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  • Esse texto

O teatro como indiferença

A partir de As Bruxas de Salém, de Arthur Miller, encenada por Nuno Cardoso com produção do Teatro Nacional São João (TNSJ)




Saí do teatro e caminhei sem saber para onde. Meus pés e pernas pareciam buscar algum contraponto. Uma densa floresta, talvez, onde fosse possível ver as coisas e os seres através de uma nitidez mais borrada, um recinto mais escuro e favorável ao mistério; algo assim não tão liso, limpo ou branco quanto a peça que eu acabara de assistir no Teatro Nacional São João.


Ao cruzar a Rua de Entreparedes, olhei para o outro lado e flagrei um senhor-comboio com bastante idade. Em uma das mãos, ele segurava um cigarro aceso, e com a outra, puxava um pesado carrinho de compras. Aquela imagem: um corpo e o cigarro, a velhice no passo a passo, tudo tão inebriante, a fumaça saindo da boca, o tabaco feito um combustível, tudo tão estranho e pulsante; o ordinário escrito num arranjo inusitado. Aquela imagem em movimento era a minha floresta e dizia-me: “bem-vinda de volta à vida, companheira”.



Escrita pelo estadunidense Arthur Miller em 1953, As Bruxas de Salém, setenta anos após a sua estreia, encontra uma nova encenação sobre o palco do TNSJ. Na versão de Nuno Cardoso, o célebre texto é consagrado ou, em outras palavras, parece ser tirado do uso comum e de nós, espectadoras, afastado. Este, talvez, seja o primordial dilema desta encenação: respeito demais a um texto e, por extensão, demasiada indiferença à época em que ele é encenado.


Na trama de Miller, a pequena comunidade de Salém, em 1692, perde a sua retidão por conta da disseminação de mentiras. A bruxaria torna-se o argumento central para justificar vinganças entre as personagens ao passo que também, a metáfora escolhida pelo autor para questionar a perseguição do governo estadunidense aos preceitos comunistas. Na trama original, os ditos bons cristãos, acusados de bruxaria por um grupo de raparigas de Salém, percebem que, se acusações infundadas podem ser levadas a sério naquela comunidade, então é possível usá-las como moeda de troca.


Ainda que, historicamente, tal dramaturgia tenha dinamizado a metamórfica crise do gênero dramático em meados do século passado, ainda assim, o jogo ilusório da representação dramática continua: será através do diálogo interpessoal entre personagens ficcionais que nós, espectadoras, poderemos tramar alguma conversa com os assuntos de nossa época. Ou não, pois o que parece acontecer, no caso desta encenação, é uma subtil transferência de responsabilidade do artista para o público: qualquer coisa que o artista fizer deverá ser interpretada pelo público a despeito do espírito crítico que o artista quisesse gesticular. Mas como, então, uma encenação atual desse texto convidaria as suas espectadoras a continuar a conversa do drama de Miller? Ou em que medida uma encenação confiaria por demais que a dimensão crítica de tal drama inscrever-se-ia por conta própria?


A encenação de Nuno Cardoso é um jogo de triplicação da matriz textual. A cena repete o texto e, nessa operação, enfraquece-o tanto em intensidade como em intenção. Em que medida seria possível agregar ao texto de Miller outras ações e gestos, outros discursos, outras imagens? Tal pergunta não é feita para atualizar o texto original, mas, antes, para sinalizar o quanto dele continuaria nos dias de hoje. Sem esse tipo outro de ações e imagens capazes de agitar o original, a sensação é que aquilo colocado em cena existe a despeito das transformações em curso no mundo. (A única atriz negra, Lisa Reis, de um elenco composto por onze atores e atrizes, é aquela escolhida para interpretar uma escrava).


Pode um artista – hoje em dia – dar-se o direito de não se preocupar com as reverberações que a sua criação artística produz na época em que está? E, em que medida, ao dar-se esse direito, este não se tornaria um profundo e autoritário exercício de indiferença? Penso que a discursividade do texto de Miller, praticamente transcrita pela encenação em questão, fala alto demais, sem dúvida, mas não parece falar para abrir conversa alguma.


Quando as personagens choram, gritam, beijam e correm, no palco, o elenco finge chorar, gritar, beijar e correr; a escritura da cena vai-se firmando de um modo tão previsível que, em poucos minutos de encenação, um torpor despenca sobre as espectadoras e bloqueia qualquer atividade crítica que tal ficção textual quisesse abrir. Quando algo parece pulsar no palco, numa intensidade capaz de extrapolar a métrica da representação, isso ocorre quando personagens femininas sofrem agressões das masculinas (e, na plateia, é impossível não ler que são atores agredindo atrizes, ainda que sob a proteção do jogo teatral). Mesmo que possa existir alguma técnica no jogo de representar tais agressões, enquanto ações em movimento, elas se aproximam muito daquilo que eu sinto como uma real agressão e, mais que isso, inscrevem-se como aquilo que são: imagens, no caso, de mulheres sendo – mais uma vez – agredidas por homens.


A representação continua como se as espectadoras não pudessem ler simultaneamente ações diferentes entre si. Num brevíssimo instante, porém, dois personagens discutem sobre a posse de uma propriedade e, enquanto discutem, um deles repete os gestos do outro. Pela primeira e única vez, algo estranho acontece no palco: e esse algo estranho faz-se brilhar e acende em mim alguma curiosidade. De imediato, o público pôs-se a rir, como eu, mas o brilho apagou-se rapidamente. Não era um gesto interessado em tensionar o texto do texto com o texto da cena, era só uma piada.



Na boca de cena, uma tela translúcida recebe a projeção da versão fílmica realizada por Luís Porto especialmente para esta encenação. Nela são projetadas palavras, fragmentos textuais e, evidentemente, o filme em questão. Quando a tela é erguida, a encenação fílmica passa a ser projetada no fundo do palco. Cenograficamente, a área de cena é coberta por extensos platôs separados entre si por dois degraus. Há, portanto, o piso do palco, dois degraus, um novo platô, mais dois degraus e, por fim, o platô mais alto. Sobre este cenário, pendem postes de luz e eletricidade sem fios, postes com aparência de madeira numa provável alusão a árvores sem folhas de uma floresta apenas imaginada. Entre lentas subidas e descidas desses troncos, a cena instaura uma movimentação solene que reforça a exasperação da dança cênica que, desprovida de contrapontos, parece cansar-se de si mesma.


A versão fílmica, ao contrário do que poderíamos supor ou desejar, nada revela além do que já nos conta o texto. O filme projetado sobre a cena e ao fundo dela é a outra cópia que encerra a triplicação do original de Miller. Não parece inscrever diferença alguma nem convocar ou propor outros signos para fora da representação. Sem dúvida, há no filme mais paredes e texturas, mais profundidades e nuances na iluminação, um plano ou outro que nos aproxima da expressão facial de uma atriz ou um ator, mas é só. O filme revela aquilo que eu, enquanto leitora, já escrevia a partir do texto em cena.


Fica evidente, portanto, que encenar um texto com décadas de idade não necessariamente torna-o contemporâneo. Afinal, podemos supor que, para ser contemporâneo, é preciso mais do que apenas reverenciar hoje aquilo que fora criado antes. Citar o passado sem esforço algum para revirá-lo e provocá-lo, ainda assim, é uma manifestação poética? O contemporâneo da encenação de Nuno Cardoso mistura dramaturgia com projeções, cenários de metafórica plasticidade com microfones, e isso é fazer jus ao tempo que corre?


O que vemos em cena, dito de outro modo, é um realismo sem contradição, sem contraponto ou constrangimento, ele é deliberadamente livre e, portanto, enganoso. Não possibilita às espectadoras nenhum tipo de experiência emocional um pouco mais rente ao senhor-comboio com o cigarro e as pesadas compras. Aquele senhor, no palco do mundo, trazia de modo ambivalente a dimensão perene da vida e a sua, por vezes, custosa continuação. Ou, noutras palavras, ele trazia consigo não apenas um punhado de compras como também uma concentrada ambivalência.


Podemos aprender as regras do jogo teatral, seguir os manuais que, de quando em quando, são inventados e divulgados. No entanto, o que parece ser mais difícil é perceber que tais regras preestabelecidas não informam apenas detalhes técnicos do fazer artístico; elas expressam também uma visão de mundo, um repertório específico de interesses e, em especial, são regras que trazem consigo indiferenças.

Ao fim do espetáculo, os aplausos do público fizeram-me pensar no conservadorismo que continua vivíssimo entre nós. Não foi possível saber, nem possível seria, se aplaudíamos a encenação ou a profunda distância entre aquela narrativa ficcional e a deste mundo. Sinto que o teatro, nesta encenação, não nos convida a pensar alternativas, ele apenas promulga a sua verdade indisposto com outras possibilidades que, por certo, colocariam o estatuto da sua verdade em questão.


Esta As Bruxas de Salém, mais do que não oferecer perigo à ideologia dominante, parece, corroborá-la. Seu jogo cênico evidencia a incapacidade da representação em dar a ver aquilo que vivemos. Não é possível escutar o texto de Miller quando, sobre o palco, a única atriz negra do elenco é aquela escolhida para interpretar uma escrava. Há, portanto, um texto da nossa época que fala mais alto do que esta representação. Sinto-me na porta do teatro, não quero entrar: algumas imagens não podem mais continuar.


Um racismo despreocupado?


Não direi que a encenação de Nuno Cardoso é racista. Parece-me perigoso e mesmo pouco dizer a coisa desse modo. Gostava, no entanto, de sinalizar o modo aparentemente despreocupado com o qual a questão foi tratada.


Ao entrar no teatro, recebemos um Manual de Leitura de As Bruxas de Salém, recheado com textos diversos, informações e detalhes que tanto podem estimular a nossa leitura do espetáculo como – a partir da expressão “manual de leitura” – induzir determinada leitura. Neste manual, há uma conversa entre Nuno Cardoso e Mónica Guerreiro, da qual destaco o seguinte trecho:


A esse propósito, no casting confrontaram-se com questões identitárias, questões de género...? A Tituba, escrava que veio de Barbados, é interpretada por uma atriz negra. Ah, mas a primeira personagem que a Lisa [Reis] fez foi Mary Warren. E Tituba poderia ser interpretada por qualquer uma das atrizes, mas depois precisei de uma Betty, e acabou por ficar assim. [...] Mas há uma coisa importante a reter aqui, dramaturgicamente, e que o filme vai evidenciar: Parris é um esclavagista. Portanto, se o papel fosse feito por uma atriz branca, escamoteava isso, que é fundamental para percebermos Parris. Por outro lado, discutimos a possibilidade de o fazer em crioulo. Mas chegámos à conclusão de que isso era menorizar, tipificar o crioulo. E Tituba não é isso. Tituba, independentemente da sua cor, é a pessoa explorada. Utilizada por todos. Mas também é a pessoa que sabe o que é o calor. Tem o seu discurso no fim, sobre conhecer o diabo, que o diabo em Barbados não é má pessoa... Ela fala da sensualidade, do sexo. Como é que vês o episódio do Tudo Sobre a Minha Mãe e a alteração de elenco para incluir uma segunda pessoa trans depois do protesto? Eu não estou a par. Mas quer-me parecer que o encenador alterou, primeiro, porque não tinha dinheiro, e que quando teve dinheiro voltou à ideia inicial, que era ter duas atrizes transgénero. Cada vez mais sinto que há peças em que não há necessidade de género. São coisas que merecem ser discutidas. Eu troquei o género a personagens do Balcão e do Lear. Acho justo que as pessoas possam ser uma coisa ou outra, porque a peça é uma construção de personagem. Mas sobre as opções dos meus colegas, não tenho grande coisa a dizer. O que posso dizer é sobre o que nós decidimos. Tudo o que apresentamos foi discutido dramaturgicamente entre nós. Se as pessoas não estiverem de acordo, paciência. Esta não é uma peça em que eu possa trocar o género das personagens, ela não permite isso.

Podemos negociar com o racismo? Podemos conversar sobre ele equilibrando violências com pequenos mimos como dar à atriz negra que interpreta a escrava também uma personagem branca? Uma escolha não pode ser o antídoto para a outra. Tituba não é uma pessoa explorada independentemente da sua cor, ela é explorada por conta da sua cor.


Eis aquilo que nos ensina a teoria negativa da representação, pois muitas vezes, a representação segue povoando a nossa realidade com imagens e discursos que gostaríamos que acabassem. É o que afirma o filósofo camaronês Achille Mbembe ao dizer que “a vontade de representação é, no fundo, uma vontade de destruição. Trata-se de fazer violentamente que algo passe a ser nada” (MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Tradução Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições, 2020, p. 143). Ele argumenta:


Como operação simbólica, a representação não necessariamente abre caminho para a possibilidade de reconhecimento recíproco. De saída, na consciência do sujeito que representa, o sujeito representado corre sempre o risco de ser transformado em um objeto ou um brinquedo. Ao se deixar representar, ele se priva da capacidade de criar, para si mesmo e para o mundo, uma imagem de si mesmo. (Ibid.)

Tais reflexões são feitas num contexto em que a representação é lida como uma operação de desfiguração do povo negro. Junto e a partir do psiquiatra francês Frantz Fanon, Mbembe desdobra essa teoria negativa da representação que subjaz à violência racial e valoriza a recusa de nossa paixão pelo hábito.


A questão não são as imagens que Miller, em 1953, escreveu em sua peça. A questão é continuarmos, ainda hoje, em 2023, a lançar num palco imagens que reforçam as violências que, muitas vidas e pessoas, têm lutado e morrido para modificar. Eis a profunda indiferença que o teatro pode escrever no mundo.


 

PROGRAMA DE ESCRITA

Diogo Liberano assistiu ao espetáculo As Bruxas de Salém no dia 19 de março de 2023, às 16h, no Teatro Nacional São João (Porto); de 20 a 26 de março, escreveu uma primeira versão desse texto que, de 27 a 29 de março, foi comentado por Gustavo Colombini; por fim, na sexta-feira, 31 de março, os dois finalizaram juntos esse texto.


 

As Bruxas de Salém

De Arthur Miller | Encenação: Nuno Cardoso | Tradução: Fernando Villas-Boas | Cenografia: F. Ribeiro | Desenho de luz: Nuno Meira | Música e desenho de som: João Oliveira | Vídeo: Luís Porto | Movimento: Roldy Harrys | Figurinos: TNSJ | Assistência de encenação: Pedro Nunes | Interpretação: Ana Brandão, Carolina Amaral, Joana Carvalho, Jorge Mota, Lisa Reis, Mário Santos, Nuno Nunes, Paulo Freixinho, Patrícia Queirós, Pedro Frias e Sérgio Sá Cunha | Produção: Teatro Nacional São João


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