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  • Do fazer imaginar

    A partir de Os outros , espetáculo dos alunos finalistas da licenciatura em teatro da Escola Superior de Teatro e Cinema – IPL Contar uma história.   Podemos começar com a ideia dos fantasmas.   Quando eu era criança, esperávamos os nossos pais dormirem e, depois que fingíamos estar dormindo, uma nova vida começava. Meu irmão acendia uma lanterna sob os lençóis e passávamos a noite a partilhar histórias. Contar histórias era um jeito de estarmos juntos; gastar o tempo que podíamos partilhar imaginando. Tudo o que narrávamos era uma maneira estranha nossa de existir: submarinos, naves espaciais, cavernas, fantasmas… Eu perdia o sono. (Imaginar custava-nos o sono). Gastar tempo a imaginar, naquele momento, era ganhar tempo de vida. E, mesmo precisando dormir, eu não sabia mais como descansar. Mesmo sentindo os olhos pesados, as pálpebras a se fecharem quase sozinhas, era inaceitável a ideia de abandonar aquele estado. Por que desperdiçar aquela atenção? A vontade de imaginar. Durante todos aqueles anos, nunca mencionamos a palavra “verdade”. Acho que até hoje nunca falamos sobre isso. (Imaginar nada tem a ver com essa palavra, não é mesmo?)   Onde estão os fantasmas senão nas histórias? (Protegidos e possibilitados por elas)   Os outros começa com a leitura de um manuscrito. Os personagens reúnem-se à volta de uma lareira; é próximo ao fogo que a contação dessa história acontece. É o diário de uma perceptora de duas crianças, Flora e Miles, em uma propriedade rural localizada em Bly, Essex, Inglaterra. As duas crianças acabam por se envolver num universo de aparições guiadas ora pela ideia do paranormal ora pela força da imaginação num espanto que circunda espectadores e personagens.   E, assim, seguimos. Os atores-personagens investem-se nessa ideia: contar essa história (falada e cantada). A dramaturgia de Bruno Bravo baseia-se na novela de Henry James, The Turn of the Screw , assim como nas adaptações subsequentes de Truman Capote e Benjamin Britten. Propõe, sobretudo, uma relação muito próxima ao convívio cénico entre teatro e literatura. E no centro desse convívio, está a contação de uma história. No centro desse convívio, estão também alunos finalistas da licenciatura em teatro da Escola Superior de Teatro e Cinema – IPL.   Esse texto que agora está sendo lido também nasce no centro desse convívio. Um convívio pessoal entre a ideia de formação, teatro, pedagogia, dramaturgia, literatura. Elenco essas palavras, lado a lado, com o intuito de também me provocar. Penso na minha formação; na minha trajetória-aluno, a tentar perceber em QUE eu estava me formando. É inevitável, hoje, não pensar nesse verbo (não sei se o português de Portugal comporta esse ideário). Formar-se, como ter uma profissão. Dar corpo ou forma. Constituir-se. Organizar-se de algum jeito pra exercer um papel na sociedade. Uma formação, um conjunto de valores ou qualidades morais resultantes de uma educação que escolhemos pra nós.   Uma profissão, então, que elabora comunidades, proponho. Minha formação consiste em pensar gestos que tentam tocar pessoas através de narrativas inventadas; que tentam deixar claro que imaginar é estar vivo e que, tudo o que não é imaginação, é mentira. Durante todos esses anos nos quais ainda vivemos, nunca mencionamos a palavra “mentira”. Acho que até hoje nunca falamos sobre isso. (Imaginar continua não tendo a ver com essa palavra, não é mesmo?)   Imagino, então, essa formação pra mim: contar histórias. E lembro desses colegas de profissão (André Rita Baião, Beatriz Viamonte, Dany Duarte, Lúcia Pires, Margarida Gonçalves, Rafael Dultra, Rogério Maurício) que vi trabalharem em cena esse convívio entre teatro e literatura; entre o trabalho dramatúrgico, coletivo, de tradução, cortes, distribuição de personagens, leituras, avanços e recuos, trabalho de chão e mesa, canções. E, enfim, chego mais uma vez nessa indagação: quando foi que paramos de desejar a contação de histórias? Quando foi que apagamos o fogo desse mistério? Contar histórias como quem inventa, como quem sabe que perder tempo é ganhar vida?   Sinto que esse trabalho, como saldo de uma “finalização” (voltaremos a isso na ideia de “exercício final”), ensina artista e público a reimaginarem o motivo do teatro. Ou, ainda, a reimaginarem outras imaginações para além daquilo que o senso comum afirma caber ao teatro. Resgatar a possibilidade de o teatro fazer outras coisas tal como contar uma história, coisa essa que parece ter sumido de vista (um gesto tão antigo e ultrapassado que é oferecer ao presente momento não um espelho reflexivo, mas um capaz de estranhá-lo). A justaposição de vários espaços que, normalmente, seriam ou deveriam ser incompatíveis, mas que encontram o seu lugar no teatro. Tudo isso, como contramão da informação, que apesar de produzir uma crescente conectividade, acaba por nos isolar uns dos outros: afinal, estar conectado não significa estar vinculado a nada. Talvez, somente narrar estabeleça algum vínculo entre nós (sem a acelerada mediação das informações).   Nossa atenção, ultimamente, sente-se tão fragmentada, que impede uma escuta que se demore de modo contemplativo no que é narrado. Então penso: qualquer narração pressupõe uma comunidade de ouvintes atentos, já que narrar uma história e escutar uma história se condicionam mutuamente. Será que hoje perdemos a paciência para estar à escuta e a paciência para narrar? Será que a escuta, na verdade, concentra-se principalmente não no conteúdo que está sendo partilhado, mas na pessoa que narra?   A própria dramaturgia respondeu-me: “A realidade é melhor apreendida por aqueles que sabem imaginar.”   Chamou-me a atenção escutar de uma pessoa sentada atrás de mim, antes do início do espetáculo, a fala:   — É um exercício final.   Um exercício final, dos alunos, destes artistas em formação.   Aos colegas de profissão que se propõem a esse desafio, ousaria dizer: não há exercício final. Exercício final faz pensar na redundância de outra expressão que adentrou o fazer artístico: produto final. Ora, todo produto é o final da linha de produção. Aceitaríamos exercício final se o seu final fosse um fim, ou seja, uma finalidade. Se a finalidade de tal exercício fosse a prática da invenção e do contar, que não acabam, não enquanto uma artista segue viva.   Celebro, naquele momento, cada um de vocês pelo corpo e pelo trabalho que cultivaram em contar uma história.   Imagino que lá estamos outra vez e, por ser tanto aquilo que já fora, ainda agora é diferente. Imagino aplausos volumosos em noite quente e estrelada. Estou sozinho na plateia, mas o palco está cheio de pessoas e histórias. Agora, o espetáculo termina, o elenco sobre o palco recebe os meus aplausos, aplausos daquele único espectador que era eu naquela noite quase inenarrável. E então, em vez de os artistas agradecerem por minha presença, sou eu quem os agradece. Eu agradeço, diante deles, como quem diz e pede que continuem querendo e contando, querendo contar histórias, que continuem contando histórias. Minhas mãos estão quentes, eu continuo em aplauso, e sei que é possível ler o que minhas mãos estão a escrever: elas dizem que isso vale a pena, elas insistem em dizer que continuem, que vocês continuem. Portanto, em mim, a calma d’esse texto.   O artista que conta uma história, duplica o mundo (multiplica o mundo). Solicita calma a uma sociedade apressada. Eu mesmo, recaído (quase sempre) na armadilha da informação, sinto que esses momentos são preciosos por me relembrarem fisicamente da existência da imaginação. E seria a imaginação (diferentemente da descoberta) um gesto que não depende de nada ou de ninguém? É físico? É interno? É relacional?   Tenho pensado nisso.   Foi quando me lembrei dessa relação que temos entre imaginação e a ideia dos fantasmas. Celebrá-los por existirem para além da nossa certeza. Agradecer aos que nos introduziram à atividade de narrar, sem medo do que é verdade ou mentira.   Imaginem comigo essa profissão: imaginar. Imaginem comigo essa outra profissão: fazer imaginar. PROGRAMA DE ESCRITA Gustavo Colombini assistiu ao espetáculo Os Outros  no dia 12 de julho de 2024, às 19h30, no Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa; do dia 13 a 24 de julho, escreveu uma primeira versão desse texto; de 25 a 29 de julho, tal versão foi lida e comentada por Diogo Liberano; por fim, em 31 de julho, os dois finalizaram juntos esse texto . Os Outros Dramaturgia: Bruno Bravo | Interpretação: André Rita Baião, Beatriz Viamonte, Dany Duarte, Lúcia Pires, Margarida Gonçalves, Rafael Dultra, Rogério Maurício (alunos do ramo de Atores) | Direção de Cena: Carolina Teodoro, Raquel Caetano e Rita Fernandes (alunas do ramo de Produção) | Desenho e Operação de Luz: Gonçalo Monteiro (do ramo de Produção) | Sonoplastia e Operação de Som: Inês Saraiva e Raquel Caetano (do ramo de Produção) | Cenografia e Figurinos: Inês M. Silva (do ramo de Design de Cena) | Espaço Cénico: Inês Silva (Design de Cena) | Assistência De Construção: Nuno Redin (Design de Cena) | Produção: Carolina Teodoro, Inês Saraiva, Inês Almeida e Luís Santos (Produção) | Comunicação e Redes Sociais: Inês Almeida (Produção) | Arquivo Fotográfico e Audiovisual: Inês Almeida e Raquel Caetano (Produção) | Arranjos Musicais: André Rita Baião, Beatriz Viamonte, Dany Duarte, Lúcia Pires, Margarida Gonçalves, Rafael Dultra, Rogério Maurício (Atores) | Equipa Pedagógica ESTC: Andreia Carneiro, Bruno Bravo, José Espada, Maria Repas, Mariana Sá Nogueira, Marta Cordeiro, Sérgio Loureiro e Stéphan Alberto | Gabinete de Produção da ESTC: Rute Reis, Rui Girão e António Sofia

  • Esta não é uma história que acaba ao ser contada

    A partir de uma conversa com Axelle Ribeiro, aluna do Mestrado em Estudos Artísticos da Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra Seria preciso calma para refazer o caminho percorrido e se posicionar, outra vez, no instante que hoje julgamos já ter ultrapassado. É lá onde você está agora. Outra vez você, um pé no início de uma ponte. Não sabemos se esquerdo ou direito. Não sabemos se, ao falarmos “pé”, isso significará você inteira. Mas lá está você. Esse texto começa com esse convite: tente ver a si mesma através dessa distância. Suponhamos, então, que você esteja inteira, apesar do desnorteio característico daquele momento [aquela ponte]. — Não me disseram exatamente para onde ir, com quem falar, deram-nos boas-vindas, mas esqueceram de falar que muito não seria dito, bastante não seria explicado, que seria preciso descobrir pelo caminho, o que era óbvio, mas óbvio para quem? Acho que foi por conta disso que desenvolvi esse hábito de sempre chegar um pouco mais cedo… — ela disse, com seus olhos mais lá do que aqui. Esse susto: estamos desnorteadas, mas o caminho também está. Será que nosso desnorteio, naquele momento, nos impede de ver o desnorteio do caminho? Aquela sensação da "escolha de um caminho para a vida". Pensamos que não haveria problemas no caminho, que o problema – caso viesse – viria apenas de mim, eu, caminhante. Por isso seria preciso a calma. A calma de quem confia que lembrar, sobretudo, é não conseguir. Lembrar seria mais invenção do que arquivo ou documento. E temos os documentos, guardados ou amassados, digitais ou corrompidos. Mas por que desejamos lembrar daquilo que já não temos? Quando esteve tomada pela rotina daqueles dias, o que ela fez foi exatamente o [que seria considerado] necessário. Seu agir nasceu tanto do desejo de aprender quanto do movimento da ignorância manifesta em cada passo dado. Seu ímpeto nasceu, por assim dizer, de um desejo que desconhecia espera. Era preciso escolher em quais cadeiras sentar. E, mais que isso, era preciso descobrir outro verbo para uma cadeira que não apenas sentar. E ocupada tal como esteve, ela sequer percebeu o quanto seus pés deram passos e mais passos ponte adentro. — Gostaria de continuar […], mas gostaria urgentemente de uma […] — ela disse e, por assim dizer, as palavras, tal como tijolos ou pedras, imediatamente puseram-se a abrir outros caminhos. — No mundo académico, gostaria de, mas gostaria urgentemente — Urgentemente, de uma pausa, mas no mundo — Gostaria de uma pausa no gostaria — Académico, pausa, continuar, gostaria — De continuar no mundo urgentemente — e, após tantas pausas, ouviríamos ela dizer: — Estou a terminar meu mestrado e não me sinto preparada para nada. Pontes que não se veem, mas que são atravessadas [com a mesma ignorância daquilo que nos atravessa]. Surgem entre um passo e outro, onde o chão parece sumir e o ar se torna um pouco mais espesso [e não estamos a falar de aprendizados, nem anteriores ou posteriores]. Caminhamos sobre elas sem saber para onde seguem, mas quem disse que precisávamos saber de antemão? Talvez o destino seja uma invenção que criamos para aliviar o mal-estar com a indefinição do que é estar viva [mais dura, menos desenvolvida, mais poeticamente viva, menos na mesmidade]. Pegue o lápis e, suavemente, deixe-o deslizar pelo papel branco, traçando uma linha curva. Esboce o focinho, desenhe o contorno do rosto. Use a borracha para ajustar os traços, suavizando até que o animal ganhe forma, pronto para saltar do papel [ou não]. O coelho não precisa saltar [da ponte]. Porque salta, não quer dizer que isso é apenas aquilo que um coelho possa fazer [comer]. O coelho está tranquilo, ele teve uma boa refeição ao almoço [e não foi cenoura]. O coelho não vai saltar, já você, você talvez precise de outra borracha. O susto seria perceber — e aceitar — que se tratava, diariamente, de cruzar a ponte. E que a ponte não era apenas da profissão, mas [nem tão somente a] da vida. O susto seria aceitar — e reconhecer — que pontes não são feitas de espaço ou de tempo, mas de propósitos. Um propósito é coisa medida por métricas dispendiosas [fazer arte, coisa dispendiosa]; propósitos não se dão bem com mais-valias. — Fiquei com a sensação de que não estou na ponte, numa ponte em si, mas que estou em ponte, eu estou em ponte, faço-me perceber? — é evidente que sim. Num dia esquecível, ela teve a sensação de que o seu caminho estava encerrado. Alguns pensamentos são becos sem saída. Pensou que não havia nada a ser feito, pensou na família, noutras profissões, em assistir a um filme ou série, em não ler por tantos dias [ou semanas]. Ela pensou que fazia tempo que não tantas coisas [enviar relatório do estágio]. A ponte diante dela, naquele dia, dentre tantos papéis, cadernos e livros pelo quarto, tinha a medida da procura e do reencontro com um antigo desenho a lápis [e muita borracha] feito na adolescência. Nessas travessias, encontramos o que não procuramos. Uma flor na rachadura do betão é imagem cliché porque repete-se incessantemente na contundência daquilo que ela própria revela; sim, será ali mesmo, justo onde não esperamos, que nascerá algo querendo viver. Naquela noite, enquanto as luzes do quarto contrastavam com o brilho do ecrã, ela assistiu a um documentário que afirmava que as pontes deveriam ser bonitas. Engenharia, construção civil, alturas, taxas de suícidio [enquanto resvalava a pensar no que uma Universidade constrói, na construção da sua civilidade, enquanto resvalava]. Pontes de aço ou concreto, revoluções na história das civilizações, incríveis, mesmo que pequenas quando diante daquelas que unem pessoas e átomos, células e corações. Não seriam sempre físicas, ela confirmava, mas estariam sempre entre. — E eu vou tentar escrever esse texto, que é o meio do caminho entre o que você está trazendo e como eu me encontro com você — ele disse, confiante na névoa do caminho, no bosque que parecia ser aquela conversa. Há uma ponte à frente, mas a frente é sempre para onde olhamos. Olho para dentro e lá está uma. Olho para trás, outra frente. A ponte não está num ponto específico. Não é bem feita do tempo. É ponte vertical e seus degraus parecem empilhados em si mesmos; é ponte horizontal e seus degraus parecem deslizar para dentro de si mesmos. A imagem dessa ponte-ilusão-de-ótica. Quanto mais caminha por essa ponte, mais você desce e simultaneamente subiria; essa ponte é a profissão que você escolheu. A imagem dessa ponte-ilusão-de-ética. Foi o esforço de lembrar – exigido no depois – que inventaria essa construção que convencionamos chamar de ponte [a tríade passado-presente-futuro aborrece a possibilidade de uma relação outra – e melhor – com a vida]. Esta não é uma história que acaba ao ser contada. A parte longa de cada história são as tentativas, mas estas quase sempre são substituídas por certezas apressadas. Tentativas demandam a carne dos espaços. E o bonito delas é que sabem acabar. Tentativa é tijolo, palavra. Poderíamos construir um abrigo [moletom] por tanto tentar. Ainda assim, no meio da praça, livre e esvoaçante, olha ali outra tentativa. — É um diálogo — ela afirmou como quem sugere, sugeriu como quem já soubesse. E mesmo quando você pensa em saídas, em terminar ou defender algo, ainda assim, você estará na ponte, sem saber se ponte é um ponto no espaço ou se ela é você. A imagem da ponte não oferece outra saída, senão o outro lado dela própria [não se esquecer da possibilidade do salto]. Mesmo com bifurcações, tripartições, uma vez dentro da ponte, é ela que determina por onde você sai, caso escolha sair. [Mais tarde, se o mundo precisasse de outro nome, você sugeriria que ele fosse rebatizado como Planeta Ponte. Mais tarde, se o mundo precisasse, você sugeriria Planeta Fuga]. Chegar mais cedo a um compromisso que você poderia simplesmente faltar, escreveu um filósofo, seria um modo crítico de pertencer ao nosso tempo. Aderir ao tempo, mas a ele resistir, oferecendo ao tempo que corre alguma resistência mais lenta. Mesmo que chegar com antecedência não seja em si um grandioso evento, ainda assim, é um tijolo ou vértebra [inebriada pelo pensamento-ponte] na cadeia dos acontecimentos. Certos fenómenos não estão presos a um sítio específico, mas se manifestam ou têm influência em múltiplos lugares sem depender de qualquer proximidade física. Quer dizer que aquela travessia pode continuar depois e para além dela; que a construção profissional não começa ali nem lá se encerra; que os encontros já tidos ainda podem ser visitados e celebrados [em qualquer ponto de qualquer ponte, seria preciso calma para refazer o percorrido e se posicionar, outra vez, no instante hoje ultrapassado]. — Só depois […] é que voltei a desenhar um pouco. Por exemplo, tenho aqui […] um dos melhores que fiz até agora e não faço ideia como desenhei […] não sei mesmo. E muitas vezes as pessoas costumam dizer que eu desenho muito bem. Eu não desenho bem, porque não aprendi técnicas. Eu aprendi pela experiência. Essa foi a primeira experiência que tive de “eu criei algo” […]. Lembro que usei muita borracha, muita […] e quando comecei a perder esse medo de “eu não consigo fazer as coisas bem” e comecei a fazer algo, percebi que “eu sou capaz”. Era um medo que eu sentia, das minhas experiências anteriores, que me dizia que eu não conseguia fazer […]. PROGRAMA DE ESCRITA Diogo Liberano realizou uma conversa com Axelle Ribeiro no dia 7 de agosto de 2024, às 14h30, via Zoom, ele no Porto, ela em Coimbra; de 8 a 18 de agosto, escreveu uma primeira versão desse texto; de 19 a 26 de agosto, tal versão foi lida e comentada por Gustavo Colombini; de 27 a 29 de agosto, Liberano retrabalhou o texto; por fim, em 30 de agosto, os dois finalizaram juntos esse texto .

  • Que as salas de aula tenham muitas janelas

    A partir de uma conversa com algumas integrantes do NAVIO (Núcleo Artístico de Vontades Inusitadas e Outras) — Então, como arquivar um navio? — Era o que estava a falar, só que de um jeito menos objetivo. — Antes, acho que posso retomar a discussão anterior. A relevância da formação que tivemos é justamente essa: estarmos juntos. Estarmos aqui, juntos, a pensar sobre a relevância da formação que tivemos. Olhar pra esse ponto de cruzamento que é uma formação, a diversidade das urgências ali reunida, a própria existência em partilha. Qualquer tipo de formação, qualquer tipo de licenciatura é isso: pessoas a coexistirem, a partilharem as aflições do mundo lá fora. — O mundo lá fora, olha que curioso. Como se estivéssemos apartados do mundo. — Dois mundos. Nenhuma ponte entre eles. — Como se estivéssemos sendo protegidos. Será que o ambiente ideal para o aprendizado é esse? Será que essas são as melhores condições de temperatura e pressão? — E depois o tropeço. O empurrão pro mundo lá fora, o jogo económico. — Acho que tudo isso é sobre as condições da formação. Antes do tropeço, antes do empurrão, parece haver esse treinamento do corpo, os estudos, as referências, o académico, os saberes, os atos de comunicação, os desafios trazidos pelos amigos, os estímulos provocados pelos professores. O artista forma-se a si mesmo, não? Claro, sempre provocado por algo, por alguém, por alguma coisa. O artista em formação sabe provocar-se a si mesmo? — Penso que depois da formação, vem isso: uma necessidade de aprender para além do que foi aprendido. — Ou desaprender o que foi aprendido. — Aprender melhor o que foi aprendido, diria. Acredito nesse acúmulo. O artista em formação é um ser em treinamento. — Quero voltar ao que foi falado, agora não sei mais quem mencionou isso, mas quero voltar ao que foi falado sobre condições de temperatura e pressão. De qualquer forma, associo muito a minha formação a uma soma de referências e de trocas com pessoas que, por motivos particulares, escolheram estar ali ao mesmo tempo em que eu estava. Haveria aqui, pra mim, algum dado estranho de coincidência, mas não deixaria a conversa seguir por esse caminho. — O próprio teatro como formador do teatro. — A sensação de algum espetáculo qualquer ser ele mesmo uma “aula”. — E essa aflição contínua. Como me é marcante esse estado de espírito! Imagino-me a olhar pro fim da minha formação profissional e já saber, de antemão, que a minha insistência e o meu desejo deverão, a partir daquele momento, estar sempre renovados. — Desejo ou vontade? — Ela disse “insistência”. — E daí, a pós-formação. Aquele empurrão que já mencionamos. Veio-me na cabeça aquela imagem de alguém preso muito tempo dentro de uma sala escura, de um porão e que, de repente, é colocado pra fora aos pontapés. Então, encontra-se ali no mundo de fora, com as mãos erguidas em direção ao sol, tentando bloquear a luz solar para tentar ver alguma coisa à frente. — Ou o contrário disso. Posso reescrever a sua frase? — Como assim reescrever? Isso não é uma conversa? — Acho que foi uma conversa, agora é um texto. — Pode sim, fica à vontade. — Veio-me na cabeça aquela imagem de alguém preso muito tempo dentro de uma sala muito clara, de um porão muito iluminado e que, de repente, é colocado pra fora aos pontapés. Então, encontra-se ali no mundo de fora, com as mãos erguidas em direção ao céu, tentando afastar as sombras para tentar ver alguma coisa de modo sempre limpo e claro e certo. — E a visão demora a reestabelecer-se. É preciso acostumar os olhos outra vez. — E a visão demora a aprender como faz para enxergar a escuridão. É preciso enxergar os olhos outra vez. — Por isso é importante que as salas de aula tenham muitas janelas. — Que as salas de aula tenham muitas janelas, então. — Ou que as janelas tenham muitas salas de aula! — Quem é que continua? — Tenho uma questão objetiva. — Sim. — Como posso ganhar dinheiro com teatro? — Bom, ganhar dinheiro com teatro pode ser desafiador, mas existem várias formas de transformar essa paixão em uma carreira rentável. Aqui estão algumas estratégias que podem ajudar: 1. Atuação em peças e espetáculos; 2. Criação de Produções e Espetáculos; 3. Ministrar Oficinas e Aulas de Teatro; 4. Conteúdo Digital e Mídias Sociais; 5. Editais, Patrocínios e Incentivos Fiscais; 6. Audições para TV, Cinema e Comerciais; 7. Parcerias e Colaborações; Enfim, se você for criativo e persistente, é possível combinar várias dessas fontes de renda para viver de teatro. — E, então, como arquivar um navio? Alguém já quer tentar responder isso? — A pós-formação vem junto com esse abismo. O que se aprende é o quê? A ter um sonho. Uma utopia. O dia a dia é outro, as contas não são pagas com expressão artística. Há trabalhos paralelos, é natural, ingrato e frustrante. Mas é preciso não perder a essência. Não é para ganhar dinheiro. Essa é a dimensão real dessa vida profissional. Ela existe sobretudo para ser não-lucrativa. — Essência. Tenho sérios problemas com essa palavra. Sinto que ela não diz nada exceto reforçar uma conceção meio inerte do que é ser artista. — Uma formação íntima, então. Uma formação de seres humanos melhores. — Nem isso. Nem sempre são eles os melhores seres humanos. — Não é preciso dizer que é ou não é. Pode ser. Pode ser que seja lucrativo. Pode ser que não seja. Pode ser que num determinado momento vá ser lucrativo. Pode ser que não seja sobre lucro. Pode ser. Depende. — Do quê? — Mas é certo que o retorno financeiro é sempre advindo de outras estruturas. É preciso muita articulação do lado de fora para manter o dentro. — É sobre a prática de um teatro pós-ofício, então. — Um teatro pós-ofício? Desculpem lá, eu ouvi a palavra utopia, não ouvi? — Não sei, ouviste? — Sim, um teatro que se faz depois do trabalho. Depois do desempenho básico civilizatório. — E o gesto artístico não faz parte do desempenho básico civilizatório? — Acho que você não entendeu a ironia. — Um teatro pós-emprego. Pós-salário. Pós-civilização. — Inventar um espaço para criar artisticamente sem a necessidade do dinheiro. — Mais uma vez essa história, reparem. O lado de fora e o lado de dentro. — Custa-nos imaginar o teatro dentro do mundo? Em algum momento, ele sempre escapa – ploft! – e vai pertencer a outro. — Custa-nos quanto? Em dinheiro? — É a capacidade que ele tem de criar outros mundos, é isso. — Ele. — Uma vez, durante uma aula, um professor interrompeu a cena de um colega e perguntou-lhe o que ele estava a fazer ali. “O que estás a fazer aqui?”, ele disse. E ninguém disse mais nada até o fim da aula. Acho que, naquele momento, todos nós, cada um de nós, abaixamos a cabeça e tentamos responder pra nós mesmos essa mesma pergunta. O que nós estávamos a fazer ali? — Já estamos a falar do teatro, repararam? A formação virou teatro. — Ou do mercado de trabalho. — Até hoje eu me pergunto o que eu estou a fazer aqui. — Que mercado? Pra qual trabalho? — Não gostava de parecer repetitivo, mas o fim daquela resposta artificial dizia “se você for criativo e persistente, é possível combinar várias dessas fontes de renda para viver de teatro”. Criativo e persistente. Em que momento essas duas qualidades se conectam na vida de um ser humano? Quais profissões pressupõem persistência e criatividade para os seus profissionais? O que eu quero dizer é que tudo isso me pareceu demasiado as regras de um jogo com competidores. Competidores que serão vencedores ou perdedores, nessa conotação. Uma subordinação estranha às leis de competição. Como construir um navio assim? É possível perder esse jogo, não é? — É sim. — É sim? — E “combinar várias dessas fontes de renda” também me chamou a atenção. É preciso combinar várias dessas fontes porque nenhuma é suficiente por si mesma. — Como construir desejo se o sistema capitalista afastou o ser humano daquilo que ele é e daquilo que ele pode? — Não entendi por que a palavra utopia, até agora, não foi mencionada novamente. Foi por que eu havia notado a presença dela naquele momento? — Achas que estamos parecendo muito enraivecidos? — Eu já quis lutar muito contra o capitalismo. Ou melhor, eu já lutei muito contra o capitalismo. — E aí? — E aí o quê? — O que houve? — Nada. — E, desculpem lá, mas são tantos os falsos problemas. Se a nossa formação nos propõe a inventar, a fazer imaginar, por que não assumimos, ou sequer desconfiamos, que podemos estar a criar novos problemas? Problemas sem corpo, problemas sobrenaturais? Alguém já calculou quanta energia gasta-se com as perguntas erradas? — O quanto esse texto também faz as perguntas erradas? — Esse texto, que não é a conversa que tivemos. — Então, como arquivar um navio? — Arquivar um navio para quê? — Navegar um arquivo para quê? — Essa pergunta não faz o mínimo sentido. — Era o que estava a falar, só que de um jeito menos objetivo. — Mas temos um núcleo. A nossa formação trouxe-nos até aqui. — E o trabalho de imaginação é constante e diário. É um caminho de obstáculos. Obstáculos externos e internos, obstáculos entre nós, inclusive. Imaginar não é um exercício mercantil. Não é sobre o tema do momento, o uso das redes sociais como divulgação, o tempo de criação e o de temporada, o facto de enchermos salas com rostos conhecidos. — Criar ferramentas. Experimentar ferramentas. Imaginar ferramentas. E utilizá-las. Desafiá-las ao mundo. — O mundo de dentro ou o de fora? — O mundo. — É uma provocação. —  Quero ficar com essa imagem. Situar a imaginação na gestão do grupo, para além da imaginação da criação artística, do tema, da cena, do texto, da narração. Não apenas como um gesto público, poético, mas um gesto administrativo. Um exercício democrático de imaginação que vem antes da arte, por exemplo. — A imaginação tornada pública, por meio de um gesto artístico, é derivada de um exercício íntimo do coletivo. — E manter essa conversa é também um jeito de persistir. — Então, ela continua. PROGRAMA DE ESCRITA Diogo Liberano realizou uma conversa com Catarina Chora, Inês Sincero, Jaime Castelo-Branco e Tomé Nunes Pinto (integrantes do NAVIO – Núcleo Artístico de Vontades Inusitadas e Outras) no dia 17 de setembro de 2024, às 18h, via Zoom; de 18 a 24 de setembro, Gustavo Colombini, a partir de uma gravação em vídeo da conversa, escreveu uma primeira versão desse texto; de 25 a 27 de setembro, tal versão foi lida e comentada por Liberano; de 28 a 29 de setembro, Colombini retrabalhou o texto; por fim, em 30 de setembro, os dois finalizaram juntos esse texto .   Saiba mais sobre o NAVIO (Núcleo Artístico de Vontades Inusitadas e Outras) através do perfil do coletivo no Instagram: https://www.instagram.com/companhia.navio/

  • Assombrar a convenção

    A partir dos espetáculos assistidos, das conversas realizadas e dos textos criados para a Edição 3 d’Esse texto Começar pela ideia dos fantasmas. Imaginar sua possibilidade, cientes de que o lugar que os guarda e expõe é uma história. Considerar que você, espectadora, sentou-se diante de um palco para ver uma história; diante de um arquitetónico livro, eis você, leitora, a ler uma história. Um convívio entre literatura e teatro. Imagino mais, caro amigo, imagino que sobre este palco arde uma lareira. Mesmo sem vê-la, ainda que nela não se queimem as personagens, o palco emana algo invisível para umas, mais evidente para outras. Este algo ou o mistério e seu chamado, ou a fagulha de um gesto pequeno-incendiário. Sentado diante de Sombras , pinçando desse espetáculo algo que o faça continuar a crepitar, o que você me faria imaginar? Começaria assim, amigo: uma mãe e uma filha. A primeira, imbuída dos valores familiares moldados pelo Estado Novo português, acolhe a segunda que, com o marido preso e uma recém-nascida nos braços, é forçada a regressar ao lar de infância. Ali há sombras da ditadura, da morte, da tortura, do medo. A imagem que paira é essa: são duas mães a pensar sobre o que pode assolar o futuro de suas filhas. Diante de Sombras , tenho essa estranha sensação de estar diante de um texto antigo; não apenas por evocar um passado histórico, mas por contar uma história a partir de uma dimensão formal pedagógica. Tenho certeza de que com essa expressão, "dimensão formal pedagógica", ainda não sei o que quero dizer. Mas uma das minhas coisas preferidas aqui, entre as nossas trocas e conceções para a nossa revista, é justamente essa: jogar uma ideia amorfa, uma intuição, uma pista, para que, juntos, possamos desdobrá-la. Pensando na ideia dos fantasmas que, de algum jeito, inaugurou essa nossa terceira edição, faço uma conexão entre esta peça e sua tentativa de revelar seus próprios fantasmas. No caso, são fantasmas históricos de um país, que assombram o presente e o futuro. Ela não nos convoca a desaprender uma verdade histórica, mas sublinha um aprendizado em que não cabem dúvidas. O medo do futuro está sendo dito, não sentido. A dramaturgia tenta me ensinar a contar uma história. Como você sente essas palavras? Ou melhor, você que não viu Sombras , a partir dessas poucas palavras, como imagina esse trabalho? É intrigante imaginar o que não foi visto. Suas palavras me fazem procurar: aquelas duas mulheres, a proximidade dos seus rostos, suas inquietações. Sinto uma leveza provocada pela ausência masculina no palco, mas o medo, paradoxalmente, continua a assombrá-las. O assombro, as sombras. Porque, mesmo sem a presença de homens, o medo persiste? Penso no trabalho de um escritor, na sua paixão pelos hábitos, a paixão por fantasmas históricos, e como essa paixão dificulta a possibilidade de escrevermos outro texto. Quando mencionas a "dimensão formal pedagógica" de Sombras , penso sobre um teatro aprisionado em determinados modos de fazer. O medo que é "dito, não sentido" é consequência inevitável desse hábito no fazer: ele aparece nas palavras, mas não provoca corpo – seja o da atriz ou o nosso, como espectadoras. É um medo intelectualizado, emoção apenas nomeada. A metáfora da ponte, construída no segundo texto crítico desta edição, ecoa: Sombras  me parece erguido sobre uma travessia inacabada, o presente condicionado pelo peso do passado, o futuro obrigado a ser frustrado. Mas não há futuro porque não foi possível ou porque o autor não quis? Qual diferença entre fatos da vida e atos de uma dramaturgia? Também no segundo texto desta edição, especulamos que lembrar não é um simples ato de arquivo, mas de invenção. E talvez o que Sombras  me impeça, enquanto imagino o espetáculo diante de mim, seja inventar novos modos de atravessar a história já contada. Da mesma forma como a história recente de Portugal não acaba ao ser contada, será que o medo desaparece simplesmente por ser nomeado? Com isso em mente, seria possível, caro amigo, que você descrevesse um ou dois momentos de Sombras , valorizando a dimensão espacial e visual dos acontecimentos escritos no palco? Antes desses convites, amigo, gostava de reverberar esse seu pensamento sobre um teatro aprisionado em determinados modos de fazer. Pareceu-me estranho, de repente, que a ideia da “dimensão formal pedagógica” nos levasse a essa compreensão. E isso tem necessariamente a ver com algo que esta edição tem investigado: o binômio aprender x desaprender. Podemos tirar daí uma primeira conexão fragilizada entre pedagogia (ou formação artística) e “aprendizado” de como fazer. Como se “aprende” modos de fazer? (Onde ou como terão nos ensinado um modo de fazer?). Ou ainda, completando: como se “aprende” modos de fazer, uma vez que cada matéria, cada contexto, cada tema prescinde de um modo próprio e íntimo? Sinto Sombras  nessa problemática: aprisiona-se o medo do passado no passado e, de modo análogo, as convenções dos modos de fazer teatro me impedem de trazer aqueles momentos para perto de mim. (Aliás, há tempos não pensava nessa palavra: “convenções”). Preocupo-me com a sensação falsamente aliviante que me diz “que bom que esses já são tempos idos”. Aquela experiência, em mim, é uma ilha isolada: tem um começo, um meio, um fim. E realmente acaba. Não permanece comigo, não sai daquele teatro agarrada ao meu corpo, não atravessa as ruas, não me acompanha até a minha casa. Fico imaginando, agora, que essas duas palavras (“fantasma” e “ponte”) que estão em ronda nesta edição, possam formar uma imagem interessante para o pensamento sobre pedagogia e formação artística. Volto, então, aos seus convites com essas duas palavras na cabeça. O primeiro momento que gostava de descrever é o instante em que sentamos na cadeira da plateia, respiramos fundo e começamos a tatear com os olhos o que é aquilo, o que pode vir daqueles objetos, daquela figura já em cena. E minhas primeiras respostas não são variadas: é um passado facilmente percebido como passado. Uma casa antiga, objetos antigos, sons antigos, de um telefone antigo, gestos antigos, dos dedos a rodarem os números para uma ligação telefónica antiga. E assim seguiremos: uma mãe dura e conservadora nos sinais, elegantemente composta para ser uma figura fechada, de poucas afetações. Diante da chegada surpresa da filha, nem mesmo com a presença também surpresa da neta recém-nascida, ela desestrutura sua pose. Parece não haver fantasmas suficientes para assombrá-la. O segundo momento que gostava de descrever é o momento em que a cenografia da casa se reorganiza para dar lugar a um ambiente hostil de aprisionamento. A filha termina presa pelas suas ações clandestinas e revolucionárias. A iluminação é avermelhada, a mãe revela que acompanhou as peripécias rebeldes da filha por estar em contacto direto com autoridades de polícia. Algo ecoa nessa traição intergeracional. Nesse momento, a transição cenográfica aprofunda ainda mais o abismo entre passado e futuro: as possibilidades de pontes entre tempos encerram-se com a alusão à desistência da filha em permanecer naquelas condições de aprisionada. Ela mesma não consegue imaginar outro futuro; e eu, diante daquela recusa, encerro a minha participação na história. Instigado por esse seu convite descritivo, amigo, fiquei querendo te perguntar (ou também te convidar a pensar) na conexão entre essas duas palavras diante de nossa mais recente edição: pontes e fantasmas. Se você pudesse inventar uma imagem com essas duas ideias, como ela seria? Permito-me imaginar que fantasmas são pontes e que estamos a atravessá-las. Seja com os pés no chão, com as pegadas do pensamento, com os batimentos do coração. E pontes são fantasmas pois nos assombra a possibilidade de sermos transformados, de não estarmos prontos, assombra-nos a insegurança de não sabermos integralmente algo. Quando especulamos, no terceiro texto desta edição, que “[…] é importante que as salas de aulas tenham muitas janelas”, creio que antevíamos a janela como uma moldura pela qual vemos o movimento. Aqui, para nós, o movimento é o emblema da transformação. E se fantasmas são pontes é porque, insistentemente, convocam-nos para atravessá-los, ou seja, para nos dedicarmos ao movimento da nossa própria transformação. Fantasmas são pontes porque fraturam a estabilidade do espaço, ora sendo verticais, para o fundo e ao dentro, com degraus derretidos, escorrimentos, ora sendo pontes que nos escorregam por anos, num instante, são pontes fantasmas por serem convites para o emaranhamento entre tempos; do mesmo modo como só são pontes se forem movimento, você já viu um fantasma parado, caro amigo? Voltemos ao dilema da expressão “dimensão formal pedagógica”. Aqui, rememoro que a criação de novos modos de fazer, como afirma um importante dramaturgo brasileiro, é resultado compulsivo da necessidade de expressão temática e não somente a procura artificiosa de novas formas: “a originalidade como sofrido ponto de chegada, e não ponto de partida.” Quando ouço “dimensão formal pedagógica”, no caso de Sombras , não entrevejo nem a fundação de um novo modo de fazer nem sequer a repetição de modos já estabelecidos ou reconhecíveis; sinto um enrijecimento da intenção pedagógica. Trata-se de um relato conclusivo ou de um convite à experiência das contradições que sustentam os ditos factos históricos? Em uma peça de teatro, existe a possibilidade de vermos uma questão através de um ponto de vista que escape ao senso comum? Em uma peça de teatro, existe a possibilidade de algo ser transformado, ou seja, há nesse teatro algum movimento? Faz pensar que o binômio “aprender x desaprender” deva ser ultrapassado enquanto oposição para ser reescrito enquanto adição: aprender + desaprender, afinal, aprender pressupõe desaprender, e desaprender propulsiona o aprendizado. Se a pedagogia artística está mais preocupada em ensinar do que desensinar, perdemos. Perdemos a frágil e delicada perceção do gesto artístico como incessante exercitação do posicionar-se: assumir posição, criar uma forma provisória, não total nem totalitária; tomar outra posição, compor outra resposta contextual ao desafio diante de mim. Aprender como fazer arte, aprender arte no gerúndio, movimento e transformação. Entre fantasmas, pontes, janelas e saberes que escapam, amigo, queria te pedir que olhasse para a nossa revista. Você conseguiria identificar três fantasmas que a revista esteja a cruzar neste momento? Meu primeiro pensamento, amigo, foi identificar a nossa prática a partir de três movimentos que nos assombram sempre, fantasmas que estamos sempre a cruzar, a cada texto, a cada edição. O primeiro fantasma mora na sensação da edição. Quero localizar a sensação da edição no nosso gesto primordial para a construção de um texto: a escolha. Todos os nossos textos nascem “a partir” de algo; são textos, assim, interessados em investigar como a escritura artística desse algo convoca a continuação de outras escritas. Um ponto de partida, no entanto, é imprescindível. Ele é qualquer? Ele, por si, já carrega uma intenção? Digo isso porque nossa terceira edição é a primeira a desvendar-se num tema, num assunto que funciona como uma ponte-fantasma (fantasma-ponte?) que nos ajuda a caminhar. O segundo fantasma mora na sensação da leitura. Essa, por sua vez, já está localizada no corpo que vê, no corpo que usa o tempo que tem para ser leitora de algo. No caso, os nossos corpos. O que é uma leitora? O que usa uma leitora ao ler? E o que mais ela faz que não apenas ler? Sempre achei instigante a nossa posição-leitora: não aquela que espera pelo texto a ser lido, mas aquela que cria enquanto lê. O terceiro fantasma mora na sensação da escrita. É quando a leitora precisa escrever aquilo que leu. Mas como ela escreve uma leitura? Como ela escreve aquilo que escapa da leitura e que, ainda assim, parece querer continuar? É o fantasma que cruzamos quando assustamos o próprio fantasma, ao transformar leitura (por escrito) em mais leitura (por escrever): prolongar a vida do processo artístico, a partir do texto que se escreve. Por fim, não acreditamos no texto crítico como armadilha para esses fantasmas, nossos textos críticos querem celebrá-los; afinal, o que os fazem ser o que são é exatamente esse instinto incapturável que partilham, seus formatos incompletos, escorregadios. É como sentir a presença de algo sem vê-lo. Ou perceber que quando encontramos o nome de algum sentimento, ele escapa e não está mais lá. Sinto, às vezes, em muitas críticas que leio por aí que elas intencionam capturar os fantasmas e exibi-los como uma descoberta. Descobertas, eles jamais serão porque ali já estavam – e tampouco podem ser capturados. Nossa tarefa é seguirmos permanentemente assombrados. PROGRAMA DE ESCRITA Gustavo Colombini assistiu ao espetáculo Sombras , com dramaturgia de Miguel Falcão e encenação de Ana Nave, no dia 6 de outubro de 2024, às 19h, na Sala Estúdio do Teatro da Trindade, em Lisboa. De 9 a 30 de outubro, através de um documento de texto compartilhado, Colombini e Diogo Liberano escreveram um diálogo a partir do seguinte esquema: Liberano pergunta a partir do primeiro texto da edição; Colombini responde a partir de Sombras e faz uma nova pergunta ; Liberano responde a partir do segundo texto da edição e faz uma nova pergunta; Colombini responde a partir de Sombras e faz uma nova pergunta ; Liberano responde a partir do terceiro texto da edição e faz a última pergunta; Colombini responde . Por fim, em 31 de outubro, os dois finalizaram juntos esse texto .

  • Cena 4: Da paixão pelo hábito da indiferença

    Algo que fica da cena performativa contemporânea de Portugal “A que tempo pertence um trabalho artístico?”, era com essa frase que o performer começava a sua apresentação. Depois completava: “Encenar um texto com décadas de idade torna esse texto contemporâneo? Citar o passado sem esforço algum para revirá-lo e provocá-lo, ainda assim, é uma manifestação poética?”. Depois, ele abria um caderno e lia algumas frases aleatórias para a plateia. A primeira frase era: “Sou uma viajante perdida no mar de informações, afogada por ondas incessantes de dados que me arrastam. Sou levada sem direção por correntes imprevisíveis de notícias e ruídos.” A segunda era: “A tempestade de palavras me envolve, machucando minha lucidez e me impedindo de pensar.” A terceira era: “As questões deste momento parecem vastas, e as vozes discordantes tornam difícil ouvir qualquer princípio de verdade. Tento escapar das armadilhas das opiniões, mas sua inundação me arrasta de volta, impedindo qualquer fiapo de compreensão.” A quarta era: “Busco um sítio para descansar meus olhos, onde a paragem me permita assentar minha mente, mas sinto-me cansada, e não é simplesmente um cansaço.” A quinta era: “Todo dia de manhã, eu desembarco num país estrangeiro. A língua é familiar, mas desconheço as pessoas, os assuntos. Queria voltar para o meu país um dia. Se eu lembrasse qual é.” A sexta era: “…” G.O.L.P. - Fotografia de Maglio Pérez Em seguida, o performer pergunta: “Pode um artista hoje em dia dar-se o direito de não se preocupar com as reverberações que a sua criação artística produz na época em que está? Em que medida ao dar-se esse direito, isso não se tornaria um profundo e autoritário exercício de indiferença?” “Indiferença a quê?”, alguém da plateia levanta-se e diz. Ouvem-se alguns instantes de silêncio. Depois a mesma pessoa volta a levantar-se e diz: “Não sou alguém da plateia”. E continua: “Tenho um nome, uma história e muitas opiniões. E o performer retruca: “Mas ninguém aqui chamou-lhe de ‘alguém da plateia’”. Peço desculpas, fui eu que chamei. “Indiferença a você”, o performer continua. “Veja: um exemplo da indiferença de um artista pode ser observado quando ele insere no próprio trabalho que faz uma crítica à natureza alienante de seu próprio trabalho. Ao se tornar o foco de suas próprias piadas, o artista parece buscar proteção contra críticas externas, antecipando-as.” A plateia ri. A plateia para de rir. A plateia faz silêncio. A plateia volta a rir do seu próprio silêncio, depois para de rir novamente. A plateia, então, cai no sono. Dorme por alguns minutos e depois acorda. A plateia está séria. “É isso que está a se passar aqui!”, alguém da plateia levanta-se e diz. Alguém com nome, história e opiniões. “Isso que está a se passar aqui diante de nós pode ser visto como uma forma de você, dito artista, esquivar-se de suas responsabilidades! Suas responsabilidades de artista!”. O performer olha em silêncio. “Faça-nos a pergunta!”, a plateia grita. “Que pergunta?”, o performer responde. “Você sabe qual pergunta!!!”, a plateia retruca. O performer, então, respira fundo e acata o pedido: “Ok! Quais são as minhas responsabilidades como artista?”. A plateia fica em silêncio. Todos devem estar a pensar: “Mas em que época estamos?”. Performer e plateia, então, encaram-se em um longo silêncio, por um longo tempo. Nenhum telemóvel toca, nenhuma garganta tosse. Então, começam a chorar juntos por alguns minutos. Em seguida, caem todos na gargalhada diante daquela situação. E, então, voltam a ficar sérios. Levantam-se, abraçam-se e despedem-se. As Bruxas de Salém - Fotografia de TUNA/TNSJ LEIA TAMBÉM Cena 1: Da fronteira entre corpo e pensamento Cena 2: Da mistura entre autoridade, história, memória e simplicidade Cena 3: Da desconfiança do que pode o teatro Cena 4: Da paixão pelo hábito da indiferença PROGRAMA DE ESCRITA Gustavo Colombini, a partir da leitura e do estudo de textos críticos da Esse texto  ( O teatro como indiferença , Hashtag e Planeta melancólico ), compôs uma reflexão buscando manifestar uma questão central da cena performativa contemporânea de Portugal. Os três textos estudados pelo autor foram atribuídos de modo aleatório, mesclando textos das três primeiras edições da revista. Após criar o texto, Colombini e Diogo Liberano fizeram uma leitura que gerou posteriores aprimoramentos na escrita. Por fim, juntos, os editores buscaram identificar e nomear a questão abordada, fazendo dela o título desse texto.

  • Cena 3: Da desconfiança do que pode o teatro

    Algo que fica da cena performativa contemporânea de Portugal Para mim, o mais importante na tragédia é o sexto ato: o ressuscitar dos mortos das cenas de batalha, o ajeitar das perucas e dos trajes, a faca arrancada do peito, a corda tirada do pescoço, o perfilar-se entre os vivos de frente para o público. […] Wisława Szymborska — Desejas algo. — Antes ter dito boa tarde. — Aqui é sempre noite. — Não tentarei esconder. — Seu espanto é visível, e delicado. — Lembrou-me uma poesia, um trecho diz que “o mais sublime é o baixar da cortina / e o que ainda se avista pela fresta: / aqui uma mão se estende para pegar as flores, / acolá outra apanha a espada caída”. — E daí? — Pensava no som da espada a cair. — Aqui já muitas caíram. — Fora daqui outras são erguidas. — Tens as mãos enfiadas nos bolsos do casaco. — Tens as cortinas abertas hoje. — Elas sabem fechar. — Meu espanto, não tentarei escondê-lo. — São apenas impressões sobre o teatro. — A vida em acontecimento. — E o que mais? — Em potência, quero dizer, a vida em potência. — E vossa teimosia de usar as mesmas palavras. — Incomoda-te eu dizer “a potência do teatro”? — Você morrerá, mas eu continuarei morrendo. — Preferes “a urgência do teatro”? — Imagine que há alguém ali, sentado, a ver teus passos sobre esse chão de madeira. O que pensas que tal pessoa veria? — Não sei, talvez, talvez visse a vida em potência, olha aí, o vício, eu percebo, a vida em potência não seria o que essa pessoa veria, mas ela veria algo, um ser, eu, alguém, ela veria alguém a fingir, não no sentido ruim, no sentido bom, foda-se, quero dizer, alguém a representar, foda-se, sinto que todas as palavras que digo são indevidas, não importa, veria algo vivo, percebes? A pessoa sentada na plateia a olhar para este palco veria algo vivo, percebes? — Percebo. É mesmo na vida onde mentiras acontecem. Os Outros - Fotografia de Estelle Valente — Estive numa aula faz dois anos. Ou um. Faz quase dois anos, enfim, e a investigadora convidada disse uma coisa intrigante. — Há farpas saindo das tábuas do proscénio, atenção. — Não faz mal, ela disse: “você disse escrever para teatro, mas nunca entrou num teatro apenas para ter com ele uma conversa, não é mesmo?”. — Imaginar um espaço como ferramenta; este sítio como um microfone. — Entrei aqui, portanto, apenas para observar. — Mesmo o silêncio, aqui, microfona. — Por isso comparecer. — Por isso, aquilo. Por aquilo, ainda hoje isto. — Não faço um simples elogio a um simplório anacronismo. — Simples, complexo, frio, quente, passado, futuro, tudo palavra, como antes. — Estás a zombar de mim? — Não aplaudimos palavras de ordem nem certezas, não seguimos tendências ou modas, aqui há sempre muitas maneiras para dizer o mesmo. — Tenho pensado que trabalhamos tanto para fazer uma peça de teatro e, no entanto, quando estamos sobre um palco, a apresentar a tal peça, é como se não conhecêssemos o sítio onde pisamos. — A tal peça sobre o palco, sempre a elogiar imaginações, possíveis e impossíveis, a peça tal como um modo demasiadamente humano de se livrar da responsabilidade que deveria ser desejar, ou seja, dar a ver imagens. — Precisava de algum exemplo. — Precisava ou precisa? — Tens um horrível senso de humor. — Acenderam uma fogueira, veja. — Era cenográfica? — Tinha fogo, imagine. — Mas de papel? Quero dizer, não papel a queimar, pergunto se o fogo era representado com ventoinhas e papeis coloridos, a flamejar? — E se assim fosse, não queimaria? E ao fogo nada mais é possível que não apenas queimar? — Achei que estivéssemos a conversar. — Não estás pronto para confiar no teatro. Última memória - Fotografia de Estelle Valente — Outro exemplo. — Outro exemplo? — Outro: aquela janela, a que já não podemos ver. Pois bem, ela foi quebrada. — Quebrada com uma pedra? — Quebrada com um sopro? — Isso não é mesmo uma conversa. — Isso, ao menos, não é uma conversa entre você e outro alguém. — Isso é uma pedra, sendo fatiada ao meio. — Isso é um problema, sendo atravessado. — Isso é um, ou seja, isso é um diálogo, não é um diálogo? — És esperto. — E velha. — És charmosa. — Um velho charmoso. — Um diálogo, ou seja, um através de, um por meio de… — Um por meio das palavras, por meio do discurso. — Um através da razão? — Atravessamento da razão. — É isso que escuto. — É o que digo. — E é isso que penso. — Observe que mesmo o modo como penso. — O modo de pensar. — Aqui dentro o pensar funciona de outro jeito, aqui dentro. — Quisera eu morar dentro de um teatro. — Quisera meu eu não ser apenas eu mesmo. — Queria fazer uma pergunta. A artista caminha, cabisbaixa, sobre o espaço vazio e com cortinas abertas. — Se muitas janelas já foram quebradas aqui, posso ainda abrir o alçapão? O teatro responde, de um jeito ou de outro, o teatro sempre responde. — O alçapão: há sempre algo não dito, mesmo depois de tantas palavras. Saiba: no momento em que questionas, o teatro já cá está. LEIA TAMBÉM Cena 1: Da fronteira entre corpo e pensamento Cena 2: Da mistura entre autoridade, história, memória e simplicidade Cena 3: Da desconfiança do que pode o teatro Cena 4: Da paixão pelo hábito da indiferença REFERÊNCIA SZYMBORSKA, Wisława. Poemas . Seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. PROGRAMA DE ESCRITA Diogo Liberano, a partir da leitura e do estudo de textos críticos da Esse texto  ( Último socorro , Do fazer imaginar e Que as salas de aula tenham muitas janelas ), compôs uma reflexão buscando manifestar uma questão central da cena performativa contemporânea de Portugal. Os três textos estudados pelo autor foram atribuídos de modo aleatório, mesclando textos das três primeiras edições da revista. Após criar o texto, Liberano e Gustavo Colombini fizeram uma leitura que gerou posteriores aprimoramentos na escrita. Por fim, juntos, os editores buscaram identificar e nomear a questão abordada, fazendo dela o título desse texto.

  • Cena 2: Da mistura entre autoridade, história, memória e simplicidade

    Algo que fica da cena performativa contemporânea de Portugal Girafas - Fotografia de Jorge Gonçalves Antes de dormir, escreve no papel: Três tarefas para a cena contemporânea e dezoito derivações (digressões). Exibir o passado no presente e apresentá-lo ao futuro como um animal vivo. Olhar a autoridade nos olhos. Desaprender com a simplicidade. Exibir o futuro no presente e apresentá-lo ao passado com simplicidade. Olhar o animal vivo nos olhos. Desaprender com a autoridade. Exibir a autoridade do passado no presente e apresentá-la a um animal vivo. Olhar a simplicidade nos olhos. Desaprender o presente. Exibir um animal vivo no presente e apresentá-lo como autoridade. Olhar para a simplicidade do futuro. Desaprender com os olhos. Exibir a simplicidade no presente e apresentá-la aos olhos como passado. Olhar o futuro nos olhos. Desaprender como um animal vivo. Exibir os olhos da autoridade e apresentá-los como um animal vivo. Olhar o passado no presente. Desaprender com o futuro. Exibir a autoridade nos olhos e apresentá-la como passado a um animal do futuro. Olhar os olhos da simplicidade. Desaprender com o presente vivo. Pai para jantar - Fotografia de Patrícia Black LEIA TAMBÉM Cena 1: Da fronteira entre corpo e pensamento Cena 2: Da mistura entre autoridade, história, memória e simplicidade Cena 3: Da desconfiança do que pode o teatro Cena 4: Da paixão pelo hábito da indiferença PROGRAMA DE ESCRITA Gustavo Colombini, a partir da leitura e do estudo de textos críticos da Esse texto  ( O singelo supérfluo , Animal vivo e A priori ), compôs uma reflexão buscando manifestar uma questão central da cena performativa contemporânea de Portugal. Os três textos estudados pelo autor foram atribuídos de modo aleatório, mesclando textos das três primeiras edições da revista. Após criar o texto, Colombini e Diogo Liberano fizeram uma leitura que gerou posteriores aprimoramentos na escrita. Por fim, juntos, os editores buscaram identificar e nomear a questão abordada, fazendo dela o título desse texto.

  • Cena 1: Da fronteira entre corpo e pensamento

    Algo que fica da cena performativa contemporânea de Portugal O pensamento não é nenhum meio para o conhecimento. O pensamento abre sulcos no agro do ser. Por volta do ano de 1875, Nietzsche escreve o seguinte: "Nosso pensamento deve ter o cheiro forte de um trigal numa noite de verão". Quantos ainda possuem olfato para esse cheiro? Martin Heidegger Longe do terror ou de qualquer fantasia, aqui temos a imagem de uma cabeça sem corpo. Uma cabeça viva, vivendo sua vida ordinária, sem as marcas de ser mais ou menos algo que, talvez, deveria ter sido. A cabeça sem corpo não é menos nada. Sem corpo, ela existe à revelia de qualquer falta, é sem memória, sem saudade de uma completude originária, porque sendo sem corpo, por dedução, é cabeça sem história. Uma cabeça desanuviada daquele longo desfile de acontecimentos que fazem do corpo uma morada para uma identidade fixa, ainda que trêmula e insatisfeita. A cabeça sem corpo agora caminha pelas ruas. Tranquila, tem suas tarefas, e hoje é terça-feira e ontem nada. E não falamos aqui de pernas ou braços, de como uma cabeça anda ou corre, se tropeça a cabeça – não falamos disso porque, se sabemos que quem tem boca vai à Roma, deduzimos o passeio dessa cabeça que, apesar de não ter corpo, sim, tem boca. É quando a própria ideia de corpo precisa ser revista. E como é bom, a partir de agora, olhar para aquela cabeça e dizer: sim, estamos diante de um corpo em movimento. E aquele corpo tem uma extensão diferente, se comparado a outros corpos. Esta cabeça sustenta e fomenta alguma vida. Ela sorri, se abre, fecha-se, soa, soa e sua pensamentos. Era onde gostaríamos de chegar: nos pensamentos da cabeça. Se é que ela pensa, se é que os pensamentos são dela. Pensar seus pensamentos como gestos inevitáveis daquilo que uma cabeça é: uma cabeça. Mas sem diligência. Pensamentos não pedem licença, não precisam de rigor, não se afligem com a chuva, não tratemos, portanto, os pensamentos como se fossem feitos da mesma matéria dos nossos medos. Pensamentos existem porque vieram e se fizeram. Pensamentos não são ideias. Disse a mãe ao filho, antes que ele saísse para a escola, que o menino estava esquecendo – de novo – a mochila sobre a cama. O menino estalou os beiços, entrou no quarto, pegou a mochila e a colocou, pesada, nas costas. A mãe, como quem diz bom dia, disse que ele só não esquecia a cabeça porque estava costurada ao corpo. Era meio da tarde quando o diretor da escola ligou para o trabalho da mãe (uma grande imobiliária da cidade) para informar que seu filho havia cortado a cabeça num ato de protesto após uma aula de expressão corporal. – Mas como isso é possível?! – bradou a mãe ao telefone. O diretor, calmo: – Senhora, facto é que o menino está bem, mas partido. Quero dizer, a cabeça está aqui, sentada sobre minha mesa, e o menino também está aqui, sentado sobre a cadeira. A senhora quer falar com quem? – perguntou, receoso de que a questão pudesse causar demasiada impressão. Como se nada fosse - Fotografia de Renato Cruz Santos Na época em que viviam juntas, cabeça e corpo comunicavam-se de um modo que escapava à nossa compreensão do que é ser humano e/ou corpo. Se entrevistada, a cabeça talvez dissesse: – Não percebo a questão. Poderias reformular? – e, somado à ela, o corpo se mexeria, inquieto. Afinal, por que perguntar quando o que se deseja, na verdade, é afirmar? Na aula matinal, a professora não hesitou: – Há sempre o perigo de que um poema pense demais. – e esperou que a turma reagisse. Mas a turma não reagiu, o que não quer dizer que os corpos ali presentes não estivessem gritando. Até que Helena levantou a mão: – Eu sinto, professora, que há outro perigo. Pior que pensar demais é pensar de menos. A senhora não concorda? – E cá estamos nós, sempre a pensar, porque somos cabeças e estamos exaustas de ser expulsas do divinal reino dos corpos que já nem precisam pensar, corpos que debocham do pensamento como se isso aqui não fosse musculatura, que se movem e se dão por satisfeitos porque bom mesmo, dizem, é gesticular as mãos, numa manifestação trivial de baixíssima performance, porque corpo que é corpo só é corpo se se mexer! – disse uma cabeça à outra, ambas jogadas no chão da sala, enquanto alunas preparavam seus corpos para o início de uma aula prática. – Jamais teórica. Agora é tendência: fico sentada o dia inteiro e se tento participar sou tirada da conversa, como se pensar tivesse virado uma impropriedade, e como se uma cabeça só soubesse pensar. Você acompanha meu raciocínio? – perguntou uma cabeça à outra, que balançou a si própria, triste, mas concordante. É com escandalosa arrogância que um ser humano separa a cabeça do corpo, como se o corpo não fosse cabeça, como se a cabeça não participasse. – Como se o arrepio que me toma o corpo não fosse aquilo que é justamente por causa dessa maquinaria que é minha maldita cabeça! – disse Roberta à terapeuta, naquela tarde chuvosa em que pulsava nela um desejo de costura mais forte do que qualquer independência. – “Para o filósofo alemão Martin Heidegger, a separação entre cabeça e corpo não procede porque ele não pensa o ser humano em termos dualistas, como mente versus corpo. Na sua filosofia, o ser humano é um ser-no-mundo, inseparável de sua existência concreta e de suas relações. E é nesse sentido que também o pensamento não pode ser tratado como algo que ocorre isolado na ‘cabeça’, mas sim como um modo de ser que se dá no mundo, em meio às coisas e aos outros.” A Minha Vitória Como Ginasta de Alta Competição - Fotografia de João Peixoto Após ler o excerto acima, foi com desconforto que o professor, já descabelado, pediu a Pedro que ele se explicasse. Pedro largou o pedaço de papel no chão e respirou fundo, estavam todas sentadas no chão da sala após um extenuante treinamento físico. E o professor mirava o menino como se ele tivesse cometido um crime, não bem interessado no que ele diria e mais preparando-se, ruminante, para cortar sua fala caso fosse preciso. – Se trouxermos isso para a questão das artes performativas, que é o nosso trabalho, acho que temos perguntas desafiadoras. – disse o menino, um bocado trêmulo. – Quais perguntas, Pedro? –, arrematou o professor. – Ora, professor, podemos perguntar: como a cena pode evitar essa divisão forçada entre pensamento e corpo? Como podemos criar práticas onde imaginar, sentir e mover sejam inseparáveis? – e a turma, então, ficou em silêncio. E Pedro não tinha respostas porque perguntar não é demandar respostas. Nem Paulo nem Paula tinham o que dizer. Hugo sequer sabia o que pensar, e ainda assim pensava, o pensamento agitado, correndo, já molhado, abrindo frestas e provocando solavancos abruptos na sala confinada que pode ser uma visão de mundo imutável. E a língua do professor, impaciente, querendo transformar palavra em resposta, resposta em faca, querendo matar a dúvida para, em seu lugar, semear o apaziguamento, como quem, mais uma vez, catequiza o outro. – Penso que estamos a falar a mesma coisa, Pedro, ainda que eu não perceba, Pedro, por qual motivo as suas perguntas, Pedro, insistem em se distanciar um bocado daquilo que estamos, inclusive, Pedro, a treinar aqui, Pedro, ou seja, é o corpo que tem de responder, o corpo deve responder, não é a ideia, não é o teu pensamento, percebes? – ao que Pedro respondeu, irascível. – Mas pensar também é um gesto, e o corpo não é um país fora do mapa da mente, mas sim um lugar onde o pensamento acontece e se esbalda, professor, o senhor insiste em falar do corpo, mas fala através da mente, porque é uma coisa só!, e se você se ergue agora, para me provar que o movimento do corpo é algo sem relação com a mente, é mentira, é tudo mentira!, ainda estamos rivalizando corpo e mente! E apesar das exclamações, Pedro não gritou naquela aula. Ele ergueu-se e, logo ao chegar à porta, retornou, pegou sua mochila, outra vez esquecida, colocou-a nas costas e foi direto à casa de banho. Olhou-se no espelho, balançou a cabeça, e sem hesitar, fez o que insistentemente lhe ensinaram. O que acontece quando deixamos que o pensamento invente os pensamentos sem submetê-los à hierarquia do corpo? Talvez fosse necessário retornar à ideia de jogo. Não um jogo arbitrário ou meramente lúdico, mas um onde o corpo experimenta o pensamento sem precisar provar que pensa. Um jogo onde o gesto não se limite à execução, mas se dobre no tempo da imaginação. E se, em vez de cristalizar o pensamento, insistirmos na experiência do pensamento que sua, que se move junto ao corpo sem pretensão de controle? Se todo ato de comunicação é um esforço corporal, que toda ação realizada em cena seja um pensamento encarnado. Se o teatro é jogo, que seja um jogo que amplifique a reflexão, que faça do gesto um desdobramento do pensamento, e do pensamento um movimento imprevisível. Pois, afinal, se o poder teme as pessoas que pensam, não será exatamente porque o pensamento insiste em mover-se? LEIA TAMBÉM Cena 1: Da fronteira entre corpo e pensamento Cena 2: Da mistura entre autoridade, história, memória e simplicidade Cena 3: Da desconfiança do que pode o teatro Cena 4: Da paixão pelo hábito da indiferença REFERÊNCIA HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem . Tradução Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2003. PROGRAMA DE ESCRITA Diogo Liberano, a partir da leitura e do estudo de textos críticos da Esse texto  ( A competição desumana , Virar em diferentes direções e Lusophone manifesto ), compôs uma reflexão buscando manifestar uma questão central da cena performativa contemporânea de Portugal. Os três textos estudados pelo autor foram atribuídos de modo aleatório, mesclando textos das três primeiras edições da revista. Após criar o texto, Liberano e Gustavo Colombini fizeram uma leitura que gerou posteriores aprimoramentos na escrita. Por fim, juntos, os editores buscaram identificar e nomear a questão abordada, fazendo dela o título desse texto.

  • A priori

    A partir dos espetáculos assistidos e dos textos criados para a segunda edição d’ Esse texto Pensar neste diálogo entre a criação de alternativas para a vida e a sustentação de um olhar crítico lançado ao mundo. Pensar num gesto artístico, no ato de uma encenação teatral, e em suas inúmeras escritas. Considerar que esses textos – o texto escrito a priori e a cena escrita a posteriori –, quando em diálogo, podem trazer consigo inúmeras escolhas, ou ainda, inúmeras sustentações ao olhar crítico, que dispensariam qualquer hierarquia ou verdade única. Tanto Girafas  quanto Uma vida no teatro  são encenações teatrais que partiram de um texto escrito previamente: o primeiro de Pau Miró, catalão, escrito em 2009; o segundo, de David Mamet, estadunidense, escrito em 1977. De algum modo, é possível vislumbrar que suas respectivas encenações foram ao encontro de suas dramaturgias preexistentes de um jeito menos combativo. O jogo da cena, a prática da encenação, seguiram um caminho já proposto pelo texto, tomando a dramaturgia como uma pedra basilar; amplificaram os gestos que a dramaturgia trazia sem propor necessariamente gestos novos. Talvez, tais espetáculos, ao optarem por uma relação menos combativa com o texto, operaram por uma via mais conservadora, optando assim por uma composição cênica mais aderida ao texto, conservando aquilo que o texto trazia, sem inventar tantas outras camadas. Numa acepção primeira, “conservador” seria algo ou alguém que conserva. Um teatro conservador, desse modo, seria aquele feito a partir da premissa de conservar – e nem tanto modificar – o que foi escrito a priori . Seria um modo de devolver um sentido primeiro à ação de conservar, já que é fácil reconhecer o quanto ela foi sequestrada pela noção de conservadorismo, ou seja, a defesa pela manutenção das instituições sociais tradicionais numa cultura específica. Sem dúvida, G.O.L.P. , o outro espetáculo lido nesta Edição 2 d’ Esse texto , é a peça teatral que menos se aproxima do pequeno conjunto criado pelas duas peças já citadas. Em Girafas  e Uma vida no teatro há uma atividade em curso dentro das próprias dramaturgias e suas respetivas cenas parecem ter dado outros corpos a tais tensões e transformações que cada texto (já) apresentava. O labor da cena, por certo, mantém-se como um trabalho de invenção, adicionando novas texturas aos sentidos escritos pelo texto, sem – como já dito anteriormente – proporcionar relações contraditórias entre as palavras do texto e os gestos da cena. Afirmar isso, no entanto, não é dizer que o texto escrito a priori  não tenha, em si mesmo, seu próprio repertório de contradições. Querer dialogar e tramar impressões sobre as relações que a criação contemporânea vem estabelecendo entre o texto escrito a priori e a escrita da cena teatral. Querer conversar sobre um tipo de assunto que poderia ser considerado ultrapassado. Querer poder confiar que, justo por seu (algum) anacronismo, há nesta conversa alguma abertura para uma mirada crítica e criativa do fazer contemporâneo. É certo que a atividade teatral do século 20, através do incessante desenvolvimento da arte da encenação teatral, trouxe à consciência as várias autorias que não apenas aquela assinada por um texto que é escrito previamente à sua colocação em cena. Então qual é a questão? "Queria que falássemos tão somente daquele texto escrito previamente à sua futura encenação", ele disse. Mas sem medo de soar antigo ou ultrapassado, completou, "eu realmente queria que falássemos sobre o texto que foi escrito antes da sua versão teatral. Teria esse texto, aquele texto, teria aquele texto ainda alguma relevância hoje?" [1] Proposição feita: o agir-dizer crítico – aquele olhar crítico mencionado a priori – estaria ou poderia estar na intersecção – no entre – de uma específica sobreposição. Dito de outro modo: será nessa sobreposição onde a sustentação de um olhar crítico moraria. Ou ainda: o texto a ser dito em cena transforma a cena que dirá o texto; a cena que diz o texto transforma o próprio texto que nela foi dito. Franco Ruffini (1934–2020), teórico e historiador de teatro italiano, diz sobre o “texto” do texto, o elemento rígido, direcionado, programado, e o “palco” do texto, o elemento flexível, não direcionável, não programável. O “texto” do texto é o componente de concatenação (ou encadeamento), ele diz; enquanto o “palco” do texto seria o componente de simultaneidade. A conversa entre concatenação e simultaneidade daria origem à energia, isto é, a vida do texto. Harald Weinrich (1927-2022), linguista alemão, retomando uma palavra de Paul Valéry, escreveu que a gramática é uma memória do corpo. O corpo também, no caso aqui discutido, poderia ser tratado como uma memória da gramática: uma imagem para essa sobreposição (emaranhado?) entre cena-corpo-gramática-texto. Para tentar responder à pergunta sobre haver ou não, hoje em dia, alguma relevância no texto escrito a priori , uma memória. A memória de uma sensação de simplicidade logo após a apresentação de Girafas , de Pau Miró, em encenação dos Artistas Unidos. Diante do trabalho posto em cena, viu-se uma história que prescindiu de uma engenhosidade temporal ou de uma virtuosidade cênica e espacial para acontecer. A história, diante da audiência, foi acolhida pelo palco, ao passo que acolheu também a atenção dos olhos que a miravam; acolhimento proporcionado, sobretudo, através da palavra que era dita. No espetáculo  G.O.L.P. , escrito por Alexis Moreno e com encenação do TEP & Teatro La Maria, não era sabido se o texto tinha sido escrito antes da encenação ou durante o processo de sua composição. (Importante seria lembrar que as experimentações contemporâneas também seguem exercitando outras causalidades e temporalidades entre texto e cena: não seria obtuso pensar numa escrita feita durante o ato teatral ou mesmo após uma peça já ter sido feita). Ainda assim, a memória quando diante tal peça evoca um sabor indefinido, como se aquela cena tivesse sido criada a partir de um texto que não esteve em reserva , que não teve tempo para descansar ou conhecer a si mesmo. Talvez por isso, e isso é uma hipótese, tal espetáculo não pareça ter conseguido criar alternativas para a vida presente nem sequer sustentar um olhar crítico lançado ao mundo corrente. Intrigantemente, nessa segunda edição, os trabalhos com textos escritos previamente à sua versão cênica parecem ter oferecido uma abordagem crítica mais consistente ou contundente. Afirmar isso não é deliberar que essa abordagem crítica seria uma característica padrão desse tipo de operação ou procedimento artístico. Eis o porquê dessa sensação de algo intrigante: os trabalhos criados com textos escritos a priori ofereceram mais desaprendizado e, ao mesmo tempo, trouxeram mais simplicidade para o nosso contexto epocal. Há trabalhos – criações da cena – que reiteram e replicam a época em que nascem sem nada oferecer em termos de um estudo crítico que vá além dessa mesma época. É como se pintassem e mostrassem paisagens demasiadamente fiéis ao contexto em que estão, oferecendo aos espectadores uma mirada que repete o contexto sem abrir contradições, que não é ou não parece ser capaz de ressignificar nenhuma intenção. Há, no entanto, outros trabalhos que já nascem críticos de um tempo, que pretendem não somente exemplificar aquele determinado agora, colocando-o em cena, mas também trazerem consigo algum ímpeto contestatório. São trabalhos que nos fazem desaprender aquilo que era conhecido justamente porque oferecem outras linhas, outras histórias e repertórios de sentimentos e sentidos. Há inúmeras diferenças entre composições textuais e cênicas, mas o que talvez esteja em questão aqui seja a possibilidade de pensarmos as diferenças que existem dentro de um mesmo texto. As diferenças no texto e no palco do “texto”, as diferenças no texto e no palco da “cena”. Pensar, como sugere a filósofa brasileira Denise Ferreira da Silva, em diferenças sem, no entanto, apelar para a famigerada separabilidade. Reconhecer a diferença – as diferenças – desses distintos modos de compor não é o mesmo que traçar valorações ou hierarquias. É no conversar, dialogar, atritar entre os diferentes textos que compõem um mesmo texto que conseguiríamos tanto criar alternativas como a sustentação de um olhar crítico ao mundo. Entrar numa sala de trabalho, compor uma peça com um elenco, escrever ações físicas e movimentos, apurar gestos e durações, definir o espaço e os efeitos da iluminação, a cor e o corte dos cabelos, criar as composições musicais e interferências sonoras, escolher aquele objeto específico; compor tudo isso, sem dizer, no entanto, palavra alguma. Essa peça, na verdade, seria chamada de encenação a priori . E só depois, diante dessa encenação previamente escrita, é que uma dramaturga viria a compor um texto capaz de escrever (continuar escrevendo) aquela cena pré-concebida. Começada essa reflexão com a suspeita do seu possível anacronismo, é importante reconhecer agora que hoje, com toda a emancipação conquistada pela cena-que-escreve, tal emancipação poderia ser lida, em muitos casos, como uma nova (e velha) disputa pelo protagonismo do poder. Quem tem a voz final? Eis uma pergunta cuja voz ainda se faz ouvir. Em que medida a desfeita que costuma ser feita do texto escrito a priori  não é também uma desculpa para um escrever cênico indisposto a ser contrariado? A sensação de simplicidade. A aparição dessa sensação, dessa palavra “simplicidade”, quase como saldo daquela experiência com aquele específico espetáculo. As práticas de criação contemporâneas pensam sobre a possibilidade dessa despretensão? Ou faz parte da criação contemporânea, irrevogavelmente, afetar-se pelo múltiplo, pelo fragmentado, pelas tecnologias e pelo acúmulo, como forma de responder a um contexto de atualidade? A cultura contemporânea muitas vezes nos impele a começar novos projetos, acumular tarefas e demasiadas informações, nos impele a ter excessivamente muitas opiniões, mas falha em nos permitir encerrar ou concluir pequenas tarefas. Cria-se, assim, um estado constante de inquietação e ansiedade, onde estamos sempre ocupados, no entanto, raramente alcançados – ou tocados – por um senso de realização ou finalização. Não parece ser, portanto, sobre a correria dos tempos, como tanto disseram, mas sobre a nossa incapacidade de concluir um simples gesto. [1]  Tal indagação nasceu a partir dos textos criados para a Edição 2 da Esse texto . Com aproximadamente 30 dias de intervalo entre um texto crítico e outro, esta edição escreveu a partir de encontros com espetáculos criados a partir de textos escritos pelo catalão Pau Miró ( Girafas ), o chileno Alexis Moreno ( G.O.L.P. ) e o estadunidense David Mamet ( Uma vida no teatro ). PROGRAMA DE ESCRITA Diogo Liberano propôs a Gustavo Colombini, em 3 de junho de 2024, a criação de um diálogo a ser escrito num documento partilhado entre os dois. Para tal escrita, deveriam usar alguns de vários ingredientes inventados, a priori , por eles. Exemplos: dar um depoimento pessoal que pertença a sua infância; elaborar uma preocupação com o futuro das artes performativas; fazer uso de 1 repetição visível; roubar 1 frase ou sentença escrita pelo outro e inseri-la na sua própria fala; fazer uso da palavra "robustez"; inserir no trecho textual qualquer passagem de qualquer livro, aleatoriamente escolhido, aberto na página 73; fazer uso da palavra "sinceridade". O diálogo aconteceu de 10 a 17 de junho, quando foi interrompido devido a dificuldades em relação ao jogo proposto. De 24 a 30 de junho, Liberano editou o diálogo original a fim de criar esse texto . Edição 2 (Março, Abril, Maio e Junho de 2024) Animal vivo  – Publicado em 27 de março Hashtag  – Publicado em 24 de abril Planeta melancólico  – Publicado em 23 de maio A priori - Publicado em 30 de junho

  • A competição desumana

    A partir de A Minha Vitória Como Ginasta De Alta Competição de Lígia Soares Não é preciso ouvido atento para descobrir que os passos pelos quais avançamos rumo ao futuro soam ocos. Mas é preciso concentrar o ouvido quando se quer descobrir que tipo de vacuidade ressoa em nossa trajetória. Há vários tipos de vacuidades, e a nossa, deve ser comparada com outras, se a meta for compreendê-la. O incomparável é incompreensível. Se afirmarmos ser nossa situação incomparável, desistiremos do esforço para captá-la. É assim com a competição humana. Ao deparar-me com as estruturas que estão erigidas no palco de A Minha Vitória Como Ginasta De Alta Competição , minhas impressões vagueiam entre imagens de guerra e desporto. São traves, barras fixas, assimétricas, paralelas que, independentes da tecnicidade dos nomes que ganham, remontam a uma lógica de linhas da ginástica olímpica. Estamos estranhamente acostumados a, ao olhar para aquelas estruturas, imaginar um salto no ar e ficcionalizar uma aterragem. São equipamentos que definem uma dinâmica que se executa também no invisível: é impossível não olhar para eles e associá-los ao movimento dos corpos que os utilizam. A presença humana naqueles aparelhos é uma imagem tão indiscutível quanto dependente: existem para as mãos, para os punhos, os pés, para o corpo humano desempenhar movimentos que soam não-naturais, como giros, cambalhotas, torções, pêndulos, mortais, impulsos, quedas. No escuro, são edifícios de ferro e plástico; na luz, são incentivos ao desafio. Há nessas contradições uma parceria entre o corpo e a imaginação. É muito comum que espectadores de primeira viagem da ginástica artística fiquem, para além de enlevados com a flexibilidade, a força ou a destreza das ginastas, um bocado perdidos com a dinâmica da competição. Junto de todo o espetáculo do desporto, há um certo caos controlado entre técnica e beleza; uma inquietação entre o objetivo e o subjetivo. Como se julga um movimento? Como se diferencia um gesto de outro? Como se usa a matemática para, nesse caso, provar a existência da perfeição? Qual a diferença entre um conjunto de movimentos cuja nota é dez e outro conjunto de iguais movimentos cuja nota é nove ponto nove? Como executar movimentos idênticos em corpos completamente distintos? Por que o desequilíbrio rouba uma vitória? Qual o sentido de uma queda perfeita? A matemática, aqui, parece ter um papel sedutor. A contagem de pontos de uma competição de ginástica é, quem sabe, a compreensão mais profunda de que toda competição é pessoal e intransferível. Ela acontece naturalmente, desde um passado inalcançável, entre organismos vivos que coexistem no mesmo ambiente. É preciso estar vivo para competir (é preciso competir para estar vivo?). Animais competem por provisões de água, comida, parceiros sexuais ou outros recursos. Entre os humanos, entretanto, talvez o fruto mais conveniente da competição seja o ideal da rivalidade. Ideal este que também é hábito e cultura. Trata-se, este sim, de um ambiente estático, repetitivo ou imutável. Competimos e cooperamos. É preciso ser melhores, campeões, vencedores. Fincarmos sobre a linha imaginária da história a nossa existência, consagrá-la aos prémios, às medalhas, aos troféus. A concorrência, por exemplo, outro nome possível a esse estímulo de emulação, é um princípio importante das economias de mercado, dos negócios, acumula em si o propósito único de alcançar maior qualidade de um serviço ou de um trabalho que se oferece. Compete-se pelo gesto simbólico (ou não) da sobrevivência. É impossível hoje entender a humanidade sem a sombra que a competição nela ocupa. É, talvez, o ponto em que o desporto e a guerra tocam-se. Ambos são meios de convivência com os seus semelhantes, que pressupõem performances de habilidades, proezas, força, destrezas de índole física, grandes saltos, rápidas corridas, e favorecem o encontro coletivo ou individual com estados de exaltação. É um reino promíscuo dos adjetivos: mais rápidos, belos, fortes, ágeis, firmes, inteligentes, talentosos. Penso sobre a guerra enquanto a assisto ao trabalho em cena. Em todo caso, vitórias e derrotas são violentamente subjetivas. O estado de vitória é provisório, assim como derrotas são superadas com o tempo. Perder e ganhar conseguem ser verbos temporários e perpétuos segundo o ângulo da visão de quem os experienciam e, na complexidade de ambos, são verbos dolorosamente humanos. A Minha Vitória Como Ginasta De Alta Competição é, nesse ponto de vista, um pensamento ginástico-filosófico da vida como jogo. Duas ginastas, então, entram no palco e passam a dar sentido à crueza daqueles equipamentos. Entram com roupas cotidianas, são jovens, treinam e alongam-se. Entre treinos de movimentos, há qualquer memória das preparações militares; um corpo que se prepara para o desafio, com a leveza do costume de uma guerra. Durante a execução desses treinos corporais, conversam amigavelmente entre si, mas dialogam conosco, com as ideias que despejam sobre si mesmas, suas famílias, sobre o país em que vivem, sobre os dilemas do mundo. Logo estarão a retirar suas roupas de treino e revelarão seus maiôs característicos, coloridos e fúlgidos, disciplinados no caimento do corpo, como também são os seus penteados. Preparam-se para uma competição, em alguma medida, protegida ou representada: não estão em um ginásio, não há juízes, não haverá premiações, no entanto, ainda assim, é uma competição encenada para ser atravessada por pensamentos que, verbalizados ao público, implicam com os gestos que associaríamos às ginastas. Não deixam de ter em mente os valores, por exemplo, do código de pontuação emitido pela Federação Internacional de Ginástica. A ginástica, pela sua imagem de disciplina e rigor, não parece um ambiente de descontração e, por isso, a subjetividade daquela competição não revela as fragilidades do desafio naqueles corpos, mas os desafios do chão em que pisam. O trabalho de Lígia Soares, logo, propõe-nos uma duplicação daquelas figuras ginastas: elas estão entre nós, na plateia, e falam por elas. Sobre elas. Ou ainda, são elas mesmas sob outros ângulos discursivos, se fosse possível a desierarquização do espaço e do tempo. Dobram/dublam aquelas figuras a partir dos pensamentos que as distraem durante aqueles treinos e passam a carregar em nós qualquer certeza ofuscada que temos da indissociabilidade entre nosso corpo e nossa mente. Também estamos a pensar coisas ao assistirmos. Pensamos coisas dormindo, parados, sentados, a voar, a cair, pensamos coisas ao falar, ao calar, ao chorar, ao sorrir. O pensamento humano, como ginástica, é incessante como a forma de sua existência também o é. Assistimos aos movimentos olímpicos daquelas ginastas ao mesmo tempo em que ouvimos a construção de seus pensamentos enquanto elas se movem, como se escutássemos as palavras que habitam aqueles esforços. Vemos o pensamento a suar como suam os seus corpos. Ao duplicarem-se, corpo e pensamento agem como dois universos inseparáveis: o corpo que dança, pensa – o corpo que pensa, dança. Ao distraírem-se em suas reflexões, as ginastas e seus duplos acrescentam ao trabalho de Soares inúmeras outras dobragens: uma ginástica desportiva; outra, discursiva. As figuras que as dobram também coexistem, ora como treinadoras, ginastas ficcionais, ora como consciências em voz alta do corpo que executa. É essa, talvez, uma das sensações principais de A Minha Vitória Como Ginasta De Alta Competição : povoar com pensamento o gesto do movimento. A jovialidade das ginastas consegue, por isso, traçar uma linha atemporal, que passa através das gerações, sob a alcunha da vitória. A ideia da vitória. «Fazermos coisas incríveis, ultrapassarmo-nos, sermos os melhores em alguma coisa», como diz Lígia Soares, «é ainda olhado como um nobre traço da humanidade». Surpreendeu-me, como, a cada execução completa de um movimento, a plateia aplaudia as ginastas como se, de facto, elas estivessem em uma prova. Talvez os aplausos fossem em função da conclusão de um exercício, uma interação física para o seu incentivo, uma demonstração de amor. Ou ainda um esforço inconsciente para fazer continuar a separação entre o trabalho artístico e o entretenimento oferecido. Mas foi-me marcante como, ainda que diante de inúmeros pensamentos dignos de igual incentivo, é sempre o corpo executor que ganha o aplauso. Confunde-nos o êxito e o esforço; o produto e o processo de sua produção. Que espaço há entre o deslumbre dos corpos e as deslumbrantes capacidades dos pensamentos? Nesse caso, a hipótese de que a guerra, o desporto e a arte inscrevem-se como tipos semelhantes de trabalho, ganha com a montagem de Soares uma voz até então inaudível: precisamos atravessar a guerra, o desporto e o fazer artístico para ouvir do que tais acontecimentos são feitos. Essa é a «nossa vitória». Sofrer a contradição pacífica do pensamento como jogo de guerra, afinal é sempre ele que nos ajuda a descobrir novos modos de guerrear, dentro de nós, pelo mundo ou pelos nossos. Coexistir conosco e com a humanidade, atentos aos sons dos passos pelos quais avançamos rumo ao futuro. É quando o desumano torna-se o mais humano dos adjetivos. PROGRAMA DE ESCRITA Gustavo Colombini assistiu ao espetáculo A Minha Vitória Como Ginasta De Alta Competição no dia 4 de março de 2023, às 19h, no Centro Cultural de Belém (Lisboa); de 5 a 13 de março, escreveu uma primeira versão desse texto que, de 14 a 16 de março, foi comentado por Diogo Liberano; por fim, na sexta-feira, 17 de março, os dois finalizaram juntos esse texto . A Minha Vitória Como Ginasta De Alta Competição Conceção, texto e encenação: Lígia Soares | Interpretação: Lígia Soares, Maria Jorge, Beatriz Lapa, Rita Cerqueira | Música: João Lucas | Cenografia: Henrique Ralheta | Luz: Pedro Guimarães | Direção de produção: Mariana Dixe | Assistência de encenação e criação: Beatriz Gaspar | Residência de coprodução: O Espaço do Tempo | Residência Festival Materiais Diversos | Apoio: Ginásio Clube Português, Federação de Ginástica de Portugal, Vidalgym | Coprodução: Teatro Municipal do Porto, Centro Cultural de Belém, Teatro Académico Gil Vicente, Festival Materiais Diversos | A Minha Vitória Como Ginasta De Alta Competição foi escrita com o apoio da DGLAB- Direção Geral do Livro, do Arquivo e das Bibliotecas.

  • O teatro como indiferença

    A partir de As Bruxas de Salém , de Arthur Miller, encenada por Nuno Cardoso com produção do Teatro Nacional São João (TNSJ) Saí do teatro e caminhei sem saber para onde. Meus pés e pernas pareciam buscar algum contraponto. Uma densa floresta, talvez, onde fosse possível ver as coisas e os seres através de uma nitidez mais borrada, um recinto mais escuro e favorável ao mistério; algo assim não tão liso, limpo ou branco quanto a peça que eu acabara de assistir no Teatro Nacional São João. Ao cruzar a Rua de Entreparedes, olhei para o outro lado e flagrei um senhor-comboio com bastante idade. Em uma das mãos, ele segurava um cigarro aceso, e com a outra, puxava um pesado carrinho de compras. Aquela imagem: um corpo e o cigarro, a velhice no passo a passo, tudo tão inebriante, a fumaça saindo da boca, o tabaco feito um combustível, tudo tão estranho e pulsante; o ordinário escrito num arranjo inusitado. Aquela imagem em movimento era a minha floresta e dizia-me: “bem-vinda de volta à vida, companheira”. Escrita pelo estadunidense Arthur Miller em 1953, As Bruxas de Salém , setenta anos após a sua estreia, encontra uma nova encenação sobre o palco do TNSJ. Na versão de Nuno Cardoso, o célebre texto é consagrado ou, em outras palavras, parece ser tirado do uso comum e de nós, espectadoras, afastado. Este, talvez, seja o primordial dilema desta encenação: respeito demais a um texto e, por extensão, demasiada indiferença à época em que ele é encenado. Na trama de Miller, a pequena comunidade de Salém, em 1692, perde a sua retidão por conta da disseminação de mentiras. A bruxaria torna-se o argumento central para justificar vinganças entre as personagens ao passo que também, a metáfora escolhida pelo autor para questionar a perseguição do governo estadunidense aos preceitos comunistas. Na trama original, os ditos bons cristãos, acusados de bruxaria por um grupo de raparigas de Salém, percebem que, se acusações infundadas podem ser levadas a sério naquela comunidade, então é possível usá-las como moeda de troca. Ainda que, historicamente, tal dramaturgia tenha dinamizado a metamórfica crise do gênero dramático em meados do século passado, ainda assim, o jogo ilusório da representação dramática continua: será através do diálogo interpessoal entre personagens ficcionais que nós, espectadoras, poderemos tramar alguma conversa com os assuntos de nossa época. Ou não, pois o que parece acontecer, no caso desta encenação, é uma subtil transferência de responsabilidade do artista para o público: qualquer coisa que o artista fizer deverá ser interpretada pelo público a despeito do espírito crítico que o artista quisesse gesticular. Mas como, então, uma encenação atual desse texto convidaria as suas espectadoras a continuar a conversa do drama de Miller? Ou em que medida uma encenação confiaria por demais que a dimensão crítica de tal drama inscrever-se-ia por conta própria? A encenação de Nuno Cardoso é um jogo de triplicação da matriz textual. A cena repete o texto e, nessa operação, enfraquece-o tanto em intensidade como em intenção. Em que medida seria possível agregar ao texto de Miller outras ações e gestos, outros discursos, outras imagens? Tal pergunta não é feita para atualizar o texto original, mas, antes, para sinalizar o quanto dele continuaria nos dias de hoje. Sem esse tipo outro de ações e imagens capazes de agitar o original, a sensação é que aquilo colocado em cena existe a despeito das transformações em curso no mundo. (A única atriz negra, Lisa Reis, de um elenco composto por onze atores e atrizes, é aquela escolhida para interpretar uma escrava). Pode um artista – hoje em dia – dar-se o direito de não se preocupar com as reverberações que a sua criação artística produz na época em que está? E, em que medida, ao dar-se esse direito, este não se tornaria um profundo e autoritário exercício de indiferença? Penso que a discursividade do texto de Miller, praticamente transcrita pela encenação em questão, fala alto demais, sem dúvida, mas não parece falar para abrir conversa alguma. Quando as personagens choram, gritam, beijam e correm, no palco, o elenco finge chorar, gritar, beijar e correr; a escritura da cena vai-se firmando de um modo tão previsível que, em poucos minutos de encenação, um torpor despenca sobre as espectadoras e bloqueia qualquer atividade crítica que tal ficção textual quisesse abrir. Quando algo parece pulsar no palco, numa intensidade capaz de extrapolar a métrica da representação, isso ocorre quando personagens femininas sofrem agressões das masculinas (e, na plateia, é impossível não ler que são atores agredindo atrizes, ainda que sob a proteção do jogo teatral). Mesmo que possa existir alguma técnica no jogo de representar tais agressões, enquanto ações em movimento, elas se aproximam muito daquilo que eu sinto como uma real agressão e, mais que isso, inscrevem-se como aquilo que são: imagens, no caso, de mulheres sendo – mais uma vez – agredidas por homens. A representação continua como se as espectadoras não pudessem ler simultaneamente ações diferentes entre si. Num brevíssimo instante, porém, dois personagens discutem sobre a posse de uma propriedade e, enquanto discutem, um deles repete os gestos do outro. Pela primeira e única vez, algo estranho acontece no palco: e esse algo estranho faz-se brilhar e acende em mim alguma curiosidade. De imediato, o público pôs-se a rir, como eu, mas o brilho apagou-se rapidamente. Não era um gesto interessado em tensionar o texto do texto com o texto da cena, era só uma piada. Na boca de cena, uma tela translúcida recebe a projeção da versão fílmica realizada por Luís Porto especialmente para esta encenação. Nela são projetadas palavras, fragmentos textuais e, evidentemente, o filme em questão. Quando a tela é erguida, a encenação fílmica passa a ser projetada no fundo do palco. Cenograficamente, a área de cena é coberta por extensos platôs separados entre si por dois degraus. Há, portanto, o piso do palco, dois degraus, um novo platô, mais dois degraus e, por fim, o platô mais alto. Sobre este cenário, pendem postes de luz e eletricidade sem fios, postes com aparência de madeira numa provável alusão a árvores sem folhas de uma floresta apenas imaginada. Entre lentas subidas e descidas desses troncos, a cena instaura uma movimentação solene que reforça a exasperação da dança cênica que, desprovida de contrapontos, parece cansar-se de si mesma. A versão fílmica, ao contrário do que poderíamos supor ou desejar, nada revela além do que já nos conta o texto. O filme projetado sobre a cena e ao fundo dela é a outra cópia que encerra a triplicação do original de Miller. Não parece inscrever diferença alguma nem convocar ou propor outros signos para fora da representação. Sem dúvida, há no filme mais paredes e texturas, mais profundidades e nuances na iluminação, um plano ou outro que nos aproxima da expressão facial de uma atriz ou um ator, mas é só. O filme revela aquilo que eu, enquanto leitora, já escrevia a partir do texto em cena. Fica evidente, portanto, que encenar um texto com décadas de idade não necessariamente torna-o contemporâneo. Afinal, podemos supor que, para ser contemporâneo, é preciso mais do que apenas reverenciar hoje aquilo que fora criado antes. Citar o passado sem esforço algum para revirá-lo e provocá-lo, ainda assim, é uma manifestação poética? O contemporâneo da encenação de Nuno Cardoso mistura dramaturgia com projeções, cenários de metafórica plasticidade com microfones, e isso é fazer jus ao tempo que corre? O que vemos em cena, dito de outro modo, é um realismo sem contradição, sem contraponto ou constrangimento, ele é deliberadamente livre e, portanto, enganoso. Não possibilita às espectadoras nenhum tipo de experiência emocional um pouco mais rente ao senhor-comboio com o cigarro e as pesadas compras. Aquele senhor, no palco do mundo, trazia de modo ambivalente a dimensão perene da vida e a sua, por vezes, custosa continuação. Ou, noutras palavras, ele trazia consigo não apenas um punhado de compras como também uma concentrada ambivalência. Podemos aprender as regras do jogo teatral, seguir os manuais que, de quando em quando, são inventados e divulgados. No entanto, o que parece ser mais difícil é perceber que tais regras preestabelecidas não informam apenas detalhes técnicos do fazer artístico; elas expressam também uma visão de mundo, um repertório específico de interesses e, em especial, são regras que trazem consigo indiferenças. Ao fim do espetáculo, os aplausos do público fizeram-me pensar no conservadorismo que continua vivíssimo entre nós. Não foi possível saber, nem possível seria, se aplaudíamos a encenação ou a profunda distância entre aquela narrativa ficcional e a deste mundo. Sinto que o teatro, nesta encenação, não nos convida a pensar alternativas, ele apenas promulga a sua verdade indisposto com outras possibilidades que, por certo, colocariam o estatuto da sua verdade em questão. Esta As Bruxas de Salém , mais do que não oferecer perigo à ideologia dominante, parece, corroborá-la. Seu jogo cênico evidencia a incapacidade da representação em dar a ver aquilo que vivemos. Não é possível escutar o texto de Miller quando, sobre o palco, a única atriz negra do elenco é aquela escolhida para interpretar uma escrava. Há, portanto, um texto da nossa época que fala mais alto do que esta representação. Sinto-me na porta do teatro, não quero entrar: algumas imagens não podem mais continuar. Um racismo despreocupado? Não direi que a encenação de Nuno Cardoso é racista. Parece-me perigoso e mesmo pouco dizer a coisa desse modo. Gostava, no entanto, de sinalizar o modo aparentemente despreocupado com o qual a questão foi tratada. Ao entrar no teatro, recebemos um Manual de Leitura de As Bruxas de Salém , recheado com textos diversos, informações e detalhes que tanto podem estimular a nossa leitura do espetáculo como – a partir da expressão “manual de leitura” – induzir determinada leitura. Neste manual, há uma conversa entre Nuno Cardoso e Mónica Guerreiro, da qual destaco o seguinte trecho: A esse propósito, no casting confrontaram-se com questões identitárias, questões de género...? A Tituba, escrava que veio de Barbados, é interpretada por uma atriz negra. Ah, mas a primeira personagem que a Lisa [Reis] fez foi Mary Warren. E Tituba poderia ser interpretada por qualquer uma das atrizes, mas depois precisei de uma Betty, e acabou por ficar assim. [...] Mas há uma coisa importante a reter aqui, dramaturgicamente, e que o filme vai evidenciar: Parris é um esclavagista. Portanto, se o papel fosse feito por uma atriz branca, escamoteava isso, que é fundamental para percebermos Parris. Por outro lado, discutimos a possibilidade de o fazer em crioulo. Mas chegámos à conclusão de que isso era menorizar, tipificar o crioulo. E Tituba não é isso. Tituba, independentemente da sua cor, é a pessoa explorada. Utilizada por todos. Mas também é a pessoa que sabe o que é o calor. Tem o seu discurso no fim, sobre conhecer o diabo, que o diabo em Barbados não é má pessoa... Ela fala da sensualidade, do sexo. Como é que vês o episódio do Tudo Sobre a Minha Mãe e a alteração de elenco para incluir uma segunda pessoa trans depois do protesto? Eu não estou a par. Mas quer-me parecer que o encenador alterou, primeiro, porque não tinha dinheiro, e que quando teve dinheiro voltou à ideia inicial, que era ter duas atrizes transgénero. Cada vez mais sinto que há peças em que não há necessidade de género. São coisas que merecem ser discutidas. Eu troquei o género a personagens do Balcão e do Lear . Acho justo que as pessoas possam ser uma coisa ou outra, porque a peça é uma construção de personagem. Mas sobre as opções dos meus colegas, não tenho grande coisa a dizer. O que posso dizer é sobre o que nós decidimos. Tudo o que apresentamos foi discutido dramaturgicamente entre nós. Se as pessoas não estiverem de acordo, paciência. Esta não é uma peça em que eu possa trocar o género das personagens, ela não permite isso. Podemos negociar com o racismo? Podemos conversar sobre ele equilibrando violências com pequenos mimos como dar à atriz negra que interpreta a escrava também uma personagem branca? Uma escolha não pode ser o antídoto para a outra. Tituba não é uma pessoa explorada independentemente da sua cor, ela é explorada por conta da sua cor. Eis aquilo que nos ensina a teoria negativa da representação, pois muitas vezes, a representação segue povoando a nossa realidade com imagens e discursos que gostaríamos que acabassem. É o que afirma o filósofo camaronês Achille Mbembe ao dizer que “a vontade de representação é, no fundo, uma vontade de destruição. Trata-se de fazer violentamente que algo passe a ser nada” (MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade . Tradução Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições, 2020, p. 143). Ele argumenta: Como operação simbólica, a representação não necessariamente abre caminho para a possibilidade de reconhecimento recíproco. De saída, na consciência do sujeito que representa, o sujeito representado corre sempre o risco de ser transformado em um objeto ou um brinquedo. Ao se deixar representar, ele se priva da capacidade de criar, para si mesmo e para o mundo, uma imagem de si mesmo. (Ibid.) Tais reflexões são feitas num contexto em que a representação é lida como uma operação de desfiguração do povo negro. Junto e a partir do psiquiatra francês Frantz Fanon, Mbembe desdobra essa teoria negativa da representação que subjaz à violência racial e valoriza a recusa de nossa paixão pelo hábito. A questão não são as imagens que Miller, em 1953, escreveu em sua peça. A questão é continuarmos, ainda hoje, em 2023, a lançar num palco imagens que reforçam as violências que, muitas vidas e pessoas, têm lutado e morrido para modificar. Eis a profunda indiferença que o teatro pode escrever no mundo. PROGRAMA DE ESCRITA Diogo Liberano assistiu ao espetáculo As Bruxas de Salém no dia 19 de março de 2023, às 16h, no Teatro Nacional São João (Porto); de 20 a 26 de março, escreveu uma primeira versão desse texto que, de 27 a 29 de março, foi comentado por Gustavo Colombini; por fim, na sexta-feira, 31 de março, os dois finalizaram juntos esse texto . As Bruxas de Salém De Arthur Miller | Encenação: Nuno Cardoso | Tradução: Fernando Villas-Boas | Cenografia: F. Ribeiro | Desenho de luz: Nuno Meira | Música e desenho de som: João Oliveira | Vídeo: Luís Porto | Movimento: Roldy Harrys | Figurinos: TNSJ | Assistência de encenação: Pedro Nunes | Interpretação: Ana Brandão, Carolina Amaral, Joana Carvalho, Jorge Mota, Lisa Reis, Mário Santos, Nuno Nunes, Paulo Freixinho, Patrícia Queirós, Pedro Frias e Sérgio Sá Cunha | Produção: Teatro Nacional São João

  • Último socorro

    A partir de Última memória , de Sara Carinhas Lembro-me de uma poesia de Louise Glück: a descrição de uma macieira, de uma primavera, flores no quintal do vizinho. Por coincidência também era abril e a poetisa sente o cheiro de relva alta e, ao senti-lo, escreve tanto sobre as árvores quanto sobre a função delas, como quem substitui imagens por palavras. Ou simplesmente tenta. Não é um trabalho fácil, mas é isso o que se espera de um poema, não é? Ao fim do texto, então, Glück descobre: «Olhamos para o mundo uma vez, na infância. O resto é memória.» A vida, desse ponto de vista, parece nos roubar, com o tempo, esses olhos que enxergam as coisas com algum espanto. Olhar é uma ação que suspende os limites de quem somos e de onde estamos; é natural o estado da contemplação. E a natureza sempre aluga espaço dentro de nós por algum motivo indesvendável – talvez seja um traço humano que só faz sentido aos níveis genéticos, a lembrança inata de que somos também feitos de matéria orgânica. E junto a essa matéria orgânica, há uma força violentamente humana de lembrar; de tentar guardar o tempo que passa, de tentar armazenar acontecimentos, medos, cheiros, cores, sensações do corpo, fantasmas. Se incluísse o estudo desses fantasmas (e dos seus específicos modos de estarem presentes), a antropologia revigoraria a ciência humana em relação à memória que armazenamos, provando que ela vai além dos limites do espaço que a armazena. Ela é convocada dos confins, ela está lá, não quer dizer que esteja aqui. Onde, então, ela se guarda? Como, então, conserva-se? Seria o jogo da memória, então, um jogo do esquecimento? É preciso esquecer para lembrar? O trabalho de Sara Carinhas começa neste antes, nesse convite. «A anfitriã pede, por favor, que escrevam algumas palavras sobre a vossa primeira memória e que guardem o vosso papel até à entrada na sala». Em breve, uma figura saudar-nos-á, ainda no hall , numa «saia verde muito grande com bolsos» e um cãozinho nos braços. Haverá uma música a ressoar de si, talvez de seus bolsos, e muitos sorrisos. Muitos sorrisos e abraços, como se sorrisos e abraços fossem a mais familiar das interações humanas. Será que pareço ranzinza? Por que será que eles pareceram incomuns? Poderia dizer que éramos futuros espectadores sendo rececionados carinhosamente. Vi, em seguida, o papel com algumas palavras sobre a minha primeira memória ser colecionado em uma caixa de madeira à entrada da sala. O que lembramos é aquilo que o nosso corpo não quer esquecer, penso. Haverá um estoque de memórias que só se tornam memórias quando são lembradas? Lembrar é uma ação que mexe com as memórias, mas sem essa ação, uma memória é o quê? – o que foi mesmo o que eu decidi partilhar? Estar sobre os ombros de meu pai e ver o mundo de cima ou a lembrança sinestésica do bafio do quarto de meus avós? A primeira briga terrível com meu irmão mais velho ou quando a presença da morte mostrou-me o instante em que a vida realmente começa? Ao ser recebido por Carinhas, entrego para a minha anfitriã um pedaço de mim, que é guardado em uma caixa de madeira com sua própria luz interna. É mágico e doloroso – são tantas memórias abaixo e acima da minha que sou devolvido ao senso de multidão. Somos sempre uma comunidade. Amontoamo-nos em vez de nos espalhar; é nossa tradição. O espaço, então, singelamente preenchido por mobílias caseiras, livros e luzes de candeeiros, encontra no conforto de uma casa o seu pedido de atenção. A figura que fala conosco tem o carisma das primaveras de Glück: veste roupas quase antigas e quase modernas (que se desfarão, aos poucos, de suas camadas) e dá-nos as boas-vindas como uma anfitriã, afinal, estamos em casa, somos convidados, é um festim. (E é nesse ponto em que o teatro já não é mais o que foi outrora; é nesse ponto em que o teatro feito hoje em dia transforma em memória o teatro feito outrora). Parece haver, como em tantas criações contemporâneas, um gesto artístico despossuído da representação, um gesto movido por ações pequenas, supérfluas, anônimas, pouco interessadas num enquadramento geral da experiência que é estar vivo. Algo que é confirmado, por exemplo, pelo facto de que a cena é também feita por algumas memórias das muitas recolhidas no ato da performance, sem planejamento ou curadorias prévios. A inquietação dessa figura encontra nas palavras que diz a sua principal ação: ora numa canção, ora numa citação, o texto que ouço (e que sou, dentro de mim, estranhamente convidado a também lê-lo) surge dos borrões da pessoa que está diante de mim. Está ali, também em questão, a prática da interpretação teatral, os limites documentais entre quem diz e quem é, as crises sistemáticas da instituição-personagem. São ideias todas elas, essas personagens, são convites aos corpos que pretendem interpretá-los, são convites às nossas memórias. Personagens, afinal, são chaves que abrem os cofres da nossa memória e imaginação. Seria isso? Usam nomes, usam a língua e a linguagem, mas nada mais são do que meios de transporte que nos lançam lá no dentro de um repertório específico de sentimentos, ações e gestos? E assim também é com os corpos dos anfitriões. «Bem-vindos», dizem eles ao quererem dizer «este é o meu espaço e quero que, agora, mesmo que por um pequeno período de tempo, ele também seja seu». Na boca da anfitriã, a menção aos dicionários, às literaturas, às enciclopédias, às florestas que crescerão para serem futuros livros, são as bases para tentarmos compreender nossa conexão com as palavras. Inventámos a palavra para nos unir e desunir – porque não há ação sem reação. Ao gastar tempo sobre a instituição da palavra, Carinhas dá-nos o tempo necessário para lembrar do que somos feitos. Invariavelmente de influência e repetição, influência e repetição, influência e repetição. Penso, junto com ela, na teimosia humana em usar sempre as mesmas palavras, quando se tem milhões de outras já inventadas – ou em nossa capacidade de fazer disso um experimento infinito. E são elas que agem, sempre elas, na nossa memória. Mesmo sob o reconhecimento das imagens, são as palavras que emocionam mais. O trabalho de Carinhas encontra a si mesmo na mistura que faz do acervo pessoal de fotografias da artista com as primeiras memórias de seus convidados. Enquanto é mostrada uma coleção íntima de imagens fotográficas, a fusão de todas aquelas inúmeras lembranças individuais torna-se uma memória coletiva. É exatamente aqui que as biografias confundem-se com ficções e relatos que não nos pertencem, sugerindo que, talvez, antes de factos, nossas biografias sejam também histórias. A conexão que surge com essas memórias alheias é um exercício lúdico de humanidade. E essa ludicidade deu-me o espaço necessário para repensar o trabalho de Carinhas como a dança que executa ao som de Losing my mind , de Liza Minnelli. The sun comes up, I think about you / The coffee cup, I think about you / I want you so, it's like I'm losing my mind / The morning ends, I think about you / I talk to friends and think about you . Um corpo que dança em movimentos convulsivos, a ocupar espaços da cena que, até então, não ocupava (assim como a nossa memória também se move e ocupa as mãos, os braços, o peito, os olhos, os órgãos; não só a mente). «Dançar para lembrar, dançar para esquecer». Lembrar que o pensamento também dança. Nos movimentos mais insuspeitos, nas decisões mais inusitadas do corpo, nas moções mais incomuns da memória, estão a linguagem que diz e que se faz lembrar. E sorrimos por direito. Afinal, «até o terror tem dentes para sorrir». Em que medida Última memória consegue (e interessa-se) por nos deslocar para aquele provisório instante em que a memória deixa de ser passado e torna-se um pequeno e delicado susto no infinito que é, simplesmente, lembrar-se? Ao encerrar o trabalho com um brinde ao amor, parece, então, que o mundo é resumido à memória do mundo. Foi quando Louise Glück veio-me à mente, como se tentássemos recriar o nosso olhar para o mundo depois de muito tempo, agora como adultos. E tal recriação vem estranha, simulada, fingidiça. Como se não tivéssemos mais o direito de olhar algo, sem recorrer à nossa própria memória. Há algum tipo de redenção na celebração à vida que nos une e que, ao mesmo tempo, distancia-nos – afinal, a vida que celebramos não está mais aqui. Ao ritualizarmos a celebração da vida, concretizamos o desejo de comunidade ao mesmo tempo em que o perdemos. Sou devolvido ao individual, ainda que esteja unido, sem dúvida, àquela última memória, ela sim, agora coletiva: o teatro – uma caixa de madeira com sua própria luz interna. Saio vivo, completamente em contradição; celebrar a vida é celebrar o seu inevitável esquecimento. Um brinde ao amor é, nesse sentido, um pedido de socorro. Por isso, esse texto se redimiu da palavra «afeto». Há palavras que merecem um descanso, como nós também, muitas vezes, merecemos. Afinal, todo convite à memória convoca também um estado de silêncio. Precede a fala, a falta, o sorriso, a linguagem, o enlevo da nostalgia, tão misteriosa. «Estar sobre os ombros de meu pai e ver o mundo de cima», foi a memória que, antes esquecida, foi lembrada pelo convite da anfitriã. No entanto, é delicado: naquele papel, ela continua esquecida. E lembrar, nesse caso, é continuar; somos a continuação de tudo o que esquecemos. PROGRAMA DE ESCRITA Gustavo Colombini assistiu ao espetáculo Última memória no dia 31 de março de 2023, às 19h30, no Teatro São Luiz (Lisboa); de 1 a 9 de abril, escreveu uma primeira versão desse texto que, de 10 a 13 de abril, foi comentado por Diogo Liberano; por fim, na sexta-feira, 14 de abril, os dois finalizaram juntos esse texto . ESSE “OUTRO” TEXTO Durante a composição desse texto, lembramo-nos do primeiro capítulo do livro O fogo e o relato do filósofo italiano Giorgio Agamben. Última memória Criação, dramaturgia e interpretação: Sara Carinhas | Participação especial: Sr. Victor | filmagens, registo e apoio à dramaturgia: Joana Botelho | Consultoria artística: Nádia Yracema e Sara Barros Leitão | Assistência de encenação: Joana Picolo | Desenho de som: Madalena Palmeirim | Desenho de luz: Catarina Côdea | Direção de produção: Rita Faustino | Produção executiva: Mariana Dixe | Coprodução: Causas Comuns e São Luiz Teatro Municipal | Residências artísticas: Officina Mundi – Joana Villaverde (Avis), Município de Avis, O Espaço do Tempo (Montemor-o-Novo), Festival END (Coimbra) | Apoios: Mostra Camaleoa (Florianópolis, Brasil), Companhia Olga Roriz (Lisboa)

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