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Uma vida

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    Esse texto
  • há 4 dias
  • 6 min de leitura

A partir de HIGH FANTASY (I’m in Love!), do teatroàfaca



I.

Diz o linguista e crítico literário brasileiro, Othon Moacyr Garcia, que “a existência de similitudes no mundo objetivo, a incapacidade de abstração, a pobreza relativa do vocabulário disponível em contraste com a riqueza e a numerosidade das ideias a transmitir e, ainda, o prazer estético da caracterização pitoresca constituem as motivações da metáfora”.

Ao escrever-te, o mistério me acena e o perigo da resposta desaparece.

Que este dizer permaneça inconcluso como tantas umas vidas.

Como te escrevi noutro texto:

“Amo-te, te amo e amo e nem sei o que isso mais possa significar, mas eu sinto. Sinto a sua presença disforme me afagando os cabelos. E se sinto, logo, eu sei... É porque ainda estou aqui.”

E o teatro estava cheio.


II.

Naquele teatro, jovens jogavam um jogo cujo tabuleiro é a própria vida. Com doçura e sorriso marejado ali nos reencontrei. Ali percebi que outras também fizeram o mesmo que nós: saltos e atos, suicídios e seus poemas derivados.

Do lado esquerdo do palco, uma mesa ao redor da qual cinco bancos (um para a ausência do amigo morto). Na mesa, as peças do jogo. Nas mãos das jogadoras, o livro daquela narrativa inventada pelo morto. E quanto mais liam a ficção do jogo, mais nos era permitido ver a vida a ser escrita em direto.

O texto da vida mais aberto do que fechado, mais a ser do que já escrito.

Num delicioso jogo de atuação, moviam-se as atrizes entre as reviravoltas de um jogo e os inacabamentos que continuam após a morte de uma amiga em comum.

Por uma hora, um pouco mais, um teatro cheio de pessoas estava diante de uma história sobre como a vida inventa seus meios para continuar.

Que meio de transporte amoroso pode ser uma metáfora.


III.

Quando decidiste partir, também lançaste mão de uma metáfora. Disseste, na carta deixada, que de “Peter Pan só faltava voar / E voou, enfim”.

Seu voo concreto-poético, inaugurou a metáfora para mim.

Seu partir pela janela abriu-me este mundo desde dentro, fez nascer horizonte no fundo e não na frente; se há um lugar onde a morte acontece, tinha dito, é na vida.

Você partindo por uma janela e eu juntando amigas para refazer-lhe em peça. Na peça que criamos, após tua morte, tua mãe e pai cimentam a janela para impedir novos saltos; mas acabam por evitar, também, a especulação de novos horizontes; tentaram, certamente, o impossível, que é esquecer.

Que sabor outro falar da tua morte não com 20, hoje tenho já quase 40 anos.


    G.O.L.P. - Fotografia de Maglio Pérez
HIGH FANTASY (I’m in Love!) - Fotografia de Afonso Molinar

IV.

“Um grupo de aventureiros enfrenta a sua última missão; ao mesmo tempo, um grupo de amigos, marcado por um acontecimento comum, junta-se para terminar o último jogo de uma longa campanha, que começa a ganhar paralelos com a sua vida privada.”

Eis a sinopse do teatroàfaca, companhia de teatro, para HIGH FANTASY (I’m in Love!). Neste espetáculo, amigas jogam um role-playing game (RPG) criado por um amigo em comum, morto recentemente. Sendo um RPG, torna-se também uma peça em que elas interpretam papéis que, a cada nova jogada, parecem falar, de dentro da narrativa, diretamente às suas vidas pessoais.

No dentro-e-fora desse teatro-jogo, pouco a pouco, conhecemos aquelas figuras, a figura ausente e suas relações. São jovens, artistas e personagens. São também jovens as linhas que reivindicam a necessidade da ficção para lidar com a vida.

Que texto pode uma vida escrever quando derrapam suas linhas?


V.

Soluções, às vezes, trazem dormência a um corpo que pena e que pensa.

Remover, portanto, desde a fundação, o vício nas resoluções.

(Penso muito em suicídio.) Não me assusta.

Antes, comove-me a fragilidade do amor; intriga-me o necessário e incessante lembrar-se dele, dá-lo a ver, dele cuidar e fazê-lo florescer, coitado, como gripa o amor, fica amuado, e como esbarra nas coisas, como tropeça o amor, e perde pedaços, ah, amor, tu és coisa que fotossintetiza, que precisa de sol e, de quando em quando, de um pedaço de pizza.


VI.

Em voz alta ou através de palavras escritas. Não posso simplesmente confirmar que não estejas recebendo as palavras que destino a ti.

Uma verdade escapa. Resta um espaço aberto, onde nem afirmo nem refuto tua ausência ou presença, isso não pode ser completamente demonstrado.

Duas décadas após tua morte, isso não quer dizer que eu tenha finalmente apreendido algo. Mesmo o aprendido pode, novamente, se perder.

Como a vida não prova sua própria integridade, permaneço incerto – sem conseguir que minha compreensão da tua ausência seja estável, completa ou definitiva.

Demanda tempo.

E corpo.


VII.

Você começou, nunca terminou, o curso de matemática. Durante tempos, busquei soluções para a coisa. Não explicações, mas resoluções práticas para aquilo que tua morte deixou em nós que aqui ficamos.

Demorei respostas até encontrar o Teorema da Incompletude, de 1931, do matemático alemão Kurt Friedrich Gödel. Chegaste a estudá-lo, imagino.

No Teorema 1: “Qualquer teoria axiomática recursivamente enumerável e capaz de expressar algumas verdades básicas da aritmética não pode ser, ao mesmo tempo, completa e consistente. Ou seja, numa teoria consistente, sempre há proposições que não podem ser demonstradas nem verdadeiras nem falsas.”

No Teorema 2: “Uma teoria, recursivamente enumerável e capaz de expressar verdades básicas da aritmética e alguns enunciados da teoria da prova, pode provar sua própria consistência se, e somente se, for inconsistente.”

Reformulo os enunciados de Gödel aplicando-os em uma vida:

1: Qualquer teoria sobre uma vida, capaz de expressar verdades básicas sobre ela, não pode ser ao mesmo tempo completa e consistente. Ou seja, numa teoria consistente, sempre haverá proposições sobre uma vida que não podem ser demonstradas nem verdadeiras nem falsas.

2: Uma teoria, mesmo que consiga descrever os acontecimentos que uma vida poderia ter e listar alguns enunciados que sirvam como prova, só poderia provar sua consistência se, e somente se, fosse inconsistente.

Penso que a matemática lida melhor com o suicídio do que eu, não?


As Bruxas de Salém - Fotografia de TUNA/TNSJ
HIGH FANTASY (I’m in Love!) - Fotografia de Afonso Molinar

VIII.

É 2011, recordo-me.

Fui até a cidade onde nasceste, visita surpresa. Saí do terminal rodoviário e caminhei até o bucólico cemitério onde estás.

Pela bússola do coração, encontrei seu túmulo e, sentado à relva, te fiz um pedido (não sei se lembras).

Disse a você, minh’amiga, que em breve estrearia uma peça de teatro que contaria um pouco da nossa história.

E disse mais.

E pedi.

Pedi que aceitasses minha empreitada, que confiasses na amizade, pois ainda estava sendo preciso tentar, de muitas maneiras, lidar com seu suicídio.

Na peça criada naquele ano, inventei um título que traduzisse a tarefa que tomou meus dias e noites:

Como ultrapassar uma questão que não admite resolução?

 

IX.

Vivi algo bonito, sensação gostosa.

Foi numa noite tranquila: uma pequena porta – quase cirúrgica – foi aberta na superfície do meu corpo. Porta que, por muito fechada, rangeu leve antes de abrir mais um pouco.

(Imagino o botão de uma flor que eclode ao romper da madrugada.)

Naquela noite, no terreno do meu peito recém-aberto, nossa história – já antiga – acenou vivíssima em direção ao gesto que, no palco daquele teatro, ganhava carne.

E o teatro estava cheio.

 

X.

Não consigo iniciar esta carta simplesmente escrevendo “querid'amiga”.

Ontem foi seu aniversário.

O que eu poderia te desejar? Quais realizações você, talvez, pudesse?

É estranho como a morte modifica a vida. Até mesmo as palavras. Perdem o ânimo, a anima, quero dizer. Escrever “amiga”, hoje, escreve o quê?

Escrevo na confiança de que há vida para além do que posso.

Não te quero cansar.


PROGRAMA DE ESCRITA Diogo Liberano assistiu o espetáculo HIGH FANTASY (I’m in Love!) no dia 4 de abril de 2025, às 19h, n’O Teatrão, em Coimbra; de 7 a 23 de abril, escreveu uma primeira versão desse texto – uma carta – que, no entanto, ficou guardada; de 22 a 28 de maio, Liberano voltou ao texto, modificando-o a partir de leituras e estudos sobre matemática; de 29 de maio a 4 de junho, tal versão foi lida e reordenada por Gustavo Colombini; por fim, em 6 de junho, os dois decidiram quais mudanças seriam feitas e finalizaram juntos esse texto.

HIGH FANTASY (I’m in Love!) Criação: Afonso Molinar | Interpretação: Carolina Rocha, Fábio Batista, Laura Ribeiro, Simão Vaz | Assistência de encenação: Diana Especial | Figurinos: Inês Correia | Caracterização: Diana Especial | Impressão 3D: Galicerra, Miguel Lopes | Pintura de miniaturas: Joana Jesus | Sonoplastia: João Gamory | Direção técnica: Show Doutor | Direção de produção: Diana Especial | Fotografia: Afonso Molinar | Coprodução: Município de Lagos/Centro Cultural de Lagos, Município de Lagoa/Auditório Carlos do Carmo e teatroàfaca


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ISSN 2976-0240

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