A partir de ÃO, do Teatro Praga
Tenho particular paixão pela ideia da língua. A criação de padrões sonoros, gestuais, coreográficos que servem à comunicação entre dois ou mais seres vivos. Saber compreender e executar alguns conjuntos desses padrões faz de todos nós seres de uma comunidade, partícipes sociais. A língua nos une e nos separa com uma dedicação geográfica. De quantas formas essa língua nos ajuda a «pertencer»? In how many ways does it help us to conjugate the verb «to differentiate»?
Para mim, foi preciso retomar, diante dessas questões, algumas literaturas aleatórias dos linguistas, do jeito mais irresponsável possível. Caçar definições nos campos da internet como um caçador atuando fora da temporada de caça. Um murderer, então. Tentar tratar sobre esse assunto com irresponsabilidade não deixa de ser uma resposta criativa ao trabalho ÃO, do Teatro Praga. Saí profundamente inquieto sobre essa delusional magic da comunicação humana que o trabalho empurrou em mim e por isso demoro. Demoro de susto, no tempo da invenção de uma digestão possível. Esse texto demora, então, como se já nascesse atrasado. Ou ainda, como se já nascesse velho. Ou então, como se fosse obrigado a esperar, numa sala de espera. Mas não haverá, entretanto, nenhuma tentativa de rejuvenescer esse texto. Afinal, a língua é elástica assim como é a vida, que nunca volta ao ponto de partida (apropriação do poema Língua, de Gilberto Mendonça Teles).
Sobre o que chamei de delusional magic no parágrafo anterior, quero experimentar aqui algumas palavras. Quero colocar em tentação, quero tentar essa ideia de comunicação. Sempre me pareceu um delírio esse sistema regrado e disciplinado de aprendizado sonoro a que somos todos submetidos desde a tenra idade. Somos obrigados, ao longo da vida, a moldar os sons que saem de nós, a domesticá-los, a juntá-los em fonemas. Há muito mais sons que podem ser produzidos pelo corpo do ser humano que não se encaixam na fonética dos alfabetos. Mas é tudo em prol da civilização. E diferenciamo-nos pelos sons que aprendemos a fazer; partilhamos os que podemos executar. Assim como os cães latem e os gatos miam. Cães europeus emitem sons semelhantes aos cães africanos; eles se compreendem. Gatos brasileiros emitem sons semelhantes aos american cats: também se compreendem. Um swedish baby grita e geme como um bebé japonês. A diferenciação executada pelos idiomas do ser humano parte desse delírio comunicacional, uma tentativa sempre desajeitada de comunicação. É preciso acessar o outro, fazer-se compreender e ser compreendido, esforçar-se pela compreensão. Toda comunicação é um esforço corporal. Mesmo que, sabemos isso muito bem, seja impossível to understand the other completamente. À beleza dessa tentativa damos o nome de comunicação. Aos padrões dessa delusional magic damos o nome de língua.
Li, durante essas investigações aleatórias de literaturas linguísticas, que uma língua se torna idioma quando passa a ser falada, oficialmente, em determinado país, sendo utilizada para identificar uma nação. Entende-se, então, que para uma língua ser reconhecida como idioma, ela deve estar relacionada à existência de um Estado Político. Making a language official is making it a language. Ou seja: idioma and língua are two words, yes, both translating to "language", which is labored to know how to distinguish.
ÃO apresenta um conto mágico sobre um som específico – o ão, o fonema mais cheio de personalidade do português. Nasce um(a) fairytale of a sound, sem necessariamente a presença de uma só fairy. As duas figuras em verde, com seus narizes cor-de-rosa, conduzem os adultos presentes por um rito de iniciação ao ditongo nasal mais temido da lusofonia. Como pixies, elas emendam canções e danças onomatopeicas movidas pelo esforço de convencer um anglófono – yes, you can! – da sua capacidade morfenha, da sua aptidão fanhosa, da sua própria experimentação nasal (sem a qual não haverá ão).
E o segredo dessa experimentação está no nariz. Os lusófonos conquistam o seu próprio nariz cor-de-rosa ainda crianças. E quando se pensa no ditongo ão, é preciso, afinal, compreender o nariz como um órgão sexual e a fonética como um ato concupiscente. No ão, os articuladores da cavidade oral estão fechados, impedindo a passagem do ar. No entanto, o véu palatino está abaixado, permitindo que o ar escape pela cavidade nasal. Esse ar que escapa, esse gozo-nasal aéreo, é o som da mão, do pão, do João, do til do ão. E do chão. É por isso, talvez, que sobre o som do ão atue gravidade o suficiente para deixá-lo colado ao chão. É por isso que, talvez, podemos tropeçar nele, tal como a personagem aprendiz desse conto. Ela pisa sobre o ão, machuca o próprio pé ao esbarrar nele. É preciso elevá-lo do chão para compreendê-lo e a música faz esse papel.
As figuras sprites buscam, portanto, nos padrões dos musicais o jeito com que mexem as palavras no papel, os fonemas do ão, baralham a jornada heroica sobre um chão de poesia concreta e luz neão. Em alguns momentos penso conectado a elas: o ser humano é mesmo viciado na experiência, seja ela qual for… Mesmo que a busca por ela, caracterize o seu fim instantâneo. Is it an overkill? E com as figuras também penso no conceito da ressaca (quero mais uma vez colocar em tentação, tentar esse conceito no parágrafo seguinte, com a ajuda de sua versão anglófona): uma prova biológica de que toda diversão tem um preço a ser pago.
The effects of hangovers have been hanging around for ages. The word itself, however, has only been fermenting since the late 19th century. Originally, hangover described someone or something that remained or simply survived, but it was later distilled into common use as a word for the effects of overconsumption of alcohol or drugs. These days, hangover can also suggest an emotional letdown or an undesirable prolongation of notes or sounds from a loudspeaker. Atenho-me, então, rapidamente, a esta última definição mais contemporânea: um prolongamento indesejável de notas ou sons de um alto-falante.
Deixo o Teatro do Bairro Alto com uma sensação próxima a essa: sinto uma ressaca contemporânea, uma ressaca de construções e códigos anglo-lusófonos que rodopiam à espera de alguma compreensão, sinto um prolongamento indesejável de notas ou sons saídos de um teatro-alto-falante.
Prolongo, nessa ressaca derivada de ÃO, conexões com a força homicida dos idiomas. Fico a pensar nas mortes acumuladas pelo ditongo nasal do nosso idioma, do assassinato de inúmeros dialetos pela disciplina e pela pretensa civilização. O ão como uma tatuagem sonora nas nossas cordas vocais, impossível de ser eliminado ou esquecido. Alienação. Corrupção. Colonização. Exploração. Violação. Depressão. Quantas pessoas detestam saber executar tantos ãos de maneira tão perfeita? How many actually chose to learn this nasal diphthong? Que outro som podemos aprender para substituí-lo? Como desaprendê-lo? What other sound can we learn, as a civilization, without making it hurt someone?
Foi bonito imaginar o som como uma pedra no chão capaz de nos machucar. Ele parece inofensivo, inerte, mas não existe sozinho, haverá sempre alguém que o agarre pela mão e arremesse-o contra outro alguém. No entanto, há modos de fazer teatro hoje que carecem desse tipo de lembrança: que não estamos sozinhos; que parecem esquecer que após a noite de hoje haverá o dia de amanhã. ÃO constrói, nesse esquecimento, a sua poesia narrativa como quem propõe um manifesto lusófono written in english.
PROGRAMA DE ESCRITA
Gustavo Colombini assistiu ao espetáculo ÃO no dia 19 de maio de 2023, às 19h30, no Teatro Bairro Alto (Lisboa); no dia 2 de junho, escreveu uma primeira versão desse texto que, de 3 a 4 de junho, foi comentado por Diogo Liberano; por fim, na segunda, 5 de junho, e na quinta, 8 de junho, os dois finalizaram juntos esse texto.
ÃO
A performance by Teatro Praga | Created by André e. Teodósio com Ana Rita Teodoro and João Neves | Performance: Ana Rita Teodoro, André e. Teodósio, Diogo Melo, João Neves | Sound: Diogo Melo | Costumes: Joana Barrios | Set design: Horácio Frutuoso | Light design: Joana Mário | Sound design: Miguel Lucas Mendes | Communication: Afonso Matos | Director of Production: Marisa F. Falcón | Production assistant: Rita Pessoa | With support from Estúdios Victor Córdon | Coproduced by Teatro do Bairro Alto
Bravo