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Com cão e espirro

  • Foto do escritor: Esse texto
    Esse texto
  • 21 de mai.
  • 8 min de leitura

A partir de Crocodile Club, do Teatro Oficina



Sexta, 9 de maio de 2025

23:25 – Lindeza, amei ver vocês, mas saí correndo, tenho aula amanhã cedo!

23:26 – Conte-me tudo! Desta peça,

23:27 – ai quero saber tu!!! que achaste?

 

Sábado, 10 de maio de 2025

13:04 – Oi, meu amor. Desculpa, mandei mensagem ontem, depois me enrolei com coisas. Como foi para você a experiência, como foi para vocês? É… É o velho dilema, né?, assim… Como compor, escrever e criar uma crítica à extrema-direita ou à direita sempre extrema. Que não seja por meio de um simples deboche ou por uma reunião de piadas, né? Piadas racistas, piadas misóginas e por aí vai. Eu fiquei com a sensação de que é mais uma peça que não consegue ir além da piada, ainda que ela traga, sem nenhuma dúvida, um desejo de investigar uma poética quase de um filme de terror, de horror, de terror. Nesse sentido, o espetáculo me pareceu interessante. Ah… Enquanto investigação da poética do horror, do terror, dos filmes de terror, me pareceu legal, divertido, é um plano sequência no palco, a gente vai vendo ali tudo na nossa frente. É uma investigação muito meticulosa, eventualmente menos, e isso me interessou enquanto experimento cênico potente, assim. Dramaturgicamente, assim, a coisa da extrema-direita, para mim, resulta um pouco, eu fico um pouco com o pé atrás, sabe? Estou um pouco cansado de fazer deboches sobre a extrema-direita, eu acho muito mais sério do que ficar repetindo piadas racistas, ou misóginas, ou qualquer coisa desse teor. Me fala o que você achou, por favor.


    G.O.L.P. - Fotografia de Maglio Pérez
Crocodile Club - Fotografia de TNSJ

Domingo, 11 de maio de 2025

14:07 – Meu amor. Olá, também, entretanto, não te consegui responder. Resolvi agora o teu áudio e, tenho a mesma sensação que tu. Acho que\ Ai, cãozinho. Desculpa, está aqui a passar um cãozinho. Desculpa, é um cão muito giro. OK, desculpa, então, senti que esta pincelada na extrema-direita, ou seja, esta, esta, passar por cima do assunto, passar por cima no sentido de só fazer assim uma referenciazita jocosa, pá, já, também já não me interessa. Acho que é preciso trazer o tema de uma forma muito mais concreta e afirmar de que lado da barricada é que tamos.  E não ser só assim ao de leve. Ui, vou espirrar.

14:11 – Desculpa, tive que espirrar. É isso, senti que foi assim muito, pá. Preciso que sejam mais concretos. Aquilo que querem trazer, concretos de assumir a seriedade de que trazem para palco, de que lado é que estão, estás a ver? Claro que eu sei qual é o lado, mas parece-me que está a ser abordado a medo. Eu saí de lá a rir-me, ou seja, acho que foi essa, acho que foi esse o resultado para mim. Não foi, tipo, vi um espetáculo político. Vi uma cena gore, isso achei fixe. Nunca tinha visto em teatro uma cena tão gore, essa coisa fantasmagórica, nunca tinha, nunca tinha visto, isso achei muito fixe. Como é que fazes para trazer o imaginário que temos sempre nos filmes de terror para uma caixa de palco, achei isso muito interessante. Achei que vi imagens de vídeo durante demasiado tempo. Achei que estava sempre a olhar para cima e preferia que eles me obrigassem a não olhar tanto, ou seja, que havia momentos atrás da cena que sim, que era, que era fixe termos ali o vídeo, ou então não, se calhar deixar no imaginário também podia ter sido fixe ou arranjarem outra solução. Agora, de repente, tudo o que tá a aparecer ali no primeiro plano da cena também tá projetado em cima e eu tive constantemente a sensação de “para de olhar para o ecrã e olha para a cena”, sabes? Não sei se isso aconteceu. Tive isso.

Porque, pronto, mas o cinema é fixe, dá-te detalhes que o teatro não dá, mas o teatro dá-te outras coisas e eu fui para ali para ver isso. Tenho assim uma relação um bocadinho. Bem, eu estou a perceber qual é o meu, a minha sensação a ver vídeo em teatro. Agora, quando de repente entra tanto, aí já me custa, aí já me já fico, tipo, espera aí, “eu não vim ver cinema”, sabes? Já entra, pronto, para mim, já foi demais o que o recurso que eles, o que eles, o quanto eles recorrem ao vídeo, para mim, foi demasiado. Mais. Acho que o elenco notava-se muito a diferença, de quem é que tem realmente arcabouço e de quem não tem? Acho que eles foram todos muito fixes, mas uns muito, muito fixes, e outros só fixe. Por exemplo, a política não achei nada de especial. Até no início achei que estava muito nanananananã. E sinto quando entra a irmã, que o palco fica mesmo bu!, aí parece que a cena começa. Tive essa sensação, mas pode ser muito influenciada pelo facto de conhecer a atriz. De outros, de outros trabalhos, não é? E já tem muito bem na memória, mas é isso, fiquei um bocadinho aquém, ou seja, aquilo para mim foi fixe, foi, foi uma, um serão fixe, é isso, mas não foi mais do que isso. Não foi tipo “foda-se, que power, vou sair daqui e vou falar sobre isto! Vou sair daqui e falar da importância da extrema, de, de combatermos a extrema, sabes? Não são assim, olha que giro, vi um espetáculo de terror, nunca tinha visto. Acho que é isto, mas concordo plenamente quando dizes essa. Essa questão de estou cansada de ver esta abordagem de ser jocosa e de repente temos que ir buscar o preto, o gay, a mulher, pronto. Temos que ir por aí, pá, acho que já não temos que ir por aí. Acho que, acho que já, já chega de irmos por aí. Já não, já não chega. Ai que horror, não basta ir por aí. Precisamos de, de ser mais declarados quando é que temos que ir. Acho eu, estou a pensar nisso um bocadinho por alto. Desculpa, isto já está muito longo, parece um podcast! Beijinhos.

 

Segunda-feira,12 de maio de 2025

10:09 – Oi, meu amor, bom dia. Espero que meu áudio não venha com muito barulho, que eu estou caminhando aqui em direção à casa. Ah… Eu adorei te ouvir. Obrigado. É… Foi um depoimento, assim, se você quiser, a gente pode transformar ele num texto e publicar, mesmo que, se você preferir, no anonimato. E falo sério, acho, acho uma maneira gostosa de pensar o espetáculo, sabe?, assim, é uma fala, uma sensação. Eu estou muito de, de acordo com tudo que você diz, acho que você foi até longe em algumas, ah…, sensações e elaborações. É… Eu concordo totalmente, foi o que eu tentei manifestar no meu áudio. Estou muito esgotado da posição que o artista ocupa, né? Ah…, esse grupo de artistas. Ah… Vamos dizer assim, eles são, eles são melhores, né? Eles não. A crítica não bate neles, eles é que criticam. Isso é muito ruim, porque você fica assim, gente, é tão simples a crítica de vocês, porque não é uma crítica, é um deboche. Ah… Eu preferiria que fosse só um filme de terror, ou seja, uma peça de terror. Não precisava falar da extrema-direita, porque o modo como é falado me soa emburrecedor, né?, simplificador. Acho que alimenta ali uma maneira de criticar muito cansativa, muito ensimesmada e concordo, acho que a experiência fílmica é exaustivamente cansativa. E já é moda, né? Eu fui assistir um outro espetáculo, ah, há tantas semanas no Teatro Carlos Alberto e, pelo amor de Jesus, eu tive que lutar para conseguir olhar para baixo, para a cena, porque eu não parava de olhar para cima, tendo em vista a cultura em que nós vivemos, né? Das imagens e por aí vai. Então pronto, vamos publicar essa sua, esse seu depoimento, me fala, eu transcrevo tudo, incluindo o cão e o espirro. Beijo. Bom dia.

11:32 – se for com cão e espirro, vamos ❤


As Bruxas de Salém - Fotografia de TUNA/TNSJ
Crocodile Club - Fotografia de TNSJ

Quarta-feira, 21 de maio de 2025

09:57 – Tal pensamento deriva diretamente de breves palavras na folha de sala do espetáculo Crocodile Club. No texto Escatologia, paródia, desencanto e resistência, o professor, autor e dramaturgista Rui Pina Coelho, ao abordar o trabalho de Mickaël de Oliveira, destaca a sua escrita como um trabalho repleto “de ironia, densidade filosófica e humor ácido”.


Tal formulação abre-nos um problema maior que parece não caber num espirro: será que a ironia e o humor ácido ainda constituem forças críticas?


Sistema e História.


Pensar, por exemplo, no sistema ósseo de um corpo. Ele é feito de suas partes (seus órgãos) e, por definição, eles trabalham em conjunto visando dar sustentação ao corpo. No entanto, se pensarmos artisticamente, não é apenas a função de um sistema aquilo que garantiria a sua relevância ou importância num organismo.


Pensar, por exemplo, no que determinada época histórica provoca nos ossos de um corpo. O organismo agora torna-se social e, mais do que somente desempenhar funções predefinidas, sendo social, está sempre vinculado ao que lhe é externo, sendo influenciável ao que escapa às suas intencionalidades e desejos.


Será, portanto, que ainda podemos pensar num género artístico como um sistema alheio à história? Será o humor ácido uma categoria já acabada e invariável, a ponto de ser indiferente ao contexto em que opera?


Reacordar.


Pensamos sobre a ironia. Consideramos que a ironia tenha por pressuposto falar com nossos pares, ou seja, eu preciso que a outra – com quem eu falo – saiba daquilo que estou falando para que ela entenda aquilo que não estou dizendo. Ou ainda: eu preciso que a outra – com quem falo – saiba do que não estou falando para que entenda o que estou dizendo.


Podemos partir de uma pressuposição que, no entanto, não temos a certeza se existe? A ironia, assim deduzimos, só funciona com os pares e o teatro não é, feliz ou infelizmente, um espaço onde todas que ali estão partilham do mesmo repertório (de vida, de palavras, de densidade filosófica, de experiências vividas, de condições de vida…); é preciso renovar os acordos a cada noite.


Quais ignorâncias, indiferenças, quais esquecimentos acerca dos dias que correm, precisam ser interiorizados para que a artista continue podendo encenar seu deboche? O deboche salva-se a si mesmo, egoísta que ele é.


E quem salva nossa época?


Em que época estamos para que alguma acidez ainda seja desejada e possível?


12:01 – Acordar.


PROGRAMA DE ESCRITA Diogo Liberano assistiu ao espetáculo Crocodile Club no dia 9 de maio de 2025, às 21h, no Teatro Nacional São João (Porto); de 9 a 12 de maio, trocou mensagens de texto e voz com uma amiga que também assistiu ao espetáculo naquela mesma noite; de 14 a 18 de maio, ele transcreveu as mensagens de áudio e escreveu uma primeira versão que, de 19 a 20 de maio, foi lida e teve palavras e trechos pintados de branco por Gustavo Colombini; por fim, no dia 21 de maio, os dois escreveram o último trecho e finalizaram juntos esse texto.

Crocodile Club Texto e encenação: Mickaël de Oliveira | Desenho de vídeo e cinematografia: Fábio Coelho | Cenografia e figurinos: Pedro Azevedo | Desenho de luz: Rui Monteiro | Apoio coreográfico: Cristina Planas Leitão | Sonoplastia e composição: Sérgio Martins e Rui Lima | Caracterização: Catarina Santos | Direção de produção: Gabriela Cavaz (Colectivo 84) e Susana Pinheiro | Produção executiva: Héloïse Rego (Colectivo 84) e Hugo Dias | Interpretação: Afonso Santos, Bárbara Branco, Beatriz Wellenkamp Carretas, Fábio Coelho, Gabriela Cavaz, Luís Araújo e Inês Castel-Branco | Participação especial: Eduardo Breda, Francisco Ferreira e João Tarrafa | Produção: Teatro Oficina e Colectivo 84 | Coprodução: Teatro Aveirense e Teatro Nacional São João | Parceria de criação e apresentação: Fábrica ASA, Centro Cultural Vila Flor e Teatro Académico de Gil Vicente

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ISSN 2976-0240

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