A partir de Os outros, espetáculo dos alunos finalistas da licenciatura em teatro da Escola Superior de Teatro e Cinema – IPL
Contar uma história.
Podemos começar com a ideia dos fantasmas.
Quando eu era criança, esperávamos os nossos pais dormirem e, depois que fingíamos estar dormindo, uma nova vida começava. Meu irmão acendia uma lanterna sob os lençóis e passávamos a noite a partilhar histórias. Contar histórias era um jeito de estarmos juntos; gastar o tempo que podíamos partilhar imaginando. Tudo o que narrávamos era uma maneira estranha nossa de existir: submarinos, naves espaciais, cavernas, fantasmas… Eu perdia o sono. (Imaginar custava-nos o sono). Gastar tempo a imaginar, naquele momento, era ganhar tempo de vida. E, mesmo precisando dormir, eu não sabia mais como descansar. Mesmo sentindo os olhos pesados, as pálpebras a se fecharem quase sozinhas, era inaceitável a ideia de abandonar aquele estado. Por que desperdiçar aquela atenção? A vontade de imaginar. Durante todos aqueles anos, nunca mencionamos a palavra “verdade”. Acho que até hoje nunca falamos sobre isso. (Imaginar nada tem a ver com essa palavra, não é mesmo?)
Onde estão os fantasmas senão nas histórias?
(Protegidos e possibilitados por elas)
Os outros começa com a leitura de um manuscrito. Os personagens reúnem-se à volta de uma lareira; é próximo ao fogo que a contação dessa história acontece. É o diário de uma perceptora de duas crianças, Flora e Miles, em uma propriedade rural localizada em Bly, Essex, Inglaterra. As duas crianças acabam por se envolver num universo de aparições guiadas ora pela ideia do paranormal ora pela força da imaginação num espanto que circunda espectadores e personagens.
E, assim, seguimos. Os atores-personagens investem-se nessa ideia: contar essa história (falada e cantada). A dramaturgia de Bruno Bravo baseia-se na novela de Henry James, The Turn of the Screw, assim como nas adaptações subsequentes de Truman Capote e Benjamin Britten. Propõe, sobretudo, uma relação muito próxima ao convívio cénico entre teatro e literatura. E no centro desse convívio, está a contação de uma história. No centro desse convívio, estão também alunos finalistas da licenciatura em teatro da Escola Superior de Teatro e Cinema – IPL.
Esse texto que agora está sendo lido também nasce no centro desse convívio. Um convívio pessoal entre a ideia de formação, teatro, pedagogia, dramaturgia, literatura. Elenco essas palavras, lado a lado, com o intuito de também me provocar. Penso na minha formação; na minha trajetória-aluno, a tentar perceber em QUE eu estava me formando. É inevitável, hoje, não pensar nesse verbo (não sei se o português de Portugal comporta esse ideário). Formar-se, como ter uma profissão. Dar corpo ou forma. Constituir-se. Organizar-se de algum jeito pra exercer um papel na sociedade. Uma formação, um conjunto de valores ou qualidades morais resultantes de uma educação que escolhemos pra nós.
Uma profissão, então, que elabora comunidades, proponho. Minha formação consiste em pensar gestos que tentam tocar pessoas através de narrativas inventadas; que tentam deixar claro que imaginar é estar vivo e que, tudo o que não é imaginação, é mentira. Durante todos esses anos nos quais ainda vivemos, nunca mencionamos a palavra “mentira”. Acho que até hoje nunca falamos sobre isso. (Imaginar continua não tendo a ver com essa palavra, não é mesmo?)
Imagino, então, essa formação pra mim: contar histórias. E lembro desses colegas de profissão (André Rita Baião, Beatriz Viamonte, Dany Duarte, Lúcia Pires, Margarida Gonçalves, Rafael Dultra, Rogério Maurício) que vi trabalharem em cena esse convívio entre teatro e literatura; entre o trabalho dramatúrgico, coletivo, de tradução, cortes, distribuição de personagens, leituras, avanços e recuos, trabalho de chão e mesa, canções. E, enfim, chego mais uma vez nessa indagação: quando foi que paramos de desejar a contação de histórias? Quando foi que apagamos o fogo desse mistério? Contar histórias como quem inventa, como quem sabe que perder tempo é ganhar vida?
Sinto que esse trabalho, como saldo de uma “finalização” (voltaremos a isso na ideia de “exercício final”), ensina artista e público a reimaginarem o motivo do teatro. Ou, ainda, a reimaginarem outras imaginações para além daquilo que o senso comum afirma caber ao teatro. Resgatar a possibilidade de o teatro fazer outras coisas tal como contar uma história, coisa essa que parece ter sumido de vista (um gesto tão antigo e ultrapassado que é oferecer ao presente momento não um espelho reflexivo, mas um capaz de estranhá-lo). A justaposição de vários espaços que, normalmente, seriam ou deveriam ser incompatíveis, mas que encontram o seu lugar no teatro. Tudo isso, como contramão da informação, que apesar de produzir uma crescente conectividade, acaba por nos isolar uns dos outros: afinal, estar conectado não significa estar vinculado a nada. Talvez, somente narrar estabeleça algum vínculo entre nós (sem a acelerada mediação das informações).
Nossa atenção, ultimamente, sente-se tão fragmentada, que impede uma escuta que se demore de modo contemplativo no que é narrado. Então penso: qualquer narração pressupõe uma comunidade de ouvintes atentos, já que narrar uma história e escutar uma história se condicionam mutuamente. Será que hoje perdemos a paciência para estar à escuta e a paciência para narrar? Será que a escuta, na verdade, concentra-se principalmente não no conteúdo que está sendo partilhado, mas na pessoa que narra?
A própria dramaturgia respondeu-me: “A realidade é melhor apreendida por aqueles que sabem imaginar.”
Chamou-me a atenção escutar de uma pessoa sentada atrás de mim, antes do início do espetáculo, a fala:
— É um exercício final.
Um exercício final, dos alunos, destes artistas em formação.
Aos colegas de profissão que se propõem a esse desafio, ousaria dizer: não há exercício final. Exercício final faz pensar na redundância de outra expressão que adentrou o fazer artístico: produto final. Ora, todo produto é o final da linha de produção. Aceitaríamos exercício final se o seu final fosse um fim, ou seja, uma finalidade. Se a finalidade de tal exercício fosse a prática da invenção e do contar, que não acabam, não enquanto uma artista segue viva.
Celebro, naquele momento, cada um de vocês pelo corpo e pelo trabalho que cultivaram em contar uma história.
Imagino que lá estamos outra vez e, por ser tanto aquilo que já fora, ainda agora é diferente. Imagino aplausos volumosos em noite quente e estrelada. Estou sozinho na plateia, mas o palco está cheio de pessoas e histórias. Agora, o espetáculo termina, o elenco sobre o palco recebe os meus aplausos, aplausos daquele único espectador que era eu naquela noite quase inenarrável. E então, em vez de os artistas agradecerem por minha presença, sou eu quem os agradece. Eu agradeço, diante deles, como quem diz e pede que continuem querendo e contando, querendo contar histórias, que continuem contando histórias. Minhas mãos estão quentes, eu continuo em aplauso, e sei que é possível ler o que minhas mãos estão a escrever: elas dizem que isso vale a pena, elas insistem em dizer que continuem, que vocês continuem.
Portanto, em mim, a calma d’esse texto.
O artista que conta uma história, duplica o mundo (multiplica o mundo). Solicita calma a uma sociedade apressada. Eu mesmo, recaído (quase sempre) na armadilha da informação, sinto que esses momentos são preciosos por me relembrarem fisicamente da existência da imaginação. E seria a imaginação (diferentemente da descoberta) um gesto que não depende de nada ou de ninguém? É físico? É interno? É relacional?
Tenho pensado nisso.
Foi quando me lembrei dessa relação que temos entre imaginação e a ideia dos fantasmas. Celebrá-los por existirem para além da nossa certeza. Agradecer aos que nos introduziram à atividade de narrar, sem medo do que é verdade ou mentira.
Imaginem comigo essa profissão: imaginar.
Imaginem comigo essa outra profissão: fazer imaginar.
PROGRAMA DE ESCRITA
Gustavo Colombini assistiu ao espetáculo Os Outros no dia 12 de julho de 2024, às 19h30, no Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa; do dia 13 a 24 de julho, escreveu uma primeira versão desse texto; de 25 a 29 de julho, tal versão foi lida e comentada por Diogo Liberano; por fim, em 31 de julho, os dois finalizaram juntos esse texto.
Os Outros
Dramaturgia: Bruno Bravo | Interpretação: André Rita Baião, Beatriz Viamonte, Dany Duarte, Lúcia Pires, Margarida Gonçalves, Rafael Dultra, Rogério Maurício (alunos do ramo de Atores) | Direção de Cena: Carolina Teodoro, Raquel Caetano e Rita Fernandes (alunas do ramo de Produção) | Desenho e Operação de Luz: Gonçalo Monteiro (do ramo de Produção) | Sonoplastia e Operação de Som: Inês Saraiva e Raquel Caetano (do ramo de Produção) | Cenografia e Figurinos: Inês M. Silva (do ramo de Design de Cena) | Espaço Cénico: Inês Silva (Design de Cena) | Assistência De Construção: Nuno Redin (Design de Cena) | Produção: Carolina Teodoro, Inês Saraiva, Inês Almeida e Luís Santos (Produção) | Comunicação e Redes Sociais: Inês Almeida (Produção) | Arquivo Fotográfico e Audiovisual: Inês Almeida e Raquel Caetano (Produção) | Arranjos Musicais: André Rita Baião, Beatriz Viamonte, Dany Duarte, Lúcia Pires, Margarida Gonçalves, Rafael Dultra, Rogério Maurício (Atores) | Equipa Pedagógica ESTC: Andreia Carneiro, Bruno Bravo, José Espada, Maria Repas, Mariana Sá Nogueira, Marta Cordeiro, Sérgio Loureiro e Stéphan Alberto | Gabinete de Produção da ESTC: Rute Reis, Rui Girão e António Sofia
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