A partir dos espetáculos assistidos e dos textos criados para a segunda edição d’Esse texto
Pensar neste diálogo entre a criação de alternativas para a vida e a sustentação de um olhar crítico lançado ao mundo. Pensar num gesto artístico, no ato de uma encenação teatral, e em suas inúmeras escritas. Considerar que esses textos – o texto escrito a priori e a cena escrita a posteriori –, quando em diálogo, podem trazer consigo inúmeras escolhas, ou ainda, inúmeras sustentações ao olhar crítico, que dispensariam qualquer hierarquia ou verdade única.
Tanto Girafas quanto Uma vida no teatro são encenações teatrais que partiram de um texto escrito previamente: o primeiro de Pau Miró, catalão, escrito em 2009; o segundo, de David Mamet, estadunidense, escrito em 1977. De algum modo, é possível vislumbrar que suas respectivas encenações foram ao encontro de suas dramaturgias preexistentes de um jeito menos combativo. O jogo da cena, a prática da encenação, seguiram um caminho já proposto pelo texto, tomando a dramaturgia como uma pedra basilar; amplificaram os gestos que a dramaturgia trazia sem propor necessariamente gestos novos.
Talvez, tais espetáculos, ao optarem por uma relação menos combativa com o texto, operaram por uma via mais conservadora, optando assim por uma composição cênica mais aderida ao texto, conservando aquilo que o texto trazia, sem inventar tantas outras camadas. Numa acepção primeira, “conservador” seria algo ou alguém que conserva. Um teatro conservador, desse modo, seria aquele feito a partir da premissa de conservar – e nem tanto modificar – o que foi escrito a priori. Seria um modo de devolver um sentido primeiro à ação de conservar, já que é fácil reconhecer o quanto ela foi sequestrada pela noção de conservadorismo, ou seja, a defesa pela manutenção das instituições sociais tradicionais numa cultura específica.
Sem dúvida, G.O.L.P., o outro espetáculo lido nesta Edição 2 d’Esse texto, é a peça teatral que menos se aproxima do pequeno conjunto criado pelas duas peças já citadas. Em Girafas e Uma vida no teatro há uma atividade em curso dentro das próprias dramaturgias e suas respetivas cenas parecem ter dado outros corpos a tais tensões e transformações que cada texto (já) apresentava. O labor da cena, por certo, mantém-se como um trabalho de invenção, adicionando novas texturas aos sentidos escritos pelo texto, sem – como já dito anteriormente – proporcionar relações contraditórias entre as palavras do texto e os gestos da cena. Afirmar isso, no entanto, não é dizer que o texto escrito a priori não tenha, em si mesmo, seu próprio repertório de contradições.
Querer dialogar e tramar impressões sobre as relações que a criação contemporânea vem estabelecendo entre o texto escrito a priori e a escrita da cena teatral. Querer conversar sobre um tipo de assunto que poderia ser considerado ultrapassado. Querer poder confiar que, justo por seu (algum) anacronismo, há nesta conversa alguma abertura para uma mirada crítica e criativa do fazer contemporâneo. É certo que a atividade teatral do século 20, através do incessante desenvolvimento da arte da encenação teatral, trouxe à consciência as várias autorias que não apenas aquela assinada por um texto que é escrito previamente à sua colocação em cena. Então qual é a questão?
"Queria que falássemos tão somente daquele texto escrito previamente à sua futura encenação", ele disse. Mas sem medo de soar antigo ou ultrapassado, completou, "eu realmente queria que falássemos sobre o texto que foi escrito antes da sua versão teatral. Teria esse texto, aquele texto, teria aquele texto ainda alguma relevância hoje?"[1]
Proposição feita: o agir-dizer crítico – aquele olhar crítico mencionado a priori – estaria ou poderia estar na intersecção – no entre – de uma específica sobreposição. Dito de outro modo: será nessa sobreposição onde a sustentação de um olhar crítico moraria. Ou ainda: o texto a ser dito em cena transforma a cena que dirá o texto; a cena que diz o texto transforma o próprio texto que nela foi dito. Franco Ruffini (1934–2020), teórico e historiador de teatro italiano, diz sobre o “texto” do texto, o elemento rígido, direcionado, programado, e o “palco” do texto, o elemento flexível, não direcionável, não programável. O “texto” do texto é o componente de concatenação (ou encadeamento), ele diz; enquanto o “palco” do texto seria o componente de simultaneidade. A conversa entre concatenação e simultaneidade daria origem à energia, isto é, a vida do texto. Harald Weinrich (1927-2022), linguista alemão, retomando uma palavra de Paul Valéry, escreveu que a gramática é uma memória do corpo. O corpo também, no caso aqui discutido, poderia ser tratado como uma memória da gramática: uma imagem para essa sobreposição (emaranhado?) entre cena-corpo-gramática-texto.
Para tentar responder à pergunta sobre haver ou não, hoje em dia, alguma relevância no texto escrito a priori, uma memória. A memória de uma sensação de simplicidade logo após a apresentação de Girafas, de Pau Miró, em encenação dos Artistas Unidos. Diante do trabalho posto em cena, viu-se uma história que prescindiu de uma engenhosidade temporal ou de uma virtuosidade cênica e espacial para acontecer. A história, diante da audiência, foi acolhida pelo palco, ao passo que acolheu também a atenção dos olhos que a miravam; acolhimento proporcionado, sobretudo, através da palavra que era dita.
No espetáculo G.O.L.P., escrito por Alexis Moreno e com encenação do TEP & Teatro La Maria, não era sabido se o texto tinha sido escrito antes da encenação ou durante o processo de sua composição. (Importante seria lembrar que as experimentações contemporâneas também seguem exercitando outras causalidades e temporalidades entre texto e cena: não seria obtuso pensar numa escrita feita durante o ato teatral ou mesmo após uma peça já ter sido feita). Ainda assim, a memória quando diante tal peça evoca um sabor indefinido, como se aquela cena tivesse sido criada a partir de um texto que não esteve em reserva, que não teve tempo para descansar ou conhecer a si mesmo. Talvez por isso, e isso é uma hipótese, tal espetáculo não pareça ter conseguido criar alternativas para a vida presente nem sequer sustentar um olhar crítico lançado ao mundo corrente.
Intrigantemente, nessa segunda edição, os trabalhos com textos escritos previamente à sua versão cênica parecem ter oferecido uma abordagem crítica mais consistente ou contundente. Afirmar isso não é deliberar que essa abordagem crítica seria uma característica padrão desse tipo de operação ou procedimento artístico. Eis o porquê dessa sensação de algo intrigante: os trabalhos criados com textos escritos a priori ofereceram mais desaprendizado e, ao mesmo tempo, trouxeram mais simplicidade para o nosso contexto epocal.
Há trabalhos – criações da cena – que reiteram e replicam a época em que nascem sem nada oferecer em termos de um estudo crítico que vá além dessa mesma época. É como se pintassem e mostrassem paisagens demasiadamente fiéis ao contexto em que estão, oferecendo aos espectadores uma mirada que repete o contexto sem abrir contradições, que não é ou não parece ser capaz de ressignificar nenhuma intenção. Há, no entanto, outros trabalhos que já nascem críticos de um tempo, que pretendem não somente exemplificar aquele determinado agora, colocando-o em cena, mas também trazerem consigo algum ímpeto contestatório. São trabalhos que nos fazem desaprender aquilo que era conhecido justamente porque oferecem outras linhas, outras histórias e repertórios de sentimentos e sentidos.
Há inúmeras diferenças entre composições textuais e cênicas, mas o que talvez esteja em questão aqui seja a possibilidade de pensarmos as diferenças que existem dentro de um mesmo texto. As diferenças no texto e no palco do “texto”, as diferenças no texto e no palco da “cena”. Pensar, como sugere a filósofa brasileira Denise Ferreira da Silva, em diferenças sem, no entanto, apelar para a famigerada separabilidade. Reconhecer a diferença – as diferenças – desses distintos modos de compor não é o mesmo que traçar valorações ou hierarquias. É no conversar, dialogar, atritar entre os diferentes textos que compõem um mesmo texto que conseguiríamos tanto criar alternativas como a sustentação de um olhar crítico ao mundo.
Entrar numa sala de trabalho, compor uma peça com um elenco, escrever ações físicas e movimentos, apurar gestos e durações, definir o espaço e os efeitos da iluminação, a cor e o corte dos cabelos, criar as composições musicais e interferências sonoras, escolher aquele objeto específico; compor tudo isso, sem dizer, no entanto, palavra alguma. Essa peça, na verdade, seria chamada de encenação a priori. E só depois, diante dessa encenação previamente escrita, é que uma dramaturga viria a compor um texto capaz de escrever (continuar escrevendo) aquela cena pré-concebida.
Começada essa reflexão com a suspeita do seu possível anacronismo, é importante reconhecer agora que hoje, com toda a emancipação conquistada pela cena-que-escreve, tal emancipação poderia ser lida, em muitos casos, como uma nova (e velha) disputa pelo protagonismo do poder. Quem tem a voz final? Eis uma pergunta cuja voz ainda se faz ouvir. Em que medida a desfeita que costuma ser feita do texto escrito a priori não é também uma desculpa para um escrever cênico indisposto a ser contrariado?
A sensação de simplicidade. A aparição dessa sensação, dessa palavra “simplicidade”, quase como saldo daquela experiência com aquele específico espetáculo. As práticas de criação contemporâneas pensam sobre a possibilidade dessa despretensão? Ou faz parte da criação contemporânea, irrevogavelmente, afetar-se pelo múltiplo, pelo fragmentado, pelas tecnologias e pelo acúmulo, como forma de responder a um contexto de atualidade?
A cultura contemporânea muitas vezes nos impele a começar novos projetos, acumular tarefas e demasiadas informações, nos impele a ter excessivamente muitas opiniões, mas falha em nos permitir encerrar ou concluir pequenas tarefas. Cria-se, assim, um estado constante de inquietação e ansiedade, onde estamos sempre ocupados, no entanto, raramente alcançados – ou tocados – por um senso de realização ou finalização. Não parece ser, portanto, sobre a correria dos tempos, como tanto disseram, mas sobre a nossa incapacidade de concluir um simples gesto.
[1] Tal indagação nasceu a partir dos textos criados para a Edição 2 da Esse texto. Com aproximadamente 30 dias de intervalo entre um texto crítico e outro, esta edição escreveu a partir de encontros com espetáculos criados a partir de textos escritos pelo catalão Pau Miró (Girafas), o chileno Alexis Moreno (G.O.L.P.) e o estadunidense David Mamet (Uma vida no teatro).
PROGRAMA DE ESCRITA
Diogo Liberano propôs a Gustavo Colombini, em 3 de junho de 2024, a criação de um diálogo a ser escrito num documento partilhado entre os dois. Para tal escrita, deveriam usar alguns de vários ingredientes inventados, a priori, por eles. Exemplos: dar um depoimento pessoal que pertença a sua infância; elaborar uma preocupação com o futuro das artes performativas; fazer uso de 1 repetição visível; roubar 1 frase ou sentença escrita pelo outro e inseri-la na sua própria fala; fazer uso da palavra "robustez"; inserir no trecho textual qualquer passagem de qualquer livro, aleatoriamente escolhido, aberto na página 73; fazer uso da palavra "sinceridade". O diálogo aconteceu de 10 a 17 de junho, quando foi interrompido devido a dificuldades em relação ao jogo proposto. De 24 a 30 de junho, Liberano editou o diálogo original a fim de criar esse texto.
Edição 2 (Março, Abril, Maio e Junho de 2024)
Animal vivo – Publicado em 27 de março
Hashtag – Publicado em 24 de abril
Planeta melancólico – Publicado em 23 de maio
A priori - Publicado em 30 de junho
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