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Falhar o género

  • Foto do escritor: Esse texto
    Esse texto
  • 24 de jun.
  • 7 min de leitura

A partir de King Size, de Sónia Baptista



Só para nos localizar, estamos nos Jardins do Bombarda, em Lisboa. Acabamos de assistir ao espetáculo King Size, com criação e direção de Sónia Baptista, e não nos conhecemos, correto?

Correto.

Consideras-te um homem?

Não percebi.

Um homem. Posso assumir que tu te consideras um homem?

Sim, pode sim. Sou um homem.

Qual é o teu nome?

Podemos seguir sem nomes?

Sim, claro. Não há necessidade de identificação.

Afinal, somos homens. Podemos seguir.

Creio que possa ter a ver com o que acabamos de ver no espetáculo, talvez?

Essa confiança?

Não, este gesto de autocentralização que tu fizeste com as mãos.

Qual? Este?

Sim, este mesmo.

Creio que sim. Bem apontado. Durante o espetáculo passou pela minha cabeça que fosse preciso certa identificação com aquele masculino para haver uma desidentificação, compreendes?

Fala mais sobre isso.

Temos essa ideia da construção da masculinidade, os mitos masculinos, os gestos masculinos, o corpo masculino. O homem medíocre, a caricatura do seu atraso social.

Algum tipo de precariedade.

Sim. Aquelas personagens, performers, personas colocam em discussão uma definição de “homem”. Por meio de um discurso paródico sobre a masculinidade, elas indicam a precariedade de uma masculinidade hegemônica.

Mas não a tua.

A minha o quê?

A tua masculinidade.

Também a minha, claro.


    G.O.L.P. - Fotografia de Maglio Pérez
King Size - Fotografia de Filipe Ferreira

Mas não és um indivíduo duro, sem prazer nenhum na vida, reprimido emocionalmente, sempre na defensiva, não cospes no chão ou sentas com as pernas abertas para conseguires coçar melhor os tomates.

Não sou. Percebo o que estás a dizer. Ao zombar da masculinidade, aquelas narrativas apresentam os homens como objetos de riso e como sujeitos que se movem entre velhas e novas posições de sujeito. Mas a caricatura recai somente sobre as velhas posições. Aquele homem ultrapassado, inculto. É isto?

Este homem que não eu.

Então aprendeste algo sobre si mesmo.

Não sei se aprendi algo sobre mim, para além de não ser, nem querer ser um macho. Estar numa sala, entrar numa sala, com a confiança, o privilégio de ser um homem, o ocupar do espaço, essa atitude que grita: “isto é meu, é tudo meu. Eu tenho o que quero e, se eu quiser isto, isto será meu”.

Já perguntaste ao teu pai o que, pra ele, é ser homem?

Provavelmente meu pai diria algo como “é cuidar bem de sua família” ou algo relacionado à existência de uma família.

Eu sempre fico impressionado como estas performances de género existem e são estruturais. A criança recém-nascida, com seu pequeno pénis e seus minitestículos, já começa a compreender algo sobre a sua própria masculinidade no sorriso que vê estampado no rosto do pai. Essa construção da masculinidade é também uma coisa absolutamente artificial. Papéis de género são aprendidos desde a infância, enraizados na linguagem, na educação, nos trejeitos, nas expectativas sociais. O que parece “natural” é, na verdade, uma construção social profundamente enraizada.

Uma denúncia da permanência do patriarcado nos detalhes mais cotidianos da vida social.

O que é visto como “destino” passa a ser reconhecido como construção histórica.

E nós ainda estamos falando sobre isto.

Ainda estamos.

Às vezes, eu acho que é impossível que não haja, mesmo que muito demoradamente e em pequenas doses, mudanças nesse pensamento de geração pra geração. Gerações de homens que enxergam seus avôs de um jeito, os seus pais de outro, a si mesmos de outro jeito completamente diferente.

Sim, mas acho que outro assunto possível aqui é a autoconsciência da masculinidade tóxica, por exemplo. Ou simplesmente da masculinidade em si. O macho desconstruído.

O que tu responderias a essa pergunta?

Que pergunta?

Pra você, o que é ser homem?

É ser um problema, acho que diria assim. Ser homem é ser um problema, um acúmulo de tempos, hábitos, de intenções. Ser algo carente de transformação. Algo que precisa mudar.

É interessante esta questão do acúmulo. Inclusive quando a masculinidade extravasa os limites do corpo e passa a habitar também objetos e coisas, por exemplo.

Um carro, a fivela de um cinto, um palito de dentes na boca.

Uma bota, um relógio pesado no pulso.

Uma arma, por que não? Uma linguiça.

Mas a linguiça esbarra na convenção do fálico. Gigante, se formos por aí, a lista passa a ser gigante.

Pois é. Mas a lista é, de facto, gigante.

Tu citaste a linguiça por causa do hot dog.

Que hot dog?

O hot dog que é montado em cena. O pão, a salsicha, o ketchup.

Sim, claro, talvez sim.

O hot dog que é ofertado à plateia.

Confesso que não percebi bem essa parte.

Entregaram só quatro, eu vi, acho que foram só quatro.

Não sei, não reparei nisso. Recebeste um hot dog?

Não, não recebi. Acho que deram só para os homens.

Então por que não recebi?

Foi o que eu disse, eram só quatro!

Mas você queria um hot dog?

Não sei. Existe qualquer tipo de fragilidade na salsicha, é mole, é fina, é delicada.

Lembrou-me a imagem daquelas figuras a guiarem-se a si mesmas pelo próprio pénis, como fantoches, como uma trela.

Prefiro um churrasco. Carvão, grelha, fumo. Carne com gordura, sanguinolenta, picanha, meio crua.

Fica óbvia a conexão com a violência, a guerra, a carnificina.

Sim, mas também uma dominação simbólica. Uma forma de poder sutil e invisível, que opera sem coerção física. Uma dominação que se perpetua nos símbolos, nos rituais, nas tradições, em representações que parecem neutras, mas carregam uma carga desigual de poder. Uma violência que não é percebida como violência por quem a sofre; e é justamente aí que mora sua eficiência.


    G.O.L.P. - Fotografia de Maglio Pérez
King Size - Fotografia de Filipe Ferreira

Sinto que o espetáculo ficou um bocado perdido ao tentar “renegociar” a masculinidade hegemônica com o público que, no entanto, não era o da masculinidade hegemônica. Nós somos o masculino errado.

Nós? Errado? Não percebi.

Vou tentar dizer de outra forma. Na oportunidade que o espetáculo tem de desfigurar as normas hegemônicas do masculino, provando que as normas que instauram essa masculinidade seguem. Como posso dizer? Não estou conseguindo ser muito objetivo aqui.

Não mesmo.

O problema é que eu senti alívio. Em algum lugar, dentro de mim, prosperava um alívio por não pertencer àquele ideal de masculinidade. Por não me identificar com isso que o espetáculo dizia que era ser homem. Por não corresponder ao que me era predestinado. E, portanto, era eu contra eles. Eu, a me sentir um pouco superior. Um alívio por não ser como eles.

Eles.

Sim, eles. Eles que não somos nós. Nessa abstração pronominal, abrangente, desconhecida. Um sentimento de antagonismo. Equipa A versus equipa B. De que lado você está? Prisão ou liberdade? Potência ou morte? Passado ou futuro?

Nós ou eles?

Isso.

Mas sinto que é mais sobre um lugar intermediário, não sei. Um lugar de possibilidades em aberto. Tudo o que nos tolhe, que nos agrilhoa, é limitativo, e este lugar in-between é livre. As figuras do espetáculo percebem que não são livres, e se não podem ser livres no planeta Terra, serão livres noutro lugar.

Em Marte?

Não! Na consciência de si. Naquilo que é nosso; naquilo que ninguém nos pode tirar.

Compreendo. Concordo. Nossa consciência, nossas regras.

Mas isso é meio perigoso também, não achas?

Acho. Acho que devemos poder ser livres justamente no planeta Terra. Durante o espetáculo, eu acompanho o périplo daquelas personas queers, “em construção”, passo a passo, em provação, rumo ao masculino. Etapa após etapa, tentando compreender desajeitadamente – no corpo – a masculinidade.

Como no fisiculturismo.

Sim. Ficaria um pouco mais naquela cena, na menção visual ao fisiculturismo. Moldar seu corpo ao ideal humano-masculino. Força, potência, virilidade, autossuficiência. O músculo tanto como armadura, quanto fetiche. Não é só funcionalidade: é ostentação de um poder visual.

Uma máscara viril.

No entanto, também é sobre esculpir-se. Assim como um artista molda o bronze, moldo o meu corpo. Nesse caso, músculo e bronze são equiparáveis, são apenas materiais artísticos.

Você disse que sentiu alívio. E você sentiu algum tipo de compaixão?

Compaixão? Acho que não. Deixa eu pensar um bocadinho. Talvez. Talvez uma pequenita compaixão, sim, tem razão. Desse lugar pesado, fechado, dos homens. Eu pensei: “Viver assim deve ser horrível!”. Deve ser uma violência existir dessa maneira, tentando se encaixar nesse modelo constrangedor, muito pior que a sapatilha da bailarina.

Assim é mais possível amá-los. Os homens mais desorgulhosos, que expõem fragilidade, demonstram estar cientes dessa prisão masculina que também lhes foi imposta.

Mas isso é meio perigoso também, não achas?

Achas?

Sim, exatamente. Acho que também é por isso que eu senti que o espetáculo ficou um bocado perdido ao tentar “renegociar” a masculinidade hegemônica com um público provavelmente cheio de masculinos errados.

Concordo. Fala mais sobre isso, se puder.

Talvez eu esperasse perceber algo dentro de mim que me fizesse mais parecido com aqueles homens mais clichês. Às vezes, eu me sinto uma paródia de um homem desconstruído.

A paródia de uma desconstrução.

Às vezes, eu acho impossível desconstruir o masculino.

Lembro-me que li algo interessante na folha de sala, poucos minutos antes do início do espetáculo. Nós ainda não nos conhecíamos. Era sobre a ideia de falhar o género. “Falhar” como verbo de ação. Senti, por alguns segundos, que essa era a grande revolução permanente; a grande responsabilidade, a grande solução. Falhem! Falhem todos vocês!

E nós? Nós falhamos?

Não percebi.

Isso é bonito.

Falhar! Só assim pra permitir que outras formas de vida existam. E é honesto. E está ao alcance de toda gente.

Concordo. Não sei nem se é uma tarefa difícil.

Pelo contrário. Falhar é a parte mais natural.

Devias escrever isto pras artistas.

Não, jamais faria isso. Fica entre nós.


PROGRAMA DE ESCRITA Gustavo Colombini assistiu ao espetáculo King Size no dia 8 de junho de 2025, às 16h, na Sala Estúdio Valentim de Barros / Jardins do Bombarda, em Lisboa; estudou entre 9 e 10 de junho a folha de sala do espetáculo e interessou-se pelo formato de entrevista (a folha de sala é composta por uma entrevista de Sónia Baptista à professora e investigadora Francesca Rayner); realizou, então, uma entrevista com Diogo Liberano, em 18 de junho, sobre masculinidade e as identificações com o masculino; entre 20 e 22 de junho, escreveu um texto mesclando sua experiência com a peça, a entrevista com Liberano e desdobramentos da folha de sala; por fim, em 24 de junho, os dois estudaram o texto criado, fizeram alterações e finalizaram juntos esse texto.

King Size Direção: Sónia Baptista | Interpretação: Ana Libório, Crista Alfaiate, Joana Levi, Maria Abrantes e Sónia Baptista | Espaço cénico: Raquel Melgue | Desenho de luz: Daniel Worm d'Assumpção | Vídeo: Ana Libório e Raquel Melgue | Som: Margarida Magalhães | Desenhos: Bárbara Assis Pacheco | Apoio à dramaturgia: Mariana Ricardo | Apoio à criação: Francesca Rayner, Marcus Massalami, Maribel Mendes Sobreira, Paloma Calle e Vânia Doutel Vaz | Apoio ao desenho de luz: Pedro Nabais | Direção de produção: Maria João Garcia | Produção executiva: Margot Silva | Comunicação: Helena César | Produção: AADK PORTUGAL | Tradução: Joana Frazão | Legendagem: Joana Frazão e Sónia Antunes | Coprodução: Teatro Nacional D. Maria II, Teatro Municipal de Matosinhos Constantino Nery/DDD - Festival Dias da Dança e Festival Linha De Fuga | Residência de coprodução: O Espaço do Tempo | Projeto apoiado pela República Portuguesa – Cultura / DGArtes


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