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Esse texto

Último socorro

A partir de Última memória, de Sara Carinhas




Lembro-me de uma poesia de Louise Glück: a descrição de uma macieira, de uma primavera, flores no quintal do vizinho. Por coincidência também era abril e a poetisa sente o cheiro de relva alta e, ao senti-lo, escreve tanto sobre as árvores quanto sobre a função delas, como quem substitui imagens por palavras. Ou simplesmente tenta. Não é um trabalho fácil, mas é isso o que se espera de um poema, não é? Ao fim do texto, então, Glück descobre: «Olhamos para o mundo uma vez, na infância. O resto é memória.»


A vida, desse ponto de vista, parece nos roubar, com o tempo, esses olhos que enxergam as coisas com algum espanto. Olhar é uma ação que suspende os limites de quem somos e de onde estamos; é natural o estado da contemplação. E a natureza sempre aluga espaço dentro de nós por algum motivo indesvendável – talvez seja um traço humano que só faz sentido aos níveis genéticos, a lembrança inata de que somos também feitos de matéria orgânica. E junto a essa matéria orgânica, há uma força violentamente humana de lembrar; de tentar guardar o tempo que passa, de tentar armazenar acontecimentos, medos, cheiros, cores, sensações do corpo, fantasmas. Se incluísse o estudo desses fantasmas (e dos seus específicos modos de estarem presentes), a antropologia revigoraria a ciência humana em relação à memória que armazenamos, provando que ela vai além dos limites do espaço que a armazena. Ela é convocada dos confins, ela está lá, não quer dizer que esteja aqui. Onde, então, ela se guarda? Como, então, conserva-se? Seria o jogo da memória, então, um jogo do esquecimento? É preciso esquecer para lembrar?



O trabalho de Sara Carinhas começa neste antes, nesse convite. «A anfitriã pede, por favor, que escrevam algumas palavras sobre a vossa primeira memória e que guardem o vosso papel até à entrada na sala». Em breve, uma figura saudar-nos-á, ainda no hall, numa «saia verde muito grande com bolsos» e um cãozinho nos braços. Haverá uma música a ressoar de si, talvez de seus bolsos, e muitos sorrisos. Muitos sorrisos e abraços, como se sorrisos e abraços fossem a mais familiar das interações humanas. Será que pareço ranzinza? Por que será que eles pareceram incomuns? Poderia dizer que éramos futuros espectadores sendo rececionados carinhosamente.


Vi, em seguida, o papel com algumas palavras sobre a minha primeira memória ser colecionado em uma caixa de madeira à entrada da sala. O que lembramos é aquilo que o nosso corpo não quer esquecer, penso. Haverá um estoque de memórias que só se tornam memórias quando são lembradas? Lembrar é uma ação que mexe com as memórias, mas sem essa ação, uma memória é o quê? – o que foi mesmo o que eu decidi partilhar? Estar sobre os ombros de meu pai e ver o mundo de cima ou a lembrança sinestésica do bafio do quarto de meus avós? A primeira briga terrível com meu irmão mais velho ou quando a presença da morte mostrou-me o instante em que a vida realmente começa?


Ao ser recebido por Carinhas, entrego para a minha anfitriã um pedaço de mim, que é guardado em uma caixa de madeira com sua própria luz interna. É mágico e doloroso – são tantas memórias abaixo e acima da minha que sou devolvido ao senso de multidão. Somos sempre uma comunidade. Amontoamo-nos em vez de nos espalhar; é nossa tradição.

O espaço, então, singelamente preenchido por mobílias caseiras, livros e luzes de candeeiros, encontra no conforto de uma casa o seu pedido de atenção. A figura que fala conosco tem o carisma das primaveras de Glück: veste roupas quase antigas e quase modernas (que se desfarão, aos poucos, de suas camadas) e dá-nos as boas-vindas como uma anfitriã, afinal, estamos em casa, somos convidados, é um festim. (E é nesse ponto em que o teatro já não é mais o que foi outrora; é nesse ponto em que o teatro feito hoje em dia transforma em memória o teatro feito outrora).


Parece haver, como em tantas criações contemporâneas, um gesto artístico despossuído da representação, um gesto movido por ações pequenas, supérfluas, anônimas, pouco interessadas num enquadramento geral da experiência que é estar vivo. Algo que é confirmado, por exemplo, pelo facto de que a cena é também feita por algumas memórias das muitas recolhidas no ato da performance, sem planejamento ou curadorias prévios.


A inquietação dessa figura encontra nas palavras que diz a sua principal ação: ora numa canção, ora numa citação, o texto que ouço (e que sou, dentro de mim, estranhamente convidado a também lê-lo) surge dos borrões da pessoa que está diante de mim. Está ali, também em questão, a prática da interpretação teatral, os limites documentais entre quem diz e quem é, as crises sistemáticas da instituição-personagem. São ideias todas elas, essas personagens, são convites aos corpos que pretendem interpretá-los, são convites às nossas memórias. Personagens, afinal, são chaves que abrem os cofres da nossa memória e imaginação. Seria isso? Usam nomes, usam a língua e a linguagem, mas nada mais são do que meios de transporte que nos lançam lá no dentro de um repertório específico de sentimentos, ações e gestos? E assim também é com os corpos dos anfitriões. «Bem-vindos», dizem eles ao quererem dizer «este é o meu espaço e quero que, agora, mesmo que por um pequeno período de tempo, ele também seja seu».


Na boca da anfitriã, a menção aos dicionários, às literaturas, às enciclopédias, às florestas que crescerão para serem futuros livros, são as bases para tentarmos compreender nossa conexão com as palavras. Inventámos a palavra para nos unir e desunir – porque não há ação sem reação. Ao gastar tempo sobre a instituição da palavra, Carinhas dá-nos o tempo necessário para lembrar do que somos feitos. Invariavelmente de influência e repetição, influência e repetição, influência e repetição. Penso, junto com ela, na teimosia humana em usar sempre as mesmas palavras, quando se tem milhões de outras já inventadas – ou em nossa capacidade de fazer disso um experimento infinito.



E são elas que agem, sempre elas, na nossa memória. Mesmo sob o reconhecimento das imagens, são as palavras que emocionam mais. O trabalho de Carinhas encontra a si mesmo na mistura que faz do acervo pessoal de fotografias da artista com as primeiras memórias de seus convidados. Enquanto é mostrada uma coleção íntima de imagens fotográficas, a fusão de todas aquelas inúmeras lembranças individuais torna-se uma memória coletiva. É exatamente aqui que as biografias confundem-se com ficções e relatos que não nos pertencem, sugerindo que, talvez, antes de factos, nossas biografias sejam também histórias. A conexão que surge com essas memórias alheias é um exercício lúdico de humanidade.


E essa ludicidade deu-me o espaço necessário para repensar o trabalho de Carinhas como a dança que executa ao som de Losing my mind, de Liza Minnelli. The sun comes up, I think about you / The coffee cup, I think about you / I want you so, it's like I'm losing my mind / The morning ends, I think about you / I talk to friends and think about you. Um corpo que dança em movimentos convulsivos, a ocupar espaços da cena que, até então, não ocupava (assim como a nossa memória também se move e ocupa as mãos, os braços, o peito, os olhos, os órgãos; não só a mente). «Dançar para lembrar, dançar para esquecer». Lembrar que o pensamento também dança. Nos movimentos mais insuspeitos, nas decisões mais inusitadas do corpo, nas moções mais incomuns da memória, estão a linguagem que diz e que se faz lembrar. E sorrimos por direito. Afinal, «até o terror tem dentes para sorrir».


Em que medida Última memória consegue (e interessa-se) por nos deslocar para aquele provisório instante em que a memória deixa de ser passado e torna-se um pequeno e delicado susto no infinito que é, simplesmente, lembrar-se?


Ao encerrar o trabalho com um brinde ao amor, parece, então, que o mundo é resumido à memória do mundo. Foi quando Louise Glück veio-me à mente, como se tentássemos recriar o nosso olhar para o mundo depois de muito tempo, agora como adultos. E tal recriação vem estranha, simulada, fingidiça. Como se não tivéssemos mais o direito de olhar algo, sem recorrer à nossa própria memória. Há algum tipo de redenção na celebração à vida que nos une e que, ao mesmo tempo, distancia-nos – afinal, a vida que celebramos não está mais aqui.


Ao ritualizarmos a celebração da vida, concretizamos o desejo de comunidade ao mesmo tempo em que o perdemos. Sou devolvido ao individual, ainda que esteja unido, sem dúvida, àquela última memória, ela sim, agora coletiva: o teatro – uma caixa de madeira com sua própria luz interna. Saio vivo, completamente em contradição; celebrar a vida é celebrar o seu inevitável esquecimento. Um brinde ao amor é, nesse sentido, um pedido de socorro.


Por isso, esse texto se redimiu da palavra «afeto». Há palavras que merecem um descanso, como nós também, muitas vezes, merecemos. Afinal, todo convite à memória convoca também um estado de silêncio. Precede a fala, a falta, o sorriso, a linguagem, o enlevo da nostalgia, tão misteriosa. «Estar sobre os ombros de meu pai e ver o mundo de cima», foi a memória que, antes esquecida, foi lembrada pelo convite da anfitriã. No entanto, é delicado: naquele papel, ela continua esquecida. E lembrar, nesse caso, é continuar; somos a continuação de tudo o que esquecemos.


 

PROGRAMA DE ESCRITA

Gustavo Colombini assistiu ao espetáculo Última memória no dia 31 de março de 2023, às 19h30, no Teatro São Luiz (Lisboa); de 1 a 9 de abril, escreveu uma primeira versão desse texto que, de 10 a 13 de abril, foi comentado por Diogo Liberano; por fim, na sexta-feira, 14 de abril, os dois finalizaram juntos esse texto.


 

ESSE “OUTRO” TEXTO

Durante a composição desse texto, lembramo-nos do primeiro capítulo do livro O fogo e o relato do filósofo italiano Giorgio Agamben.


 

Última memória

Criação, dramaturgia e interpretação: Sara Carinhas | Participação especial: Sr. Victor | filmagens, registo e apoio à dramaturgia: Joana Botelho | Consultoria artística: Nádia Yracema e Sara Barros Leitão | Assistência de encenação: Joana Picolo | Desenho de som: Madalena Palmeirim | Desenho de luz: Catarina Côdea | Direção de produção: Rita Faustino | Produção executiva: Mariana Dixe | Coprodução: Causas Comuns e São Luiz Teatro Municipal | Residências artísticas: Officina Mundi – Joana Villaverde (Avis), Município de Avis, O Espaço do Tempo (Montemor-o-Novo), Festival END (Coimbra) | Apoios: Mostra Camaleoa (Florianópolis, Brasil), Companhia Olga Roriz (Lisboa)



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