top of page
Esse texto

Que as salas de aula tenham muitas janelas

A partir de uma conversa com algumas integrantes do NAVIO (Núcleo Artístico de Vontades Inusitadas e Outras)




— Então, como arquivar um navio?

— Era o que estava a falar, só que de um jeito menos objetivo.

— Antes, acho que posso retomar a discussão anterior. A relevância da formação que tivemos é justamente essa: estarmos juntos. Estarmos aqui, juntos, a pensar sobre a relevância da formação que tivemos. Olhar pra esse ponto de cruzamento que é uma formação, a diversidade das urgências ali reunida, a própria existência em partilha. Qualquer tipo de formação, qualquer tipo de licenciatura é isso: pessoas a coexistirem, a partilharem as aflições do mundo lá fora.

— O mundo lá fora, olha que curioso. Como se estivéssemos apartados do mundo.

— Dois mundos. Nenhuma ponte entre eles.

— Como se estivéssemos sendo protegidos. Será que o ambiente ideal para o aprendizado é esse? Será que essas são as melhores condições de temperatura e pressão?

— E depois o tropeço. O empurrão pro mundo lá fora, o jogo económico.

— Acho que tudo isso é sobre as condições da formação. Antes do tropeço, antes do empurrão, parece haver esse treinamento do corpo, os estudos, as referências, o académico, os saberes, os atos de comunicação, os desafios trazidos pelos amigos, os estímulos provocados pelos professores. O artista forma-se a si mesmo, não? Claro, sempre provocado por algo, por alguém, por alguma coisa. O artista em formação sabe provocar-se a si mesmo?

— Penso que depois da formação, vem isso: uma necessidade de aprender para além do que foi aprendido.

— Ou desaprender o que foi aprendido.

— Aprender melhor o que foi aprendido, diria. Acredito nesse acúmulo. O artista em formação é um ser em treinamento.

— Quero voltar ao que foi falado, agora não sei mais quem mencionou isso, mas quero voltar ao que foi falado sobre condições de temperatura e pressão. De qualquer forma, associo muito a minha formação a uma soma de referências e de trocas com pessoas que, por motivos particulares, escolheram estar ali ao mesmo tempo em que eu estava. Haveria aqui, pra mim, algum dado estranho de coincidência, mas não deixaria a conversa seguir por esse caminho.

— O próprio teatro como formador do teatro.

— A sensação de algum espetáculo qualquer ser ele mesmo uma “aula”.

— E essa aflição contínua. Como me é marcante esse estado de espírito! Imagino-me a olhar pro fim da minha formação profissional e já saber, de antemão, que a minha insistência e o meu desejo deverão, a partir daquele momento, estar sempre renovados.

— Desejo ou vontade?

— Ela disse “insistência”.

— E daí, a pós-formação. Aquele empurrão que já mencionamos. Veio-me na cabeça aquela imagem de alguém preso muito tempo dentro de uma sala escura, de um porão e que, de repente, é colocado pra fora aos pontapés. Então, encontra-se ali no mundo de fora, com as mãos erguidas em direção ao sol, tentando bloquear a luz solar para tentar ver alguma coisa à frente.

— Ou o contrário disso. Posso reescrever a sua frase?

— Como assim reescrever? Isso não é uma conversa?

— Acho que foi uma conversa, agora é um texto.

— Pode sim, fica à vontade.

— Veio-me na cabeça aquela imagem de alguém preso muito tempo dentro de uma sala muito clara, de um porão muito iluminado e que, de repente, é colocado pra fora aos pontapés. Então, encontra-se ali no mundo de fora, com as mãos erguidas em direção ao céu, tentando afastar as sombras para tentar ver alguma coisa de modo sempre limpo e claro e certo.

— E a visão demora a reestabelecer-se. É preciso acostumar os olhos outra vez.

— E a visão demora a aprender como faz para enxergar a escuridão. É preciso enxergar os olhos outra vez.

— Por isso é importante que as salas de aula tenham muitas janelas.

— Que as salas de aula tenham muitas janelas, então.

— Ou que as janelas tenham muitas salas de aula!

— Quem é que continua?

— Tenho uma questão objetiva.

— Sim.

— Como posso ganhar dinheiro com teatro?

— Bom, ganhar dinheiro com teatro pode ser desafiador, mas existem várias formas de transformar essa paixão em uma carreira rentável. Aqui estão algumas estratégias que podem ajudar:

1. Atuação em peças e espetáculos;

2. Criação de Produções e Espetáculos;

3. Ministrar Oficinas e Aulas de Teatro;

4. Conteúdo Digital e Mídias Sociais;

5. Editais, Patrocínios e Incentivos Fiscais;

6. Audições para TV, Cinema e Comerciais;

7. Parcerias e Colaborações;

Enfim, se você for criativo e persistente, é possível combinar várias dessas fontes de renda para viver de teatro.



— E, então, como arquivar um navio? Alguém já quer tentar responder isso?

— A pós-formação vem junto com esse abismo. O que se aprende é o quê? A ter um sonho. Uma utopia. O dia a dia é outro, as contas não são pagas com expressão artística. Há trabalhos paralelos, é natural, ingrato e frustrante. Mas é preciso não perder a essência. Não é para ganhar dinheiro. Essa é a dimensão real dessa vida profissional. Ela existe sobretudo para ser não-lucrativa.

— Essência. Tenho sérios problemas com essa palavra. Sinto que ela não diz nada exceto reforçar uma conceção meio inerte do que é ser artista.

— Uma formação íntima, então. Uma formação de seres humanos melhores.

— Nem isso. Nem sempre são eles os melhores seres humanos.

— Não é preciso dizer que é ou não é. Pode ser. Pode ser que seja lucrativo. Pode ser que não seja. Pode ser que num determinado momento vá ser lucrativo. Pode ser que não seja sobre lucro. Pode ser. Depende.

— Do quê?

— Mas é certo que o retorno financeiro é sempre advindo de outras estruturas. É preciso muita articulação do lado de fora para manter o dentro.

— É sobre a prática de um teatro pós-ofício, então.

— Um teatro pós-ofício? Desculpem lá, eu ouvi a palavra utopia, não ouvi?

— Não sei, ouviste?

— Sim, um teatro que se faz depois do trabalho. Depois do desempenho básico civilizatório.

— E o gesto artístico não faz parte do desempenho básico civilizatório?

— Acho que você não entendeu a ironia.

— Um teatro pós-emprego. Pós-salário. Pós-civilização.

— Inventar um espaço para criar artisticamente sem a necessidade do dinheiro.

— Mais uma vez essa história, reparem. O lado de fora e o lado de dentro.

— Custa-nos imaginar o teatro dentro do mundo? Em algum momento, ele sempre escapa – ploft! – e vai pertencer a outro.

— Custa-nos quanto? Em dinheiro?

— É a capacidade que ele tem de criar outros mundos, é isso.

— Ele.

— Uma vez, durante uma aula, um professor interrompeu a cena de um colega e perguntou-lhe o que ele estava a fazer ali. “O que estás a fazer aqui?”, ele disse. E ninguém disse mais nada até o fim da aula. Acho que, naquele momento, todos nós, cada um de nós, abaixamos a cabeça e tentamos responder pra nós mesmos essa mesma pergunta. O que nós estávamos a fazer ali?

— Já estamos a falar do teatro, repararam? A formação virou teatro.

— Ou do mercado de trabalho.

— Até hoje eu me pergunto o que eu estou a fazer aqui.

— Que mercado? Pra qual trabalho?

— Não gostava de parecer repetitivo, mas o fim daquela resposta artificial dizia “se você for criativo e persistente, é possível combinar várias dessas fontes de renda para viver de teatro”. Criativo e persistente. Em que momento essas duas qualidades se conectam na vida de um ser humano? Quais profissões pressupõem persistência e criatividade para os seus profissionais? O que eu quero dizer é que tudo isso me pareceu demasiado as regras de um jogo com competidores. Competidores que serão vencedores ou perdedores, nessa conotação. Uma subordinação estranha às leis de competição. Como construir um navio assim? É possível perder esse jogo, não é?

— É sim.

— É sim?

— E “combinar várias dessas fontes de renda” também me chamou a atenção. É preciso combinar várias dessas fontes porque nenhuma é suficiente por si mesma.

— Como construir desejo se o sistema capitalista afastou o ser humano daquilo que ele é e daquilo que ele pode?

— Não entendi por que a palavra utopia, até agora, não foi mencionada novamente. Foi por que eu havia notado a presença dela naquele momento?

— Achas que estamos parecendo muito enraivecidos?

— Eu já quis lutar muito contra o capitalismo. Ou melhor, eu já lutei muito contra o capitalismo.

— E aí?

— E aí o quê?

— O que houve?

— Nada.

— E, desculpem lá, mas são tantos os falsos problemas. Se a nossa formação nos propõe a inventar, a fazer imaginar, por que não assumimos, ou sequer desconfiamos, que podemos estar a criar novos problemas? Problemas sem corpo, problemas sobrenaturais? Alguém já calculou quanta energia gasta-se com as perguntas erradas?

— O quanto esse texto também faz as perguntas erradas?

— Esse texto, que não é a conversa que tivemos.

— Então, como arquivar um navio?

— Arquivar um navio para quê?

— Navegar um arquivo para quê?

— Essa pergunta não faz o mínimo sentido.

— Era o que estava a falar, só que de um jeito menos objetivo.

— Mas temos um núcleo. A nossa formação trouxe-nos até aqui.

— E o trabalho de imaginação é constante e diário. É um caminho de obstáculos. Obstáculos externos e internos, obstáculos entre nós, inclusive. Imaginar não é um exercício mercantil. Não é sobre o tema do momento, o uso das redes sociais como divulgação, o tempo de criação e o de temporada, o facto de enchermos salas com rostos conhecidos.

— Criar ferramentas. Experimentar ferramentas. Imaginar ferramentas. E utilizá-las. Desafiá-las ao mundo.

— O mundo de dentro ou o de fora?

— O mundo.

— É uma provocação.

—  Quero ficar com essa imagem. Situar a imaginação na gestão do grupo, para além da imaginação da criação artística, do tema, da cena, do texto, da narração. Não apenas como um gesto público, poético, mas um gesto administrativo. Um exercício democrático de imaginação que vem antes da arte, por exemplo.

— A imaginação tornada pública, por meio de um gesto artístico, é derivada de um exercício íntimo do coletivo.

— E manter essa conversa é também um jeito de persistir.

— Então, ela continua.


 

PROGRAMA DE ESCRITA

Diogo Liberano realizou uma conversa com Catarina Chora, Inês Sincero, Jaime Castelo-Branco e Tomé Nunes Pinto (integrantes do NAVIO – Núcleo Artístico de Vontades Inusitadas e Outras) no dia 17 de setembro de 2024, às 18h, via Zoom; de 18 a 24 de setembro, Gustavo Colombini, a partir de uma gravação em vídeo da conversa, escreveu uma primeira versão desse texto; de 25 a 27 de setembro, tal versão foi lida e comentada por Liberano; de 28 a 29 de setembro, Colombini retrabalhou o texto; por fim, em 30 de setembro, os dois finalizaram juntos esse texto.

 

Saiba mais sobre o NAVIO (Núcleo Artístico de Vontades Inusitadas e Outras) através do perfil do coletivo no Instagram: https://www.instagram.com/companhia.navio/

Opmerkingen


bottom of page