomeado? Com isso em mente, seria possível, caro amigo, que você descrevesse um ou dois momentos de Sombras, valorizando a dimensão espacial e visual dos acontecimentos escritos no palco?
Antes desses convites, amigo, gostava de reverberar esse seu pensamento sobre um teatro aprisionado em determinados modos de fazer. Pareceu-me estranho, de repente, que a ideia da “dimensão formal pedagógica” nos levasse a essa compreensão. E isso tem necessariamente a ver com algo que esta edição tem investigado: o binômio aprender x desaprender. Podemos tirar daí uma primeira conexão fragilizada entre pedagogia (ou formação artística) e “aprendizado” de como fazer. Como se “aprende” modos de fazer? (Onde ou como terão nos ensinado um modo de fazer?). Ou ainda, completando: como se “aprende” modos de fazer, uma vez que cada matéria, cada contexto, cada tema prescinde de um modo próprio e íntimo?
Sinto Sombras nessa problemática: aprisiona-se o medo do passado no passado e, de modo análogo, as convenções dos modos de fazer teatro me impedem de trazer aqueles momentos para perto de mim. (Aliás, há tempos não pensava nessa palavra: “convenções”). Preocupo-me com a sensação falsamente aliviante que me diz “que bom que esses já são tempos idos”.
Aquela experiência, em mim, é uma ilha isolada: tem um começo, um meio, um fim. E realmente acaba. Não permanece comigo, não sai daquele teatro agarrada ao meu corpo, não atravessa as ruas, não me acompanha até a minha casa. Fico imaginando, agora, que essas duas palavras (“fantasma” e “ponte”) que estão em ronda nesta edição, possam formar uma imagem interessante para o pensamento sobre pedagogia e formação artística.
Volto, então, aos seus convites com essas duas palavras na cabeça. O primeiro momento que gostava de descrever é o instante em que sentamos na cadeira da plateia, respiramos fundo e começamos a tatear com os olhos o que é aquilo, o que pode vir daqueles objetos, daquela figura já em cena. E minhas primeiras respostas não são variadas: é um passado facilmente percebido como passado. Uma casa antiga, objetos antigos, sons antigos, de um telefone antigo, gestos antigos, dos dedos a rodarem os números para uma ligação telefónica antiga. E assim seguiremos: uma mãe dura e conservadora nos sinais, elegantemente composta para ser uma figura fechada, de poucas afetações. Diante da chegada surpresa da filha, nem mesmo com a presença também surpresa da neta recém-nascida, ela desestrutura sua pose. Parece não haver fantasmas suficientes para assombrá-la.
O segundo momento que gostava de descrever é o momento em que a cenografia da casa se reorganiza para dar lugar a um ambiente hostil de aprisionamento. A filha termina presa pelas suas ações clandestinas e revolucionárias. A iluminação é avermelhada, a mãe revela que acompanhou as peripécias rebeldes da filha por estar em contacto direto com autoridades de polícia. Algo ecoa nessa traição intergeracional. Nesse momento, a transição cenográfica aprofunda ainda mais o abismo entre passado e futuro: as possibilidades de pontes entre tempos encerram-se com a alusão à desistência da filha em permanecer naquelas condições de aprisionada. Ela mesma não consegue imaginar outro futuro; e eu, diante daquela recusa, encerro a minha participação na história.
Instigado por esse seu convite descritivo, amigo, fiquei querendo te perguntar (ou também te convidar a pensar) na conexão entre essas duas palavras diante de nossa mais recente edição: pontes e fantasmas. Se você pudesse inventar uma imagem com essas duas ideias, como ela seria?
Permito-me imaginar que fantasmas são pontes e que estamos a atravessá-las. Seja com os pés no chão, com as pegadas do pensamento, com os batimentos do coração. E pontes são fantasmas pois nos assombra a possibilidade de sermos transformados, de não estarmos prontos, assombra-nos a insegurança de não sabermos integralmente algo. Quando especulamos, no terceiro texto desta edição, que “[…] é importante que as salas de aulas tenham muitas janelas”, creio que antevíamos a janela como uma moldura pela qual vemos o movimento. Aqui, para nós, o movimento é o emblema da transformação. E se fantasmas são pontes é porque, insistentemente, convocam-nos para atravessá-los, ou seja, para nos dedicarmos ao movimento da nossa própria transformação.
Fantasmas são pontes porque fraturam a estabilidade do espaço, ora sendo verticais, para o fundo e ao dentro, com degraus derretidos, escorrimentos, ora sendo pontes que nos escorregam por anos, num instante, são pontes fantasmas por serem convites para o emaranhamento entre tempos; do mesmo modo como só são pontes se forem movimento, você já viu um fantasma parado, caro amigo?

Voltemos ao dilema da expressão “dimensão formal pedagógica”. Aqui, rememoro que a criação de novos modos de fazer, como afirma um importante dramaturgo brasileiro, é resultado compulsivo da necessidade de expressão temática e não somente a procura artificiosa de novas formas: “a originalidade como sofrido ponto de chegada, e não ponto de partida.” Quando ouço “dimensão formal pedagógica”, no caso de Sombras, não entrevejo nem a fundação de um novo modo de fazer nem sequer a repetição de modos já estabelecidos ou reconhecíveis; sinto um enrijecimento da intenção pedagógica. Trata-se de um relato conclusivo ou de um convite à experiência das contradições que sustentam os ditos factos históricos? Em uma peça de teatro, existe a possibilidade de vermos uma questão através de um ponto de vista que escape ao senso comum? Em uma peça de teatro, existe a possibilidade de algo ser transformado, ou seja, há nesse teatro algum movimento? Faz pensar que o binômio “aprender x desaprender” deva ser ultrapassado enquanto oposição para ser reescrito enquanto adição: aprender + desaprender, afinal, aprender pressupõe desaprender, e desaprender propulsiona o aprendizado. Se a pedagogia artística está mais preocupada em ensinar do que desensinar, perdemos. Perdemos a frágil e delicada perceção do gesto artístico como incessante exercitação do posicionar-se: assumir posição, criar uma forma provisória, não total nem totalitária; tomar outra posição, compor outra resposta contextual ao desafio diante de mim. Aprender como fazer arte, aprender arte no gerúndio, movimento e transformação.
Entre fantasmas, pontes, janelas e saberes que escapam, amigo, queria te pedir que olhasse para a nossa revista. Você conseguiria identificar três fantasmas que a revista esteja a cruzar neste momento?
Meu primeiro pensamento, amigo, foi identificar a nossa prática a partir de três movimentos que nos assombram sempre, fantasmas que estamos sempre a cruzar, a cada texto, a cada edição.
O primeiro fantasma mora na sensação da edição. Quero localizar a sensação da edição no nosso gesto primordial para a construção de um texto: a escolha. Todos os nossos textos nascem “a partir” de algo; são textos, assim, interessados em investigar como a escritura artística desse algo convoca a continuação de outras escritas. Um ponto de partida, no entanto, é imprescindível. Ele é qualquer? Ele, por si, já carrega uma intenção? Digo isso porque nossa terceira edição é a primeira a desvendar-se num tema, num assunto que funciona como uma ponte-fantasma (fantasma-ponte?) que nos ajuda a caminhar.
O segundo fantasma mora na sensação da leitura. Essa, por sua vez, já está localizada no corpo que vê, no corpo que usa o tempo que tem para ser leitora de algo. No caso, os nossos corpos. O que é uma leitora? O que usa uma leitora ao ler? E o que mais ela faz que não apenas ler? Sempre achei instigante a nossa posição-leitora: não aquela que espera pelo texto a ser lido, mas aquela que cria enquanto lê.
O terceiro fantasma mora na sensação da escrita. É quando a leitora precisa escrever aquilo que leu. Mas como ela escreve uma leitura? Como ela escreve aquilo que escapa da leitura e que, ainda assim, parece querer continuar? É o fantasma que cruzamos quando assustamos o próprio fantasma, ao transformar leitura (por escrito) em mais leitura (por escrever): prolongar a vida do processo artístico, a partir do texto que se escreve.
Por fim, não acreditamos no texto crítico como armadilha para esses fantasmas, nossos textos críticos querem celebrá-los; afinal, o que os fazem ser o que são é exatamente esse instinto incapturável que partilham, seus formatos incompletos, escorregadios. É como sentir a presença de algo sem vê-lo. Ou perceber que quando encontramos o nome de algum sentimento, ele escapa e não está mais lá. Sinto, às vezes, em muitas críticas que leio por aí que elas intencionam capturar os fantasmas e exibi-los como uma descoberta. Descobertas, eles jamais serão porque ali já estavam – e tampouco podem ser capturados. Nossa tarefa é seguirmos permanentemente assombrados.
PROGRAMA DE ESCRITA
Gustavo Colombini assistiu ao espetáculo Sombras, com dramaturgia de Miguel Falcão e encenação de Ana Nave, no dia 6 de outubro de 2024, às 19h, na Sala Estúdio do Teatro da Trindade, em Lisboa. De 9 a 30 de outubro, através de um documento de texto compartilhado, Colombini e Diogo Liberano escreveram um diálogo a partir do seguinte esquema:
Liberano pergunta a partir do primeiro texto da edição;
Colombini responde a partir de Sombras e faz uma nova pergunta;
Liberano responde a partir do segundo texto da edição e faz uma nova pergunta;
Colombini responde a partir de Sombras e faz uma nova pergunta;
Liberano responde a partir do terceiro texto da edição e faz a última pergunta;
Colombini responde.
Por fim, em 31 de outubro, os dois finalizaram juntos esse texto.
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