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Esse texto

Esta não é uma história que acaba ao ser contada

A partir de uma conversa com Axelle Ribeiro, aluna do Mestrado em Estudos Artísticos da Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra



Seria preciso calma para refazer o caminho percorrido e se posicionar, outra vez, no instante que hoje julgamos já ter ultrapassado. É lá onde você está agora. Outra vez você, um pé no início de uma ponte. Não sabemos se esquerdo ou direito. Não sabemos se, ao falarmos “pé”, isso significará você inteira. Mas lá está você. Esse texto começa com esse convite: tente ver a si mesma através dessa distância. Suponhamos, então, que você esteja inteira, apesar do desnorteio característico daquele momento [aquela ponte].


— Não me disseram exatamente para onde ir, com quem falar, deram-nos boas-vindas, mas esqueceram de falar que muito não seria dito, bastante não seria explicado, que seria preciso descobrir pelo caminho, o que era óbvio, mas óbvio para quem? Acho que foi por conta disso que desenvolvi esse hábito de sempre chegar um pouco mais cedo… — ela disse, com seus olhos mais lá do que aqui.


Esse susto: estamos desnorteadas, mas o caminho também está. Será que nosso desnorteio, naquele momento, nos impede de ver o desnorteio do caminho? Aquela sensação da "escolha de um caminho para a vida". Pensamos que não haveria problemas no caminho, que o problema – caso viesse – viria apenas de mim, eu, caminhante.


Por isso seria preciso a calma. A calma de quem confia que lembrar, sobretudo, é não conseguir. Lembrar seria mais invenção do que arquivo ou documento. E temos os documentos, guardados ou amassados, digitais ou corrompidos. Mas por que desejamos lembrar daquilo que já não temos?


Quando esteve tomada pela rotina daqueles dias, o que ela fez foi exatamente o [que seria considerado] necessário. Seu agir nasceu tanto do desejo de aprender quanto do movimento da ignorância manifesta em cada passo dado. Seu ímpeto nasceu, por assim dizer, de um desejo que desconhecia espera. Era preciso escolher em quais cadeiras sentar. E, mais que isso, era preciso descobrir outro verbo para uma cadeira que não apenas sentar. E ocupada tal como esteve, ela sequer percebeu o quanto seus pés deram passos e mais passos ponte adentro.



— Gostaria de continuar […], mas gostaria urgentemente de uma […] — ela disse e, por assim dizer, as palavras, tal como tijolos ou pedras, imediatamente puseram-se a abrir outros caminhos. — No mundo académico, gostaria de, mas gostaria urgentemente — Urgentemente, de uma pausa, mas no mundo — Gostaria de uma pausa no gostaria — Académico, pausa, continuar, gostaria — De continuar no mundo urgentemente — e, após tantas pausas, ouviríamos ela dizer: — Estou a terminar meu mestrado e não me sinto preparada para nada.


Pontes que não se veem, mas que são atravessadas [com a mesma ignorância daquilo que nos atravessa]. Surgem entre um passo e outro, onde o chão parece sumir e o ar se torna um pouco mais espesso [e não estamos a falar de aprendizados, nem anteriores ou posteriores]. Caminhamos sobre elas sem saber para onde seguem, mas quem disse que precisávamos saber de antemão? Talvez o destino seja uma invenção que criamos para aliviar o mal-estar com a indefinição do que é estar viva [mais dura, menos desenvolvida, mais poeticamente viva, menos na mesmidade].


Pegue o lápis e, suavemente, deixe-o deslizar pelo papel branco, traçando uma linha curva. Esboce o focinho, desenhe o contorno do rosto. Use a borracha para ajustar os traços, suavizando até que o animal ganhe forma, pronto para saltar do papel [ou não]. O coelho não precisa saltar [da ponte]. Porque salta, não quer dizer que isso é apenas aquilo que um coelho possa fazer [comer]. O coelho está tranquilo, ele teve uma boa refeição ao almoço [e não foi cenoura]. O coelho não vai saltar, já você, você talvez precise de outra borracha.


O susto seria perceber — e aceitar — que se tratava, diariamente, de cruzar a ponte. E que a ponte não era apenas da profissão, mas [nem tão somente a] da vida. O susto seria aceitar — e reconhecer — que pontes não são feitas de espaço ou de tempo, mas de propósitos. Um propósito é coisa medida por métricas dispendiosas [fazer arte, coisa dispendiosa]; propósitos não se dão bem com mais-valias.


— Fiquei com a sensação de que não estou na ponte, numa ponte em si, mas que estou em ponte, eu estou em ponte, faço-me perceber? — é evidente que sim.


Num dia esquecível, ela teve a sensação de que o seu caminho estava encerrado. Alguns pensamentos são becos sem saída. Pensou que não havia nada a ser feito, pensou na família, noutras profissões, em assistir a um filme ou série, em não ler por tantos dias [ou semanas]. Ela pensou que fazia tempo que não tantas coisas [enviar relatório do estágio]. A ponte diante dela, naquele dia, dentre tantos papéis, cadernos e livros pelo quarto, tinha a medida da procura e do reencontro com um antigo desenho a lápis [e muita borracha] feito na adolescência.


Nessas travessias, encontramos o que não procuramos. Uma flor na rachadura do betão é imagem cliché porque repete-se incessantemente na contundência daquilo que ela própria revela; sim, será ali mesmo, justo onde não esperamos, que nascerá algo querendo viver.

Naquela noite, enquanto as luzes do quarto contrastavam com o brilho do ecrã, ela assistiu a um documentário que afirmava que as pontes deveriam ser bonitas. Engenharia, construção civil, alturas, taxas de suícidio [enquanto resvalava a pensar no que uma Universidade constrói, na construção da sua civilidade, enquanto resvalava]. Pontes de aço ou concreto, revoluções na história das civilizações, incríveis, mesmo que pequenas quando diante daquelas que unem pessoas e átomos, células e corações. Não seriam sempre físicas, ela confirmava, mas estariam sempre entre.


— E eu vou tentar escrever esse texto, que é o meio do caminho entre o que você está trazendo e como eu me encontro com você — ele disse, confiante na névoa do caminho, no bosque que parecia ser aquela conversa.


Há uma ponte à frente, mas a frente é sempre para onde olhamos. Olho para dentro e lá está uma. Olho para trás, outra frente. A ponte não está num ponto específico. Não é bem feita do tempo. É ponte vertical e seus degraus parecem empilhados em si mesmos; é ponte horizontal e seus degraus parecem deslizar para dentro de si mesmos. A imagem dessa ponte-ilusão-de-ótica. Quanto mais caminha por essa ponte, mais você desce e simultaneamente subiria; essa ponte é a profissão que você escolheu. A imagem dessa ponte-ilusão-de-ética.

Foi o esforço de lembrar – exigido no depois – que inventaria essa construção que convencionamos chamar de ponte [a tríade passado-presente-futuro aborrece a possibilidade de uma relação outra – e melhor – com a vida].


Esta não é uma história que acaba ao ser contada. A parte longa de cada história são as tentativas, mas estas quase sempre são substituídas por certezas apressadas. Tentativas demandam a carne dos espaços. E o bonito delas é que sabem acabar. Tentativa é tijolo, palavra. Poderíamos construir um abrigo [moletom] por tanto tentar. Ainda assim, no meio da praça, livre e esvoaçante, olha ali outra tentativa.



— É um diálogo — ela afirmou como quem sugere, sugeriu como quem já soubesse.


E mesmo quando você pensa em saídas, em terminar ou defender algo, ainda assim, você estará na ponte, sem saber se ponte é um ponto no espaço ou se ela é você. A imagem da ponte não oferece outra saída, senão o outro lado dela própria [não se esquecer da possibilidade do salto]. Mesmo com bifurcações, tripartições, uma vez dentro da ponte, é ela que determina por onde você sai, caso escolha sair. [Mais tarde, se o mundo precisasse de outro nome, você sugeriria que ele fosse rebatizado como Planeta Ponte. Mais tarde, se o mundo precisasse, você sugeriria Planeta Fuga].


Chegar mais cedo a um compromisso que você poderia simplesmente faltar, escreveu um filósofo, seria um modo crítico de pertencer ao nosso tempo. Aderir ao tempo, mas a ele resistir, oferecendo ao tempo que corre alguma resistência mais lenta. Mesmo que chegar com antecedência não seja em si um grandioso evento, ainda assim, é um tijolo ou vértebra [inebriada pelo pensamento-ponte] na cadeia dos acontecimentos.


Certos fenómenos não estão presos a um sítio específico, mas se manifestam ou têm influência em múltiplos lugares sem depender de qualquer proximidade física. Quer dizer que aquela travessia pode continuar depois e para além dela; que a construção profissional não começa ali nem lá se encerra; que os encontros já tidos ainda podem ser visitados e celebrados [em qualquer ponto de qualquer ponte, seria preciso calma para refazer o percorrido e se posicionar, outra vez, no instante hoje ultrapassado].


— Só depois […] é que voltei a desenhar um pouco. Por exemplo, tenho aqui […] um dos melhores que fiz até agora e não faço ideia como desenhei […] não sei mesmo. E muitas vezes as pessoas costumam dizer que eu desenho muito bem. Eu não desenho bem, porque não aprendi técnicas. Eu aprendi pela experiência. Essa foi a primeira experiência que tive de “eu criei algo” […]. Lembro que usei muita borracha, muita […] e quando comecei a perder esse medo de “eu não consigo fazer as coisas bem” e comecei a fazer algo, percebi que “eu sou capaz”. Era um medo que eu sentia, das minhas experiências anteriores, que me dizia que eu não conseguia fazer […].


 

PROGRAMA DE ESCRITA

Diogo Liberano realizou uma conversa com Axelle Ribeiro no dia 7 de agosto de 2024, às 14h30, via Zoom, ele no Porto, ela em Coimbra; de 8 a 18 de agosto, escreveu uma primeira versão desse texto; de 19 a 26 de agosto, tal versão foi lida e comentada por Gustavo Colombini; de 27 a 29 de agosto, Liberano retrabalhou o texto; por fim, em 30 de agosto, os dois finalizaram juntos esse texto.


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