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O horror

  • Foto do escritor: Esse texto
    Esse texto
  • 30 de jun.
  • 8 min de leitura

A partir de BABEL, de Nuno Cardoso (Teatro Nacional São João)



I. ANTERIOR

Presente no livro Gênesis, o mito bíblico da Torre de Babel narra a origem das diversas línguas humanas. Naquele contexto, parece que Deus andava preocupado que as seres humanas, buscando 1) evitar um segundo dilúvio e 2) alcançar o céu, tivessem começado a construir uma cidade e uma torre bem alta para, ao mesmo tempo, evitar a dispersão de seus pares e “tocar” o divino. Um projeto de unificação e glória humana que Deus achou perigosa. Para impedi-las, ele trouxe à existência vários idiomas, confundindo as línguas das construtoras, que passaram a não conseguir mais se compreender. Incapazes de cooperar, abandonaram a obra e se dispersaram pela Terra. Tal mito costuma ser lido como um castigo divino e, simultaneamente, como o estopim que inaugurou tantas diferenças e diversidades culturais.

Construir uma cidade com uma torre alta que nos protegesse de um dilúvio; construir, de algum modo, e em uma cidade, um porto seguro. Construir um porto como quem constrói uma encenação teatral: sítio capaz de acolher a colisão entre diferenças culturais. E caso, por agora, não seja possível construir um porto assim tão vasto e seguro, ao menos uma paragem de autocarro conseguimos.

Mas a dispersão pelo mundo é castigo ou bênção?

Imaginem uma humanidade unificada à força, sob um só projeto.

O que acham disso?

Sempre fico comovido quando vejo em cena o que vi em Babel, e por repetidas vezes. Tento explicar-me: há uma pessoa em cena, ela tem um papel, previamente definido, a desempenhar. Para desempenhá-lo, ela precisa dizer determinadas palavras, fazer alguns gestos específicos e se movimentar em relação a outras pessoas, ao espaço e, tal como estipulado a priori, seu repertório de ações, mesmo sendo de sua exclusiva responsabilidade, é crucial para a plenitude daquele evento que chamamos de espetáculo teatral.

Mas, observem: eu disse haver uma “pessoa” em cena, não uma “atriz”.

Todas as atrizes são pessoas ou todas as pessoas são atrizes?

Durante a realização de seu repertório específico de ações, com que habilidade essa pessoa as executaria? Faria de um modo titubeante, tropeçando a cada passo dado? Ou, talvez, faria tudo de um modo mais ou menos convincente? Demonstraria algum hesitar? Ou ainda: será que ela tremeria, a pessoa sobre o palco e em cena, ela tremeria ao se fazer passar por outra que não ela mesma?

Foi o poeta Dante Alighieri quem, certa vez, especulou quem poderia ser essa que treme. Ele disse: “o artista / a quem, no hábito d’arte, treme a mão”. E, nesta Babel, foi com delicado espanto que minha atenção foi cativada pelas pessoas em cena que, em cena, não apenas gesticulavam, não somente falavam, mas também tremiam. E tremeram muito.

Às vezes, acho que é impossível não ficar comovido com a existência de outra ser humana. Com as histórias dela.

Uso o verbo “tremer” como um modo de dar a ver algo que vi acontecer em cena: mais pessoas do que atrizes, mais disponibilidade do que técnica, muito mais vida do que atuação. Suspeito que eram pessoas que não atuavam porque, antes de poderem executar tal tarefa, já tinham sido separadas do teatro pelo rótulo desnecessário de seu amadorismo.

Eu olhava aquelas pessoas indo daqui para lá, forjando interesse no que era dito por outra pessoa situada num ponto específico do palco para, em seguida, reposicionarem-se – todas – espalhadas pelo espaço. Não faço uma rejeição ao amadorismo, antes, recuso enfaticamente a necessidade dessa separação tecnocrata (como se aquilo que a arte teatral fizesse de melhor não fosse justamente misturar aquilo com isto).

Fez-me ponderar que não haveria Babel se dependesse do teatro.

Por que será que insistimos com mais afinco, nós, artistas, em encenar a incomunicabilidade humana quando poderíamos, com a mesma dedicação, encenar sua comunicação?

Afinal, não estamos mais em tempos de pós-guerra.

Estamos em tempos de guerra.

E o que isso muda?

Eu amo quando aquela mulher (a usar sapatos pretos de pontas finas) abre a boca para nos contar sua história (peço desculpas, não sei o seu nome). O texto que ela nos disse, para além do dito, pareceu-me ter afirmado um dizer de boca cheia como se dissesse algo como “eu amo profundamente”. Eu amo profundamente quando isso que chamo de vida, desimportante, invade o palco.

Invade por quê?

Porque não pertence a ele?

Eu não sei o que ela ama, não sei como ela faz para amar algo assim nessa intensidade, mas ela tremia com sua bolsa e seu lenço, delatando o seguinte: aquela mulher que no palco dá corpo a outras pessoas nada mais é do que uma amadora, condição humana (anterior?) a qualquer profissionalização.


    G.O.L.P. - Fotografia de Maglio Pérez
Babel - Fotografia de José Caldeira

II. INTERIOR

Ó vós que temeis a cor, o canto, o nome,

E que gritais por ordem e limpeza,

Sabei que o tempo há de vos consumir como

Areia cega, em torres de tristeza.

Pois cada voz calada pela força

É uma semente oculta no subsolo,

E cada gesto impuro que se torça

Um dia brota em flor por sobre o dolo.


Não há nações — há nomes e pactos vãos

Erguidos como falsos monumentos.

Mas há no peito humano, em suas mãos,

Um mapa feito de outros pensamentos.

E quando o mundo for, por fim, ouvido

Na língua dos que nunca foram lidos,

Então Babel será não o perdido,

Mas o começo dos que foram vencidos.


Cantai, poetas, contra a torre infame

Que ergue o medo em nome da virtude!

Gritai nos becos, praças, onde a fome

Se oculta sob a máscara da saúde.

O novo fascismo vem como quem cura,

Fala de ordem, paz, segurança e pão;

Mas traz nas mãos, sutis, a arquitetura

Do campo, da mordaça e da prisão.


E vós, artistas, sede os atalaias

Do verbo que acolhe e que perturba!

Que cada cena dite novas praias,

E cada riso abata a fala turba.

Pois Babel não é ruína a ser temida,

Mas um jardim de línguas redivivo:

Toda vida humana, se for ouvida,

É um coro mais humano e mais altivo.


E quando enfim cair a última torre

Do império que se impõe pela violência,

O mundo, que de dor também socorre,

Há de escrever de novo sua sentença:

Não há idioma que se baste em si,

Nem raça, nem bandeira sem mistura.

Quem ama o verbo ama o que há por vir —

E a liberdade é Babel em partitura.


III. EXTERIOR

Quando a luz se abriu sobre o palco, para além da banda ao fundo e sua partitura, para além de cadeiras e bancos, e mesmo para além daquelas pessoas, comoveu-me ter imaginado que a cenografia tenha escolhido uma paragem de autocarro como ingrediente primordial de seu jogo cênico-dramatúrgico.

A paragem, no palco instalada, traz em si a ambivalência do parar e da partida, do movimento que cessa e daquele que, a partir dela, dela partiria. Um teatro como uma paragem de autocarro. Uma paragem dentro de um teatro. A cidade do Porto como uma paragem.

Nessa língua extracontinental que é a portuguesa, quando aterrei em Portugal pela primeira vez, estranhei que os “pontos” de ônibus fossem chamados de “paragens” do autocarro. Paragens são espaços onde paramos para, assim é esperado, posteriormente, darmos seguimento à viagem.

Só que, em Babel, mais do que sinalizar a tensão entre o ir e o ficar, mais do que indicar a tensão entre passado e futuro históricos, a paragem no canto do palco faz nascer um palco na cena da cidade. Mas é uma paragem que se move, a propósito, instalada sobre rodinhas que, num dado momento, fazem dela uma espécie de automóvel. Um pequeno púlpito, sem relevo. É nela onde vimos, de quando em quando, uma pessoa relatar a sua história e seus receios; é nela onde, com poucas palavras, uma moradora do Porto vinda de outro canto do mundo, faz-se falar e reúne, ao seu redor, figuras outras que, com ela, partilhavam apenas a cidade em que vivem.

Esta é a Babel, um palco-porto-Porto que, suponho, faz da Babel bíblica menos uma punição e mais uma realidade. Porque há neste Porto atravessado por tantas línguas e suas pernas, movido por tantos braços e suas mãos, ainda há neste Porto um espaço dedicado a acolher alguma diversidade, espaço dedicado à árdua tarefa que é não simplificar tantas vidas que apenas sobrevivem porque escapam ao nome, às profissões e seus mercados.

Você sabe de que sítio estou a falar: o teatro, essa paragem.

A vida continua a ser feita dos momentos menos memoráveis.


    G.O.L.P. - Fotografia de Maglio Pérez
Babel - Fotografia de José Caldeira

IV. POSTERIOR

Então, eis o horror.

Babel é uma peça teatral que se encerra com o hino de Portugal.

A plateia levanta-se das cadeiras (por impulso, respeito patriótico, por medo, inércia ou por tácita obrigação) e canta, quase em uníssono, partes d’A Portuguesa.

Um orgulho destemido ganha um corpo estranho entre cena e público – afinal, há público em cena, não deixa de haver. O teatro nunca deixou de ter público em cena. Faz-me perguntar sobre qual cena encena o público que está na plateia.

Imagino: uma Babel que acolhe e sente o prazer do acolhimento não pela razão moralmente instituída do “fazer o bem para outrem”, mas por uma sensação honestamente patética que é acolher porque não se saber fazer de outro jeito.

O que vi: construíram outra Babel para ser, outra vez, destruída.

Por que insistiram em encenar a incomunicabilidade humana quando poderiam, com a mesma dedicação e o mesmo financiamento, encenar nossa comunicabilidade?

O estrangeiro que fala o mesmo idioma que você, ainda é estrangeiro? E Deus, ao criar a separação entre humanas provocada pela diferença linguística, será que contava que, no decorrer dos séculos, aprenderíamos outras línguas?

Há muitas maneiras de produzir separações; a língua, talvez, já não seja a principal delas.

Quando minha mãe se esqueceu da palavra “Portugal”, ela disse: “lá, no país do Gustavo”. O país do Gustavo é o seu próprio lugar, ainda mais quando o mundo, confirma-se, vive tempos de guerra.

Não existe comunidade. Constrói-se.

Não existe identidade. Constrói-se.

O que serve um hino nacional? Ou seja: o que, ao ser cantado e ouvido, ele entrega?

“Às armas! Às armas!” – é isso o que fica quando o espetáculo se encerra?!

É isto o que se entrega?

Eis o horror: quando o ato de amar a nação entrega outra coisa.


PROGRAMA DE ESCRITA Gustavo Colombini assistiu ao espetáculo BABEL no dia 11 de junho de 2025, às 19h, no Teatro Carlos Alberto, no Porto; no dia 15 de junho, em um comboio entre Porto e Lisboa, Colombini propôs um exercício a Diogo Liberano: a partir da folha de sala do espetáculo, escolher três elementos do espetáculo não-visto para inventar um espetáculo imaginado; entre os dias 18 e 23 de junho, Liberano escreveu o texto crítico Colisão, e enviou-o para Colombini; de 24 a 26 de junho, Colombini modificou o texto recebido a partir de intervenções diretamente a partir do espetáculo visto; por fim, em 30 de junho, os dois finalizaram juntos esse texto.

Babel A partir de Os Lusíadas, de Luís de Camões | Encenação, dramaturgia, cenografia e figurinos: Nuno Cardoso | Desenho de luz: Filipe Pinheiro | Desenho de som e sonoplastia: Francisco Leal | Vídeo: Fernando Costa | Assistência de encenação: Sara Azevedo | Interpretação e cocriação: Carlos Rodrigues, Cristina Almeida, Edilson Wa Ka Chambe, Emílio Costa, Hermínia Teixeira, José Teixeira, Luísa Costa, Madalena Costa, Marlene Pacheco, Rodrigo Matos, Roldy Harrys, Rosa Quiroga, Sérgio Nogueira, Tiago Ribeiro e Sérgio Sá Cunha, Telma Cardoso | Música: Adriano Silva (eufónio), Diogo Gomes (trompete), Lucas Domingos (trombone), Marta Figueira (clarinete), Rafael Fonseca (tuba) e Francisco “el Killo” Beirão (percussão) | Produção: Teatro Nacional São João


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© 2025 - Esse texto

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ISSN 2976-0240

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