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A competição desumana

A partir de A Minha Vitória Como Ginasta De Alta Competição de Lígia Soares




Não é preciso ouvido atento para descobrir que os passos pelos quais avançamos rumo ao futuro soam ocos. Mas é preciso concentrar o ouvido quando se quer descobrir que tipo de vacuidade ressoa em nossa trajetória. Há vários tipos de vacuidades, e a nossa, deve ser comparada com outras, se a meta for compreendê-la. O incomparável é incompreensível. Se afirmarmos ser nossa situação incomparável, desistiremos do esforço para captá-la. É assim com a competição humana.



Ao deparar-me com as estruturas que estão erigidas no palco de A Minha Vitória Como Ginasta De Alta Competição, minhas impressões vagueiam entre imagens de guerra e desporto. São traves, barras fixas, assimétricas, paralelas que, independentes da tecnicidade dos nomes que ganham, remontam a uma lógica de linhas da ginástica olímpica. Estamos estranhamente acostumados a, ao olhar para aquelas estruturas, imaginar um salto no ar e ficcionalizar uma aterragem. São equipamentos que definem uma dinâmica que se executa também no invisível: é impossível não olhar para eles e associá-los ao movimento dos corpos que os utilizam. A presença humana naqueles aparelhos é uma imagem tão indiscutível quanto dependente: existem para as mãos, para os punhos, os pés, para o corpo humano desempenhar movimentos que soam não-naturais, como giros, cambalhotas, torções, pêndulos, mortais, impulsos, quedas. No escuro, são edifícios de ferro e plástico; na luz, são incentivos ao desafio. Há nessas contradições uma parceria entre o corpo e a imaginação.


É muito comum que espectadores de primeira viagem da ginástica artística fiquem, para além de enlevados com a flexibilidade, a força ou a destreza das ginastas, um bocado perdidos com a dinâmica da competição. Junto de todo o espetáculo do desporto, há um certo caos controlado entre técnica e beleza; uma inquietação entre o objetivo e o subjetivo.


Como se julga um movimento? Como se diferencia um gesto de outro? Como se usa a matemática para, nesse caso, provar a existência da perfeição? Qual a diferença entre um conjunto de movimentos cuja nota é dez e outro conjunto de iguais movimentos cuja nota é nove ponto nove? Como executar movimentos idênticos em corpos completamente distintos? Por que o desequilíbrio rouba uma vitória? Qual o sentido de uma queda perfeita?

A matemática, aqui, parece ter um papel sedutor. A contagem de pontos de uma competição de ginástica é, quem sabe, a compreensão mais profunda de que toda competição é pessoal e intransferível. Ela acontece naturalmente, desde um passado inalcançável, entre organismos vivos que coexistem no mesmo ambiente. É preciso estar vivo para competir (é preciso competir para estar vivo?). Animais competem por provisões de água, comida, parceiros sexuais ou outros recursos. Entre os humanos, entretanto, talvez o fruto mais conveniente da competição seja o ideal da rivalidade. Ideal este que também é hábito e cultura. Trata-se, este sim, de um ambiente estático, repetitivo ou imutável. Competimos e cooperamos. É preciso ser melhores, campeões, vencedores. Fincarmos sobre a linha imaginária da história a nossa existência, consagrá-la aos prémios, às medalhas, aos troféus. A concorrência, por exemplo, outro nome possível a esse estímulo de emulação, é um princípio importante das economias de mercado, dos negócios, acumula em si o propósito único de alcançar maior qualidade de um serviço ou de um trabalho que se oferece. Compete-se pelo gesto simbólico (ou não) da sobrevivência.


É impossível hoje entender a humanidade sem a sombra que a competição nela ocupa. É, talvez, o ponto em que o desporto e a guerra tocam-se. Ambos são meios de convivência com os seus semelhantes, que pressupõem performances de habilidades, proezas, força, destrezas de índole física, grandes saltos, rápidas corridas, e favorecem o encontro coletivo ou individual com estados de exaltação. É um reino promíscuo dos adjetivos: mais rápidos, belos, fortes, ágeis, firmes, inteligentes, talentosos. Penso sobre a guerra enquanto a assisto ao trabalho em cena.


Em todo caso, vitórias e derrotas são violentamente subjetivas. O estado de vitória é provisório, assim como derrotas são superadas com o tempo. Perder e ganhar conseguem ser verbos temporários e perpétuos segundo o ângulo da visão de quem os experienciam e, na complexidade de ambos, são verbos dolorosamente humanos. A Minha Vitória Como Ginasta De Alta Competição é, nesse ponto de vista, um pensamento ginástico-filosófico da vida como jogo.


Duas ginastas, então, entram no palco e passam a dar sentido à crueza daqueles equipamentos. Entram com roupas cotidianas, são jovens, treinam e alongam-se. Entre treinos de movimentos, há qualquer memória das preparações militares; um corpo que se prepara para o desafio, com a leveza do costume de uma guerra. Durante a execução desses treinos corporais, conversam amigavelmente entre si, mas dialogam conosco, com as ideias que despejam sobre si mesmas, suas famílias, sobre o país em que vivem, sobre os dilemas do mundo. Logo estarão a retirar suas roupas de treino e revelarão seus maiôs característicos, coloridos e fúlgidos, disciplinados no caimento do corpo, como também são os seus penteados. Preparam-se para uma competição, em alguma medida, protegida ou representada: não estão em um ginásio, não há juízes, não haverá premiações, no entanto, ainda assim, é uma competição encenada para ser atravessada por pensamentos que, verbalizados ao público, implicam com os gestos que associaríamos às ginastas. Não deixam de ter em mente os valores, por exemplo, do código de pontuação emitido pela Federação Internacional de Ginástica. A ginástica, pela sua imagem de disciplina e rigor, não parece um ambiente de descontração e, por isso, a subjetividade daquela competição não revela as fragilidades do desafio naqueles corpos, mas os desafios do chão em que pisam.



O trabalho de Lígia Soares, logo, propõe-nos uma duplicação daquelas figuras ginastas: elas estão entre nós, na plateia, e falam por elas. Sobre elas. Ou ainda, são elas mesmas sob outros ângulos discursivos, se fosse possível a desierarquização do espaço e do tempo. Dobram/dublam aquelas figuras a partir dos pensamentos que as distraem durante aqueles treinos e passam a carregar em nós qualquer certeza ofuscada que temos da indissociabilidade entre nosso corpo e nossa mente. Também estamos a pensar coisas ao assistirmos. Pensamos coisas dormindo, parados, sentados, a voar, a cair, pensamos coisas ao falar, ao calar, ao chorar, ao sorrir. O pensamento humano, como ginástica, é incessante como a forma de sua existência também o é. Assistimos aos movimentos olímpicos daquelas ginastas ao mesmo tempo em que ouvimos a construção de seus pensamentos enquanto elas se movem, como se escutássemos as palavras que habitam aqueles esforços. Vemos o pensamento a suar como suam os seus corpos.


Ao duplicarem-se, corpo e pensamento agem como dois universos inseparáveis: o corpo que dança, pensa – o corpo que pensa, dança. Ao distraírem-se em suas reflexões, as ginastas e seus duplos acrescentam ao trabalho de Soares inúmeras outras dobragens: uma ginástica desportiva; outra, discursiva. As figuras que as dobram também coexistem, ora como treinadoras, ginastas ficcionais, ora como consciências em voz alta do corpo que executa. É essa, talvez, uma das sensações principais de A Minha Vitória Como Ginasta De Alta Competição: povoar com pensamento o gesto do movimento.


A jovialidade das ginastas consegue, por isso, traçar uma linha atemporal, que passa através das gerações, sob a alcunha da vitória. A ideia da vitória. «Fazermos coisas incríveis, ultrapassarmo-nos, sermos os melhores em alguma coisa», como diz Lígia Soares, «é ainda olhado como um nobre traço da humanidade». Surpreendeu-me, como, a cada execução completa de um movimento, a plateia aplaudia as ginastas como se, de facto, elas estivessem em uma prova. Talvez os aplausos fossem em função da conclusão de um exercício, uma interação física para o seu incentivo, uma demonstração de amor. Ou ainda um esforço inconsciente para fazer continuar a separação entre o trabalho artístico e o entretenimento oferecido. Mas foi-me marcante como, ainda que diante de inúmeros pensamentos dignos de igual incentivo, é sempre o corpo executor que ganha o aplauso. Confunde-nos o êxito e o esforço; o produto e o processo de sua produção. Que espaço há entre o deslumbre dos corpos e as deslumbrantes capacidades dos pensamentos?


Nesse caso, a hipótese de que a guerra, o desporto e a arte inscrevem-se como tipos semelhantes de trabalho, ganha com a montagem de Soares uma voz até então inaudível: precisamos atravessar a guerra, o desporto e o fazer artístico para ouvir do que tais acontecimentos são feitos. Essa é a «nossa vitória». Sofrer a contradição pacífica do pensamento como jogo de guerra, afinal é sempre ele que nos ajuda a descobrir novos modos de guerrear, dentro de nós, pelo mundo ou pelos nossos. Coexistir conosco e com a humanidade, atentos aos sons dos passos pelos quais avançamos rumo ao futuro. É quando o desumano torna-se o mais humano dos adjetivos.


 

PROGRAMA DE ESCRITA

Gustavo Colombini assistiu ao espetáculo A Minha Vitória Como Ginasta De Alta Competição no dia 4 de março de 2023, às 19h, no Centro Cultural de Belém (Lisboa); de 5 a 13 de março, escreveu uma primeira versão desse texto que, de 14 a 16 de março, foi comentado por Diogo Liberano; por fim, na sexta-feira, 17 de março, os dois finalizaram juntos esse texto.


 

A Minha Vitória Como Ginasta De Alta Competição

Conceção, texto e encenação: Lígia Soares | Interpretação: Lígia Soares, Maria Jorge, Beatriz Lapa, Rita Cerqueira | Música: João Lucas | Cenografia: Henrique Ralheta | Luz: Pedro Guimarães | Direção de produção: Mariana Dixe | Assistência de encenação e criação: Beatriz Gaspar | Residência de coprodução: O Espaço do Tempo | Residência Festival Materiais Diversos | Apoio: Ginásio Clube Português, Federação de Ginástica de Portugal, Vidalgym | Coprodução: Teatro Municipal do Porto, Centro Cultural de Belém, Teatro Académico Gil Vicente, Festival Materiais Diversos | A Minha Vitória Como Ginasta De Alta Competição foi escrita com o apoio da DGLAB- Direção Geral do Livro, do Arquivo e das Bibliotecas.

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