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  • Esse texto

Virar em diferentes direções

A partir de Como se nada fosse, do Grupo de Teatro Comunitário do Bonfim



Sobre um palco baixo, um punhado de corpos descabelados são atravessados por luzes brancas que, ao piscarem, fraturam a coesão dos seus movimentos; são corpos em plena atividade, saltam daqui para lá, concentrados, de lá para cá, apertados, e dançam porque estão cansados e estão cansados porque já não dançavam; a envolver tais corpos, uma música febril é irradiada em todas as direções e lá estou eu, seu alvo, sentada diante de uma rave, eu estou sentada diante de uma, repito, sentada diante de uma festa, como é possível? Absorta e perplexa, fico assim até erguer-me da cadeira com meus mil aplausos.


Vou embora para casa acompanhada por aquelas senhoras e suas tantas adolescências, por seus movimentos hesitantes e tão vigorosos, eu penso como quem deseja: quando eu estiver muito longe da infância, que exista um teatro que a ela me devolva.

Confesso que elas sequestraram a minha atenção. Fiquei presa por um bom tempo, apaixonada e assustada, a observá-las. Com algum atraso, percebi que sob aquelas tão expressivas sobrancelhas pintadas havia outras duas, originais, um pouco mais apagadas e escondidas. Meus olhos teimaram em aceitar aquela visão, afinal, não podemos ter quatro sobrancelhas, podemos? Ora, ali podíamos. Quando perguntado se o mundo poderia ser reproduzido pelo teatro, o dramaturgo e encenador alemão Bertolt Brecht disse que sim, desde que fosse concebido como um mundo suscetível de modificação.


Em Como se nada fosse, criação coletiva do Grupo de Teatro Comunitário do Bonfim (Porto), com direção artística de Susana Madeira, tal como sobrancelhas pintadas sobre sobrancelhas, cada escolha feita nesta encenação é um potencial ingrediente cênico, crítico e discursivo. A palavra, nesse sentido, tem tanta importância como os olhos que se movem, os cabelos que gritam e as tantas maletas que ladram. Nesta performance, parece que antes do verbo havia o vento e, enredado neste, agora há um grupo em cena composto por dezessete corpos humanos em ritmado êxtase e pleníssimo acontecimento.


Através de um meticuloso e coletivo trabalho de composição visual, vemos em cena rostos brancos, pálidos e adoecidos; corpos escondidos em roupas brancas e pretas, uniformes e uniformizantes; seres humanos sem viço ou verso que os salvem, sem nada a declarar exceto o IRS. Tal composição visual do elenco, ao impor-lhe um padrão, parece afastar qualquer possibilidade de diferenciação já que, em cena, cada pessoa é tal qual a outra ao seu lado. A partir dessa intencionada agrura, sentada na plateia, eu, leitora, comecei a perseguir algum traço ou tremor capaz de atravessar esse anonimato para me fazer encontrar alguma pessoa de verdade. Como se não tivesse importância, ou seja, Como se nada fosse, quando vemos, somos parte dessa comunidade cara-branca cujo destino em vida é apenas concordar e pagar contas, a despeito de quem somos e do que desejamos.



Os corpos em cena estão a reagir à doença provocada e plantada em nós pelo capital (doença num estágio tão avançado que mesmo nós, adoecidas, reclamamos de falar a palavra “capitalismo”, tal como uma vítima protegeria o seu violentador). O capitalismo está dedicado a resolver as mesmas aflições para as quais tantas religiões já buscaram oferecer respostas. Como sistema religioso, ele é um culto sem trégua nem piedade, e torna todos os dias de nossas vidas propícios ao consumo. A religião, assim, deixa de ser a reforma do ser e passa a contribuir decisivamente para o seu esfacelamento.


Diante dessa uniformização de nossos corpos e gostos e que, em cena, é expressa cineticamente tal como as engrenagens burocráticas de Kafka, caberá ao jogo teatral abrir algum caminho ou saída. É assim que a pálida maquiagem que abate e despersonaliza aquelas personagens será derrotada pelo suor do elenco que as interpretam. Quanto mais o jogo cênico avança, mais o seu suor permite-nos ver vidas para além daquela uniformidade: seus cabelos agitados e suas cabeleiras a saltarem dos cocos, essa imagem em movimento, é a manifestação indissociável de que para desbancar a destruição que o capital nos provoca é preciso expor os efeitos causados pelo capital em nossos corpos.


É assim que Como se nada fosse aproxima-se poeticamente de algum expressionismo alemão, em especial, na sua vertente cinematográfica e muda. Era início do século vinte, após a Primeira Guerra Mundial, e o expressionismo alastrava-se pelos fazeres artísticos a escrever imagens distantes da realidade aparente, mais angustiadas, distorcidas e escritas através de contrastes imensos. Foi diante dessa poética assumidamente antirrealista que determinada realidade mais hegemônica, através da arte, foi colocada em questão.


Escrevo essas palavras e sinto imensa vontade de agradecer pelo jogo para o qual fui convidado a jogar, agradeço por ter podido rever e revirar aquilo que, talvez, já estivesse acostumado e instituído, por ter sido convidado a suspeitar que aquilo que julgamos ser natural é tão somente uma invenção. Eis aquilo que o teatro pode: do latim, “virar em diferentes direções”, o teatro pode divertir, ou seja, dar outras versões para factos encerrados. O teatro, enfim, é uma insistente lembrança de que a vida pode ser outra que não apenas isso que fizeram e fizemos dela.


Se uma dramaturgia costura ações que ultrapassam a medida das palavras, ações físicas e gestos, há neste espetáculo uma escrita sonora e musical que deriva da violinista e seu violino, do elenco, suas vozes e grunhidos, bem como do metro que passa ao fundo da cena; há uma escrita luminosa não apenas dos projetores de LED como também da lua; há uma escrita simbiótica entre ficção e mundo, LED e LUA, a sugerir que a matéria primordial desse espetáculo é a vida daquela comunidade que, através de um labor coletivo, deu outra versão para si mesma e que foi para além dos seus cotidianos fatos e factos.



Sinto que, da próxima vez em que cruzar com alguma artista daquele elenco no meio de um dia qualquer, lembrar-me-ei que há dentro daquela artista mais pessoas do que uma apenas. No fundo do espaço cênico, numa quina a céu aberto do colégio Salesianos do Porto, vidros refletiam o jogo da cena e plasmavam artistas, público, árvores, luzes, carnes, papéis voadores e tantos outros gestos. Pensei, ao mirar essa parede de vidro, que talvez seja assim que o mundo enxerga-nos: não como se nada fôssemos, mas como se pudéssemos ser para além das indivíduas que éramos.


Qual dívida vale à pena cobrarmo-nos? Eu quero mesmo é me cobrar pelo passeio que não dei em plena quarta-feira, quando, muito atarefada, fiquei horas a trabalhar diante do computador. Se for para brincar de cobrança, quero, então, é cobrar-me esse tipo de abuso que fiz comigo mesma. Eis o que me ensinam os corpos em cena: são corpos reagentes às dívidas que nos convenceram que eram nossas. Seu jogo coral é orquestrado sem medo do seu ritual próprio: em vez de escondidos, os pactos são revelados; em vez da eficácia, o tremor é singelamente valorizado; em vez de representação, o jogo da cena engole a cena e torna-a brincadeira. É nesse exato instante em que penso que a melhor idade é aquela em que conseguimos brincar.


Peço que observem aquela senhora. Ela repete o gesto que é feito por outras colegas do elenco, só que precisa dar uma conferida ao lado, discretamente, porque talvez ela não tenha certeza se agora é hora de erguer o braço direito para cima ou de balançar a cabeça agitadamente. Observem aquela senhora. Ela faz tudo conforme previamente combinado e ensaiado, só que ela faz tudo isso no templo único que é o seu próprio corpo. Para um corpo, não deveria haver atraso ou demora, não deveria existir relógio nem hora; aquela senhora brinca e eis o termômetro que mede o quanto estamos vivas.


Aqui, divirto-me um pouco mais, ou seja, viro-me noutra direção. Volto a pensar naquela oposição entre amadorismo e profissionalismo no teatro. Imaginemos que sou um estudante que deseja muito tornar-se um profissional. O que faço para que isso aconteça? Estudo apenas? Espero pelo dia em que serei convocado para atuar numa encenação profissional? Devo rezar? Ou eu poderia experimentar o meu trabalho, sucessivas vezes, suar bastante, tentar insistentemente e, a despeito de qualquer limite, realizar o meu trabalho movido pela ânsia e pelo desejo de realizá-lo? É curioso pensar em amadorismo e profissionalismo justamente por conta de um espetáculo criado por um grupo de teatro comunitário. Enquanto uma prática artística, coletiva e social, o teatro feito por esse grupo não padece o jogo de exigências do mercado profissional, ao contrário, afirma-se enfaticamente ciente de que a alegria do artista e sua arte são inegociáveis. É por isso que, para mim, o mercado profissional precisa ser amadorizado, afinal, ele já perdeu de vista a alegria.


 

PROGRAMA DE ESCRITA

Diogo Liberano assistiu ao espetáculo Como se nada fosse no dia 6 de maio de 2023, às 21h30, no Salesianos (Porto) – como espetáculo integrante da programação do Cultura em Expansão; de 8 a 16 de maio, escreveu uma primeira versão desse texto que, de 17 a 18 de maio, foi comentado por Gustavo Colombini; por fim, na sexta-feira, 19 de maio, os dois finalizaram juntos esse texto.


 

Como se nada fosse

Criação coletiva, Direção Artística: Susana Madeira | Interpretação: Alexandra Silva, Ana Pires, Ana Silva, Aurora Mendes, Beatriz Rola, Catarina Vaz, Cristina Queirós, Elisa Fonseca, Hélder Silva, Ilva Otero, Isaura Morais, João Miguel Ferreira, Lais Borges, Luíza Bezerra, Margarida Marques, Mariana Costa, Marília Guimarães | Dramaturgia: Grupo de Teatro Comunitário do Bonfim e Susana Madeira | Apoio à dramaturgia: Hugo Cruz | Texto: Grupo de Teatro Comunitário do Bonfim e Susana Madeira com excertos de Alberto Pimenta, Eugénio de Andrade, Fernando Namora, Fernando Pessoa, Geraldo Vandré, Howard Fast, Luíz Vaz de Camões, Luíza Neto Jorge e Paulo Leminski | Direção Musical: Beatriz Rola | Direção Técnica e Desenho de Luz: Luís Ribeiro | Técnico de Som: André Leite | Cenografia, Adereços e Figurinos: Patrícia Costa | Parcerias: Junta de Freguesia do Bonfim, Sporting Clube de São Vitor | Direção Executiva: João Miguel Ferreira | Apoio à Direção: Patrícia Barbosa | Direção de Produção: David Calhau | Coprodução: MEXE Associação Cultural, Cultura em Expansão / Câmara Municipal do Porto | Apoios: Junta de Freguesia do Bonfim


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