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- O singelo supérfluo
A partir de Pai para jantar , de Gaya de Medeiros e Gil Dionísio Por algumas noites, adormeci a pensar como seria jantar o meu próprio pai. De olhos bem fechados, vaguei por imaginações inauditas, até que comecei a indagar-me se haveria no pai algo efetivamente prazeroso de ser saboreado. Haveria na língua do pai alguma palavra que me possibilitasse? Haveria na sua musculatura alguma força que de pé me mantivesse? Da sua carcaça, haveria a possibilidade de forjar algum abrigo ou barco? Por sucessivas noites, deitei-me na cama como quem se senta diante de uma mesa para jantar, mas acordei sempre com fome. Suspeitei, assim, que talvez deva existir algum tipo de nutrição humana que não diga respeito a destruir ou se vingar daqueles que possam ter sido os responsáveis por alguma dor minha. Uma nutrição outra que, talvez, ultrapasse a punição que poderia ser aplicada àqueles que participaram da minha vida de um modo alienante e opressor. Essa nutrição, sem dúvida outra, demandaria ações e gestos capazes de inscrever neste mundo tudo aquilo que me foi impedido: criação e expressão. É neste cenário, deitado na mesa e disponível aos cortes, que o pai começa a soar-me um tanto insípido, desprovido de sabor, relevo ou relevância. Por cultura e repetição, a ordem do pai acostumou-se a bloquear a minha ação e o meu pensamento; a ordem do pai bloqueou qualquer processo de singularização e impôs-me modos de ser e estar, trabalhar e falar, amar e foder; o pai – mesmo à distância – fabricou a minha relação com a natureza, os factos, o corpo e o movimento. E é a partir desse aprendizado que alguém poderia ter sido impedida de continuar a viver uma vida suportável. Em Pai para jantar , espetáculo com conceção da artista Gaya de Medeiros, com criação, textos e performance desta e de Gil Dionísio, o pai parece ser um pré-texto para que outros textos sejam escritos. Na arena quadrangular da performance, rodeadas por espectadoras posicionadas muito próximas ao jogo artístico, Gaya e Gil despem-se de suas roupas como se servissem uma entrada antes da refeição principal. Tal entrada é devidamente o colocar do problema ante os nossos olhos, afinal, gastaremos a nossa energia a tentar ver os pênis que ali já são expostos ou haveria algo mais importante de ser notado que não o ensimesmado falo? O falo e o falar são expostos através dos corpos em performance, mas a presença do falo não pressupõe que falar seja uma continuação do mesmo. Neste trabalho, mais do que celebrar o falo, a ação de falar parece mesmo é querer fatiá-lo e ultrapassá-lo. No espaço da cena há uma mesa, pequenos bancos, o mobiliário mais singelo e objetivo para o jantar. No entanto, o prato em si é o pai que, mesmo desmaterializado, está esparramado dentro de mim como uma linfa capaz de impregnar o meu corpo e adulterar cada ação que faço. Eis a operação desta performance: as artistas sabem que o pai está vivíssimo em nós, espectadoras, e que mencioná-lo na cena é torná-lo presente. Porém, mais importante que a proximidade quase tátil do pai, é o facto de que, durante toda a performance, além das duas artistas em cena, há também a presença física de uma espectadora. A essa espectadora é oferecida a possibilidade de mais ouvir do que falar, mais contemplar do que afirmar, de fazer pequenos e singelos deslocamentos como deitar sob a mesa e estar no mundo como quem aprende que o mundo é mais vasto do que o seu próprio querer; essa espectadora é o pai, na medida em que o pai é aquele quem precisa, urgentemente, aprender a desaprender. A espectadora, dentro do jogo da cena, antes de ser espectadora é somente uma pessoa. Ela, agora, sou eu, metonímia carnalizada e lançada ao jogo que, durante a performance, faz-me perguntar: e se tu estivesses ali, o que farias? Saberias a hora de falar ou silenciarias? Sentirias receio de atrapalhar a peça? Aceitarias entrar nesse jogo? E com que doçura, com que disponibilidade? É assim que o jantar começa: a artista Gaya de Medeiros convida alguém do público para sentar-se no centro do espaço e acompanhar a performance por outra perspectiva. Penso no inacabamento constitutivo de algum fazer artístico contemporâneo, afinal, em Pai para jantar , há textos sendo escritos pela primeira vez: o texto já escrito previamente, o texto do acontecimento, o texto das reações da espectadora; o texto que costura esses textos. Há mistério no esforço que precisa ser feito para firmar uma existência neste mundo que não seja a do pai. Porém, tal esforço pode dar corpo e contorno ao que impede tal existência de existir em vez de celebrar a sua vitalidade. O que brilha nesta performance é que ela não busca fatiar o pai com a faca. É a fala que atravessa a carcaça do homem e revela que, a despeito dele e da sua orgulhosa dureza, há mais vidas e histórias do que as poucas que foram pelo pai autorizadas. A autoridade. Como sabê-la? Trata-se de uma voz geral dedicada a impor, calar e corrigir? De um gesto que deturpa a paisagem do mundo a fim de privilegiar os seus interesses? Uma ação que induz sentidos em vez de convidar-nos a descobri-los? Penso em autoridade por suspeitar que, a despeito da roupa que ela veste, uma autoridade é sempre a autoridade. É em autoridade que penso ao ser convidado para jantar o pai, pois, de um modo análogo, jantar o pai é jantar uma série de autoridades: janta-se o pai, o homem gênero masculino, o sentido, a autoria, janta-se a obra de arte, a separação arte e vida e, em especial, janta-se a invariabilidade das ideias que fazemos das coisas, afinal, foste assistir a um espetáculo de dança para ver dançarinas a bailar? Ao contar uma das primeiras histórias nesse espetáculo, Gaya fala-nos de uma mulher que sobreviveu, bem viva mesmo, diante de um homem ou monstro ou coisa parecida (um minotauro, talvez). Ao contar essa história, Gaya dá um pequeno salto e, ao descrever tal mulher ou bailarina, a performer inscreve o seu único passo de dança e é diante dele onde estou agora, sequestrado, à procura de um gesto capaz de resolver o meu estranho embaraço. (Pergunto-me se é o pai quem, em mim, agora fala. Será que eu falo e desejo através do pai? Não me sinto dominado por ele, mas por que será que me sinto, de algum modo, tão desnorteado? O que esse trabalho modifica em relação àquilo que os olhos do pai catequizaram-me a ver?). Os gestos verbais e cinéticos desta performance são assertivos. A nudez das performers, por exemplo, não é arma contra o pai, antes, é a afirmação de quem se é, a despeito do fulano. Lembro-me do dia em que fui até a casa do meu pai contar para ele que eu era gay. Após um diálogo muito silencioso, com lágrimas e raiva a saltar dos olhos, meu pai disse-me que eu poderia ser quem eu quisesse desde que fosse fora de casa, pois ali, na casa dele, eu continuaria sendo apenas o seu filho. Lembro-me da agilidade com a qual meu pai separou o filho que eu era de quem ele gostaria que eu fosse. Disse-lhe assim: pois então hoje é a última vez em que nos vemos, pai, pois eu não posso ser dois, eu sou um, e este um é tanto o seu filho como um homem gay. E fiz mais, disse-lhe: vou para a minha casa e, caso o senhor não me telefone até amanhã cedo para dizer que sou bem-vindo aqui do jeito como sou e com quem eu quiser, hoje é mesmo a última vez em que nos veremos. Por algumas noites, adormeci a pensar como seria jantar o meu próprio pai. Numa manhã, acordei tomado por uma propositiva resposta: contar histórias. Contar histórias como quem suspeita que contá-las é semear no mundo as vidas que teimam em ser desafiadas a desaparecer. Eis o singelo supérfluo que Gaya de Medeiros propõe-nos: existir e contar histórias são ações quase-idênticas. Mas não se trata de contar histórias que doeram e/ou façam doer; trata-se de contar aventuras específicas – fundar uma nova mitologia – que façam um punhado de vidas continuarem e que, ao serem contadas, consigam transformar a maquinaria desse mundo. É mais ou menos o que sinto quando estou/me vejo envolvido pelas histórias diversas que me foram contadas em Pai para jantar , ainda que não consiga bem me lembrar delas. São histórias mesmo ou apenas um falatório? Elas misturam-se umas às outras sem pedirem licença, não parecem apaixonadas pelo mito do herói; elas compõem-se por relatos familiares atrelados a espantos delicados, talvez por serem muitas, diversas e também fatiadas; ora são escritas por cantos sonoros e mesmo incompreensíveis, talvez o especial mesmo era estar ali, a contar e ouvir histórias, a despeito da contagem do tempo. Sentado numa cadeira, entrevejo histórias que se fazem lembrar em mim. Onde a dança está? Mais que celebrar violências, jantar o pai é desafiar a insistência da sua presença. Tal pergunta, rabugenta, esconde ainda um resto de pai em mim. Ser pai é um papel social que pode ser interpretado por qualquer uma de nós. Não poderia a dança fazer dançar os verbos mais do que os músculos do corpo? Não poderia o teatro ficar mudo de palavras e inscrever-se apenas por silêncios e imagens? O pai existe para além de corpos, gêneros ou nomes. A autoridade, substantivo feminino. Que tipo de procura seria essa? PROGRAMA DE ESCRITA Diogo Liberano assistiu ao espetáculo Pai para jantar no dia 20 de abril de 2023, às 19h30, no Teatro Campo Alegre (Porto) – como espetáculo integrante da programação da 7ª edição do Festival Dias da Dança (DDD); de 21 a 30 de abril, escreveu uma primeira versão desse texto que, de 1 a 2 de maio, foi comentado por Gustavo Colombini; por fim, na quarta-feira, 3 de maio, os dois finalizaram juntos esse texto . ESSE “OUTRO” TEXTO Durante a composição desse texto, lembramo-nos do livro Ética bixa de Paco Vidarte. Pai para jantar Criação, textos e performance: Gaya de Medeiros e Gil Dionísio | Conceção: Gaya de Medeiros | Música: Gil Dionísio | Figurino: Raphael Fraga | Espaço cénico e iluminação: Tiago Cadete | Assistência dramatúrgica: Alex Cassal | Gestão financeira: Marta Moreira | Produção: Carol Goulart
- Virar em diferentes direções
A partir de Como se nada fosse , do Grupo de Teatro Comunitário do Bonfim Sobre um palco baixo, um punhado de corpos descabelados são atravessados por luzes brancas que, ao piscarem, fraturam a coesão dos seus movimentos; são corpos em plena atividade, saltam daqui para lá, concentrados, de lá para cá, apertados, e dançam porque estão cansados e estão cansados porque já não dançavam; a envolver tais corpos, uma música febril é irradiada em todas as direções e lá estou eu, seu alvo, sentada diante de uma rave , eu estou sentada diante de uma, repito, sentada diante de uma festa, como é possível? Absorta e perplexa, fico assim até erguer-me da cadeira com meus mil aplausos. Vou embora para casa acompanhada por aquelas senhoras e suas tantas adolescências, por seus movimentos hesitantes e tão vigorosos, eu penso como quem deseja: quando eu estiver muito longe da infância, que exista um teatro que a ela me devolva. Confesso que elas sequestraram a minha atenção. Fiquei presa por um bom tempo, apaixonada e assustada, a observá-las. Com algum atraso, percebi que sob aquelas tão expressivas sobrancelhas pintadas havia outras duas, originais, um pouco mais apagadas e escondidas. Meus olhos teimaram em aceitar aquela visão, afinal, não podemos ter quatro sobrancelhas, podemos? Ora, ali podíamos. Quando perguntado se o mundo poderia ser reproduzido pelo teatro, o dramaturgo e encenador alemão Bertolt Brecht disse que sim, desde que fosse concebido como um mundo suscetível de modificação. Em Como se nada fosse , criação coletiva do Grupo de Teatro Comunitário do Bonfim (Porto), com direção artística de Susana Madeira, tal como sobrancelhas pintadas sobre sobrancelhas, cada escolha feita nesta encenação é um potencial ingrediente cênico, crítico e discursivo. A palavra, nesse sentido, tem tanta importância como os olhos que se movem, os cabelos que gritam e as tantas maletas que ladram. Nesta performance, parece que antes do verbo havia o vento e, enredado neste, agora há um grupo em cena composto por dezessete corpos humanos em ritmado êxtase e pleníssimo acontecimento. Através de um meticuloso e coletivo trabalho de composição visual, vemos em cena rostos brancos, pálidos e adoecidos; corpos escondidos em roupas brancas e pretas, uniformes e uniformizantes; seres humanos sem viço ou verso que os salvem, sem nada a declarar exceto o IRS. Tal composição visual do elenco, ao impor-lhe um padrão, parece afastar qualquer possibilidade de diferenciação já que, em cena, cada pessoa é tal qual a outra ao seu lado. A partir dessa intencionada agrura, sentada na plateia, eu, leitora, comecei a perseguir algum traço ou tremor capaz de atravessar esse anonimato para me fazer encontrar alguma pessoa de verdade. Como se não tivesse importância, ou seja, Como se nada fosse , quando vemos, somos parte dessa comunidade cara-branca cujo destino em vida é apenas concordar e pagar contas, a despeito de quem somos e do que desejamos. Os corpos em cena estão a reagir à doença provocada e plantada em nós pelo capital (doença num estágio tão avançado que mesmo nós, adoecidas, reclamamos de falar a palavra “capitalismo”, tal como uma vítima protegeria o seu violentador). O capitalismo está dedicado a resolver as mesmas aflições para as quais tantas religiões já buscaram oferecer respostas. Como sistema religioso, ele é um culto sem trégua nem piedade, e torna todos os dias de nossas vidas propícios ao consumo. A religião, assim, deixa de ser a reforma do ser e passa a contribuir decisivamente para o seu esfacelamento. Diante dessa uniformização de nossos corpos e gostos e que, em cena, é expressa cineticamente tal como as engrenagens burocráticas de Kafka, caberá ao jogo teatral abrir algum caminho ou saída. É assim que a pálida maquiagem que abate e despersonaliza aquelas personagens será derrotada pelo suor do elenco que as interpretam. Quanto mais o jogo cênico avança, mais o seu suor permite-nos ver vidas para além daquela uniformidade: seus cabelos agitados e suas cabeleiras a saltarem dos cocos, essa imagem em movimento, é a manifestação indissociável de que para desbancar a destruição que o capital nos provoca é preciso expor os efeitos causados pelo capital em nossos corpos. É assim que Como se nada fosse aproxima-se poeticamente de algum expressionismo alemão, em especial, na sua vertente cinematográfica e muda. Era início do século vinte, após a Primeira Guerra Mundial, e o expressionismo alastrava-se pelos fazeres artísticos a escrever imagens distantes da realidade aparente, mais angustiadas, distorcidas e escritas através de contrastes imensos. Foi diante dessa poética assumidamente antirrealista que determinada realidade mais hegemônica, através da arte, foi colocada em questão. Escrevo essas palavras e sinto imensa vontade de agradecer pelo jogo para o qual fui convidado a jogar, agradeço por ter podido rever e revirar aquilo que, talvez, já estivesse acostumado e instituído, por ter sido convidado a suspeitar que aquilo que julgamos ser natural é tão somente uma invenção. Eis aquilo que o teatro pode: do latim, “virar em diferentes direções”, o teatro pode divertir, ou seja, dar outras versões para factos encerrados. O teatro, enfim, é uma insistente lembrança de que a vida pode ser outra que não apenas isso que fizeram e fizemos dela. Se uma dramaturgia costura ações que ultrapassam a medida das palavras, ações físicas e gestos, há neste espetáculo uma escrita sonora e musical que deriva da violinista e seu violino, do elenco, suas vozes e grunhidos, bem como do metro que passa ao fundo da cena; há uma escrita luminosa não apenas dos projetores de LED como também da lua; há uma escrita simbiótica entre ficção e mundo, LED e LUA, a sugerir que a matéria primordial desse espetáculo é a vida daquela comunidade que, através de um labor coletivo, deu outra versão para si mesma e que foi para além dos seus cotidianos fatos e factos. Sinto que, da próxima vez em que cruzar com alguma artista daquele elenco no meio de um dia qualquer, lembrar-me-ei que há dentro daquela artista mais pessoas do que uma apenas. No fundo do espaço cênico, numa quina a céu aberto do colégio Salesianos do Porto, vidros refletiam o jogo da cena e plasmavam artistas, público, árvores, luzes, carnes, papéis voadores e tantos outros gestos. Pensei, ao mirar essa parede de vidro, que talvez seja assim que o mundo enxerga-nos: não como se nada fôssemos, mas como se pudéssemos ser para além das indivíduas que éramos. Qual dívida vale à pena cobrarmo-nos? Eu quero mesmo é me cobrar pelo passeio que não dei em plena quarta-feira, quando, muito atarefada, fiquei horas a trabalhar diante do computador. Se for para brincar de cobrança, quero, então, é cobrar-me esse tipo de abuso que fiz comigo mesma. Eis o que me ensinam os corpos em cena: são corpos reagentes às dívidas que nos convenceram que eram nossas. Seu jogo coral é orquestrado sem medo do seu ritual próprio: em vez de escondidos, os pactos são revelados; em vez da eficácia, o tremor é singelamente valorizado; em vez de representação, o jogo da cena engole a cena e torna-a brincadeira. É nesse exato instante em que penso que a melhor idade é aquela em que conseguimos brincar. Peço que observem aquela senhora. Ela repete o gesto que é feito por outras colegas do elenco, só que precisa dar uma conferida ao lado, discretamente, porque talvez ela não tenha certeza se agora é hora de erguer o braço direito para cima ou de balançar a cabeça agitadamente. Observem aquela senhora. Ela faz tudo conforme previamente combinado e ensaiado, só que ela faz tudo isso no templo único que é o seu próprio corpo. Para um corpo, não deveria haver atraso ou demora, não deveria existir relógio nem hora; aquela senhora brinca e eis o termômetro que mede o quanto estamos vivas. Aqui, divirto-me um pouco mais, ou seja, viro-me noutra direção. Volto a pensar naquela oposição entre amadorismo e profissionalismo no teatro. Imaginemos que sou um estudante que deseja muito tornar-se um profissional. O que faço para que isso aconteça? Estudo apenas? Espero pelo dia em que serei convocado para atuar numa encenação profissional? Devo rezar? Ou eu poderia experimentar o meu trabalho, sucessivas vezes, suar bastante, tentar insistentemente e, a despeito de qualquer limite, realizar o meu trabalho movido pela ânsia e pelo desejo de realizá-lo? É curioso pensar em amadorismo e profissionalismo justamente por conta de um espetáculo criado por um grupo de teatro comunitário. Enquanto uma prática artística, coletiva e social, o teatro feito por esse grupo não padece o jogo de exigências do mercado profissional, ao contrário, afirma-se enfaticamente ciente de que a alegria do artista e sua arte são inegociáveis. É por isso que, para mim, o mercado profissional precisa ser amadorizado, afinal, ele já perdeu de vista a alegria. PROGRAMA DE ESCRITA Diogo Liberano assistiu ao espetáculo Como se nada fosse no dia 6 de maio de 2023, às 21h30, no Salesianos (Porto) – como espetáculo integrante da programação do Cultura em Expansão; de 8 a 16 de maio, escreveu uma primeira versão desse texto que, de 17 a 18 de maio, foi comentado por Gustavo Colombini; por fim, na sexta-feira, 19 de maio, os dois finalizaram juntos esse texto . Como se nada fosse Criação coletiva, Direção Artística: Susana Madeira | Interpretação: Alexandra Silva, Ana Pires, Ana Silva, Aurora Mendes, Beatriz Rola, Catarina Vaz, Cristina Queirós, Elisa Fonseca, Hélder Silva, Ilva Otero, Isaura Morais, João Miguel Ferreira, Lais Borges, Luíza Bezerra, Margarida Marques, Mariana Costa, Marília Guimarães | Dramaturgia: Grupo de Teatro Comunitário do Bonfim e Susana Madeira | Apoio à dramaturgia: Hugo Cruz | Texto: Grupo de Teatro Comunitário do Bonfim e Susana Madeira com excertos de Alberto Pimenta, Eugénio de Andrade, Fernando Namora, Fernando Pessoa, Geraldo Vandré, Howard Fast, Luíz Vaz de Camões, Luíza Neto Jorge e Paulo Leminski | Direção Musical: Beatriz Rola | Direção Técnica e Desenho de Luz: Luís Ribeiro | Técnico de Som: André Leite | Cenografia, Adereços e Figurinos: Patrícia Costa | Parcerias: Junta de Freguesia do Bonfim, Sporting Clube de São Vitor | Direção Executiva: João Miguel Ferreira | Apoio à Direção: Patrícia Barbosa | Direção de Produção: David Calhau | Coprodução: MEXE Associação Cultural, Cultura em Expansão / Câmara Municipal do Porto | Apoios: Junta de Freguesia do Bonfim
- Lusophone manifesto
A partir de ÃO , do Teatro Praga Tenho particular paixão pela ideia da língua. A criação de padrões sonoros, gestuais, coreográficos que servem à comunicação entre dois ou mais seres vivos. Saber compreender e executar alguns conjuntos desses padrões faz de todos nós seres de uma comunidade, partícipes sociais. A língua nos une e nos separa com uma dedicação geográfica. De quantas formas essa língua nos ajuda a «pertencer»? In how many ways does it help us to conjugate the verb «to differentiate»? Para mim, foi preciso retomar, diante dessas questões, algumas literaturas aleatórias dos linguistas, do jeito mais irresponsável possível. Caçar definições nos campos da internet como um caçador atuando fora da temporada de caça. Um murderer , então. Tentar tratar sobre esse assunto com irresponsabilidade não deixa de ser uma resposta criativa ao trabalho ÃO , do Teatro Praga. Saí profundamente inquieto sobre essa delusional magic da comunicação humana que o trabalho empurrou em mim e por isso demoro. Demoro de susto, no tempo da invenção de uma digestão possível. Esse texto demora, então, como se já nascesse atrasado. Ou ainda, como se já nascesse velho. Ou então, como se fosse obrigado a esperar, numa sala de espera. Mas não haverá, entretanto, nenhuma tentativa de rejuvenescer esse texto. Afinal, a língua é elástica assim como é a vida, que nunca volta ao ponto de partida (apropriação do poema Língua , de Gilberto Mendonça Teles). Sobre o que chamei de delusional magic no parágrafo anterior, quero experimentar aqui algumas palavras. Quero colocar em tentação, quero tentar essa ideia de comunicação. Sempre me pareceu um delírio esse sistema regrado e disciplinado de aprendizado sonoro a que somos todos submetidos desde a tenra idade. Somos obrigados, ao longo da vida, a moldar os sons que saem de nós, a domesticá-los, a juntá-los em fonemas. Há muito mais sons que podem ser produzidos pelo corpo do ser humano que não se encaixam na fonética dos alfabetos. Mas é tudo em prol da civilização. E diferenciamo-nos pelos sons que aprendemos a fazer; partilhamos os que podemos executar. Assim como os cães latem e os gatos miam. Cães europeus emitem sons semelhantes aos cães africanos; eles se compreendem. Gatos brasileiros emitem sons semelhantes aos american cats : também se compreendem. Um swedish baby grita e geme como um bebé japonês. A diferenciação executada pelos idiomas do ser humano parte desse delírio comunicacional, uma tentativa sempre desajeitada de comunicação. É preciso acessar o outro, fazer-se compreender e ser compreendido, esforçar-se pela compreensão. Toda comunicação é um esforço corporal. Mesmo que, sabemos isso muito bem, seja impossível to understand the other completamente. À beleza dessa tentativa damos o nome de comunicação. Aos padrões dessa delusional magic damos o nome de língua. Li, durante essas investigações aleatórias de literaturas linguísticas, que uma língua se torna idioma quando passa a ser falada, oficialmente, em determinado país, sendo utilizada para identificar uma nação. Entende-se, então, que para uma língua ser reconhecida como idioma, ela deve estar relacionada à existência de um Estado Político. Making a language official is making it a language . Ou seja: idioma and língua are two words, yes, both translating to "language", which is labored to know how to distinguish. ÃO apresenta um conto mágico sobre um som específico – o ão, o fonema mais cheio de personalidade do português. Nasce um(a) fairytale of a sound , sem necessariamente a presença de uma só fairy . As duas figuras em verde, com seus narizes cor-de-rosa, conduzem os adultos presentes por um rito de iniciação ao ditongo nasal mais temido da lusofonia. Como pixies , elas emendam canções e danças onomatopeicas movidas pelo esforço de convencer um anglófono – yes, you can! – da sua capacidade morfenha, da sua aptidão fanhosa, da sua própria experimentação nasal (sem a qual não haverá ão). E o segredo dessa experimentação está no nariz. Os lusófonos conquistam o seu próprio nariz cor-de-rosa ainda crianças. E quando se pensa no ditongo ão, é preciso, afinal, compreender o nariz como um órgão sexual e a fonética como um ato concupiscente. No ão, os articuladores da cavidade oral estão fechados, impedindo a passagem do ar. No entanto, o véu palatino está abaixado, permitindo que o ar escape pela cavidade nasal. Esse ar que escapa, esse gozo-nasal aéreo, é o som da mão, do pão, do João, do til do ão. E do chão. É por isso, talvez, que sobre o som do ão atue gravidade o suficiente para deixá-lo colado ao chão. É por isso que, talvez, podemos tropeçar nele, tal como a personagem aprendiz desse conto. Ela pisa sobre o ão, machuca o próprio pé ao esbarrar nele. É preciso elevá-lo do chão para compreendê-lo e a música faz esse papel. As figuras sprites buscam, portanto, nos padrões dos musicais o jeito com que mexem as palavras no papel, os fonemas do ão, baralham a jornada heroica sobre um chão de poesia concreta e luz neão . Em alguns momentos penso conectado a elas: o ser humano é mesmo viciado na experiência, seja ela qual for… Mesmo que a busca por ela, caracterize o seu fim instantâneo. Is it an overkill? E com as figuras também penso no conceito da ressaca (quero mais uma vez colocar em tentação, tentar esse conceito no parágrafo seguinte, com a ajuda de sua versão anglófona): uma prova biológica de que toda diversão tem um preço a ser pago. The effects of hangovers have been hanging around for ages. The word itself, however, has only been fermenting since the late 19th century. Originally, hangover described someone or something that remained or simply survived, but it was later distilled into common use as a word for the effects of overconsumption of alcohol or drugs. These days, hangover can also suggest an emotional letdown or an undesirable prolongation of notes or sounds from a loudspeaker. Atenho-me, então, rapidamente, a esta última definição mais contemporânea: um prolongamento indesejável de notas ou sons de um alto-falante. Deixo o Teatro do Bairro Alto com uma sensação próxima a essa: sinto uma ressaca contemporânea, uma ressaca de construções e códigos anglo-lusófonos que rodopiam à espera de alguma compreensão, sinto um prolongamento indesejável de notas ou sons saídos de um teatro-alto-falante. Prolongo, nessa ressaca derivada de ÃO , conexões com a força homicida dos idiomas. Fico a pensar nas mortes acumuladas pelo ditongo nasal do nosso idioma, do assassinato de inúmeros dialetos pela disciplina e pela pretensa civilização. O ão como uma tatuagem sonora nas nossas cordas vocais, impossível de ser eliminado ou esquecido. Alienação. Corrupção. Colonização. Exploração. Violação. Depressão. Quantas pessoas detestam saber executar tantos ãos de maneira tão perfeita? How many actually chose to learn this nasal diphthong? Que outro som podemos aprender para substituí-lo? Como desaprendê-lo? What other sound can we learn, as a civilization, without making it hurt someone? Foi bonito imaginar o som como uma pedra no chão capaz de nos machucar. Ele parece inofensivo, inerte, mas não existe sozinho, haverá sempre alguém que o agarre pela mão e arremesse-o contra outro alguém. No entanto, há modos de fazer teatro hoje que carecem desse tipo de lembrança: que não estamos sozinhos; que parecem esquecer que após a noite de hoje haverá o dia de amanhã. ÃO constrói, nesse esquecimento, a sua poesia narrativa como quem propõe um manifesto lusófono written in english. PROGRAMA DE ESCRITA Gustavo Colombini assistiu ao espetáculo ÃO no dia 19 de maio de 2023, às 19h30, no Teatro Bairro Alto (Lisboa); no dia 2 de junho, escreveu uma primeira versão desse texto que, de 3 a 4 de junho, foi comentado por Diogo Liberano; por fim, na segunda, 5 de junho, e na quinta, 8 de junho, os dois finalizaram juntos esse texto . ÃO A performance by Teatro Praga | Created by André e. Teodósio com Ana Rita Teodoro and João Neves | Performance: Ana Rita Teodoro, André e. Teodósio, Diogo Melo, João Neves | Sound: Diogo Melo | Costumes: Joana Barrios | Set design: Horácio Frutuoso | Light design: Joana Mário | Sound design: Miguel Lucas Mendes | Communication: Afonso Matos | Director of Production: Marisa F. Falcón | Production assistant: Rita Pessoa | With support from Estúdios Victor Córdon | Coproduced by Teatro do Bairro Alto
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A partir de G.O.L.P. , do TEP & Teatro La Maria ... + Zeitgeist, palavra alemã, significa espírito do tempo: atitudes, crenças, ideias e práticas culturais dominantes em determinado período histórico. É um modo de descrever a atmosfera intelectual e cultural de uma época ou geração e que influencia esferas da vida como arte, política, economia, religião e ciência, moldando tendências e direções que uma sociedade pode tomar em algum momento. + Uma filósofa diz que a cultura pós-moderna é marcada por superficialidade e consumo, influenciando nossa forma de vivenciar emoções. Ela argumenta que as emoções são mercantilizadas em produtos culturais e padronizadas pela cultura de massa, levando a uma experiência emocional mais homogênea e limitada. No entanto, ela acredita ser característica do afeto resistir às nomeações – e palavras – que tenderiam a etiquetar, a simplificar, a padronizar, a coisificar, repertórios de sentimentos e sensações que escapam ao nome. + Um exemplo da interpassividade do próprio artista pode ser observado quando ele insere no espetáculo uma crítica à natureza alienante da sua própria peça. Ao se tornar o foco de suas próprias piadas, o artista parece buscar proteção contra críticas externas, antecipando-as. Esse ato pode ser visto como uma forma de esquivar-se de suas responsabilidades, ao denotar uma postura cínica que esconde em aparente brincadeira uma questão séria. + Ucronia é uma das etiquetas que classificam o espetáculo G.O.L.P. no sítio. + Sou uma viajante perdida no mar de informações, afogada por ondas incessantes de dados que me arrastam. Sou levada sem direção por correntes imprevisíveis de notícias e ruídos. A tempestade de palavras me envolve, machucando minha lucidez e me impedindo de pensar. As questões deste momento parecem vastas, e as vozes discordantes tornam difícil ouvir qualquer princípio de verdade. Tento escapar das armadilhas das opiniões, mas sua inundação me arrasta de volta, impedindo qualquer fiapo de compreensão. Busco um sítio para descansar meus olhos, onde a paragem me permita assentar minha mente, mas sinto-me cansada, e não é simplesmente um cansaço. + Revolução é uma das etiquetas que classificam o espetáculo G.O.L.P. no sítio eletrónico do Teatro. + + Querido sobrinho, idealizar o comunismo assim pode ser um tanto perigoso, pois ignora os desafios e contradições que já vimos em tantas tentativas de implementação do comunismo pelo mundo afora. Você me enviou a sinopse e não me disse nada sobre o espetáculo. Conte-me algo. Sobre essa sinopse, tenho de dizer que parece que resolveram transformar um tema denso em algo que caberia em um meme. A tia sabe o que é um meme. Se o espetáculo pretende abordar as crises sociais chilenas de forma jocosa, fico curiosa para saber se essa abordagem te fez rir ou deixou com uma boa ressaca! + O teatro, em grande parte da sua história, tem sido uma forma de arte que convoca a participação do público, seja através da identificação entre ele e as personagens, seja através da reflexão suscitada pelos temas apresentados. A forma dramática pode gerar um envolvimento tal da espectadora na ação que sua atividade acaba sendo consumida, apresentando o ser humano e o mundo como instâncias imutáveis. Já uma forma épica do teatro incitaria a atividade da espectadora, convocando-a a uma conscientização do que é posto diante dela. + O teatro interpassivo subverte a tradição de um teatro épico, aquele que estimularia o pensamento crítico e o engajamento da espectadora, promovendo em seu lugar a passividade e aceitação acrítica. Mas de onde viria essa passividade? Da artista? Da espectadora? Das financiadoras daquele espetáculo? Do zeitgeist? + O Ministério da Saúde – do Brasil – adotou a linha de argumentação da ministra da Igualdade Racial. Expressões como “a coisa tá preta”, “denegrir”, “esclarecer”, “humor negro”, dentre outras, devem ser evitadas. A expressão “humor negro” pode “embutir uma ideia preconceituosa, visto que associa algo fora do padrão de normalidade inclusive a pessoas negras”. O texto sugere substituir “humor negro” por “humor ácido”. “A coisa tá preta” seria uma forma de associar “a pessoa negra a coisas ruins”, e deve ser trocada por “a coisa está complicada” ou “o caso é complexo”. “Esclarecer” seria outra expressão racista por “transmitir a ideia de que a compreensão de algo só pode ocorrer sob a claridade, mantendo na dúvida e no desconhecimento as coisas negras”. O texto sugere o verbo “explicar” ou “elucidar”. + O fluxo do feed continua, e embora as imagens mudem, tu permaneces a mesma, mais cansada a cada nova imagem. + O conceito de interpassividade foi introduzido por uma teórica cultural para descrever o fenômeno em que as pessoas delegam sua participação ativa a produtos culturais, mantendo a ilusão de estarem engajadas. Isso ocorre por meio da externalização da experiência de agir ou participar ativamente, substituindo-a por formas de consumo passivo, como assistir a filmes, peças teatrais ou consumir mídia digital. A autora argumenta que o capitalismo não exclui certo tipo de anticapitalismo. Filmes que encenam o nosso anticapitalismo para nós nos autorizam a continuar consumindo impunemente. Contanto que acreditemos que o capitalismo é mau, somos livres para continuar a troca capitalista. + No dia seguinte ao espetáculo, telefonei para minha tia historiadora que, além de ter lutado contra a ditadura brasileira, colecionava artrópodes. Compartilhei a sinopse do espetáculo e pedi que ela escrevesse algumas impressões que a sinopse de G.O.L.P. lhe provocou. Antes de terminar a ligação, ela falou sobre o perigo de nos considerarmos protagonistas de uma história já escrita e finalizada. Ela me alertou sobre o ilusório privilégio de pensar que aquilo que sabemos está estabelecido e é imutável. Anotei mal suas palavras: “A ilusão do privilégio / pensamos conhecer a história / como universal, e não contexto-dependente.” + Melancolia é uma das etiquetas que classificam o espetáculo G.O.L.P. no sítio eletrónico do Teatro Municipal do Porto. Infelizmente. + Já o estado de espírito seria algo como o humor ou a disposição emocional de uma pessoa em um momento específico, sendo influenciado por fatores como eventos recentes, expectativas, experiências passadas e, em especial, o ambiente ao redor. Ele pode variar entre contentamento e irritação, por exemplo, e é transitório ao longo do dia ou das situações. Manter um estado de espírito positivo, disseram, é importante para a saúde mental, pois afeta a forma como a pessoa enfrenta desafios e adversidades. + https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/ministerio-da-saude-racismo-evitar-humor-negro-coisa-ta-preta/ + + https://www.teatromunicipaldoporto.pt/pt/programa/goncalo-amorim-2f-tep-a-alexis-moreno-2f-teatro-la-maria-g-o-l-p/ + Golpe é uma das etiquetas que classificam o espetáculo G.O.L.P. no sítio eletrónico do Teatro Municipal do Porto. Infelizmente, não é possível aceder à etiqueta. + Estávamos na proximidade do teatro e bebíamos um copo antes do espetáculo. Falávamos que as categorias artísticas servem mais ao mercado do que à arte e às artistas. Foi quando ela lembrou de um parágrafo de um romance específico, dizendo que aquele parágrafo a deixou há quase vinte anos completamente fascinada, foi essa a palavra, ela disse fascinada, sem saber o que pensar, meio confusa, ela bebeu o último gole do copo e disse: “eu só queria escrever um romance que conseguisse prolongar esse fascínio nas minhas leitoras”. + ESPECTADORA – Passaste mal durante a apresentação? ESPECTADOR – Tomei meu medicamento a meio da peça. Deu para ver? ESPECTADORA – Não incomodou, mas fiquei preocupada. ESPECTADOR – Fiquei preocupado de perder o fluxo... ESPECTADORA – De informações?... ESPECTADOR – Também. Achas que incomodei o elenco? ESPECTADORA (rindo) – É mais fácil o elenco ter te incomodado. Saíram do teatro em direção ao restaurante habitual. ESPECTADOR – Dois copos de vinho branco? ESPECTADORA – Uma garrafa! ESPECTADOR – A atuação ficou mais dramática com o passar da peça, não ficou? ESPECTADORA – Já não acreditava em quase mais nada ao final. Mas o que seria uma atuação dramática? ESPECTADOR – Um profundo amalgamar entre atrizes e personagens. ESPECTADORA – Não pensei em drama, as personagens pareciam apenas um pretexto para as dramaturgas falarem aquilo que desejavam. ESPECTADOR – E lembras o que elas queriam falar? ESPECTADORA ri. + ESPECTADOR – Não entendo. Não te provoca nada? ESPECTADORA – Só ecoa o que todas já dizem. ESPECTADOR – Dê um exemplo. ESPECTADORA – Como começar uma conversa com a palavra capitalismo? ESPECTADOR – Percebo. ESPECTADORA – Palavras grandes, pesadas, não iniciam conversas, apenas me deixam sem fala. ESPECTADOR – E o teatro? ESPECTADORA – O teatro às vezes aumenta a distância entre mim, espectadora, e qualquer caminho através dos sentidos impregnados pela dinâmica social. Sabes? ESPECTADOR aproxima uma mão da outra, sobrepondo os dedos indicadores e médios de ambas as mãos de modo a fazer aquele sinal. ESPECTADOR – Como chama esse sinal? ESPECTADORA – Sustenido? ESPECTADOR – Jogo da velha? Mas, o nome certo? ESPECTADORA – Jogo da velha?! Por que velha? ESPECTADOR – Tem outro nome, no Instagram tem outro nome. ESPECTADORA – Para de falar do Instagram! Não tenho Instagram, não quero saber de Instagram, tudo é Instagram! ESPECTADOR – Hashtag! É isso! ESPECTADORA – E ainda por cima em inglês! Vai conversar em inglês agora? ESPECTADOR – Era esse o nome! ESPECTADORA – Esse símbolo não é hashtag. ESPECTADOR – Atualmente é. ESPECTADORA – Era um botão nos telefones antigos. ESPECTADOR – Sabe o que significa? ESPECTADORA – Traduzindo, hashtag significa etiqueta. ESPECTADOR – Nunca tinha pensado nisso. ESPECTADORA – Teatro de etiqueta, ética quieta... não gosto, Marco, não gosto dessa conversa. + Enquanto o estado de espírito é uma forma de descrever o humor ou a disposição emocional de uma pessoa em um momento específico, o zeitgeist refere-se ao espírito cultural e às tendências predominantes de uma era ou geração. Ambos estão relacionados a estados emocionais e culturais, mas em diferentes níveis: um é individual, o outro é coletivo. + Destaco, sobrinho, outro ponto que considero mais delicado. Embora não tenha visto o espetáculo, apenas respondo ao seu pedido de comentar o parágrafo que você me enviou. Chamaria a atenção para a possibilidade de banalização do sofrimento humano e da própria experiência da ditadura, mas não consegui ir além do termo "comédia negra", ele também te incomoda? + Dentro, era como se eu estivesse presa no Instagram. O grande palco do teatro encenava a correria desenfreada de um feed interminável, a sugar minha atenção, minar minha saúde e cansar minha vista já tão frágil. Estava diante de uma cena em feed, uma verticalidade tombada sobre o palco que me alimentava compulsoriamente. E nem sequer tinha fome, jantei antes de entrar no teatro. A cena me deixava confusa, fluxo incessante e esmagador. Você, espectadora, ouvirá falar de tudo um pouco, pois esta é a febre do nosso tempo, e eu, artista, estou aqui para revelar essa realidade com toda a sua intensidade dramática, ou seja, para te dizer que não há mais alternativas. + Comunismo é uma das etiquetas que classificam o espetáculo G.O.L.P. no sítio eletrónico do Teatro Municipal do Porto. Infelizmente, não é possível aceder à etiqueta a fim de perceber sobre qualquer especificidade que. + Caminhamos em direção ao teatro. Noite de estreia. “É difícil encontrar o bilhete com tantas aplicações abertas”, ela disse. “Preferia os bilhetes de papel”, pensamos. E enquanto eu mastigava uma pastilha elástica sabor a gengibre combinado com um toque ácido de limão, pensei se a peça que estava prestes a assistir consideraria o meu estado de espírito, quero dizer, se consideraria o espírito cultural de nossa época. Talvez tudo o que eu precisasse era ser arrancado do feed deste agora, como quem é privado de consumir aquilo que consome quase sem consciência. Mas será papel da arte oferecer resistência às aderências e aos vícios que temos na vida? + A sinopse sugere uma abordagem simplista dos conceitos de ditadura e revolução, meu sobrinho, deixando de lado as nuances e dilemas morais que permeiam esses temas. Imagino que uma narrativa que não apresentar essas complexidades correrá o risco de distorcer a compreensão dos eventos históricos e das experiências humanas envolvidas. É crucial lidar com esses assuntos com profundidade e seriedade para não reduzir os significados e implicações dessas situações na história. Mas a tia está sendo chata. A tia acha que está sendo repetitiva demais. + Esta peça é uma comédia negra que apresenta uma ucronia, na qual um grupo de chilenos viaja a Portugal, que se converteu na nação comunista mais bem-sucedida da história, com a finalidade de pedir ajuda para implementar este modelo de governo na América do Sul e conseguir, finalmente, uma constituição que possa levar tranquilidade a um Chile assolado pelas constantes crises sociais e pela perda de identidade. É uma reflexão sobre conceitos como ditadura, revolução e paz numa sociedade preocupada com o sucesso desmedido, com as sondagens, com o avançar rumo ao futuro sem se responsabilizar pelo passado e sem valorizar os sacrifícios que significou a luta contra uma ditadura, e o seu impacto na vida quotidiana. + # tem vários nomes dependendo do contexto e da região. Em notações musicais, é chamado de sustenido e eleva uma nota em um semitom. Nas redes sociais, é a hashtag, usada para categorizar tópicos. Na programação e computação, é o hash, usado para comentários. Em algumas regiões, especialmente em Portugal e no Brasil, é chamado de jogo da velha ou jogo do galo, um passatempo jogado em dupla ou com o Google, por exemplo. + ... PROGRAMA DE ESCRITA Diogo Liberano assistiu ao espetáculo G.O.L.P. no dia 4 de abril de 2024, às 19h30, no Teatro Rivoli – Teatro Municipal do Porto; do dia 17 a 22 de abril, escreveu uma versão desse texto que foi lido com Gustavo Colombini no dia 22; de 22 a 24 de abril, o texto foi comentado por Colombini; por fim, em 24 de abril, os dois finalizaram juntos esse texto . G.O.L.P. Direção: Gonçalo Amorim, Alexis Moreno | Dramaturgia e texto: Alexis Moreno | Tradução e revisão: Tereza Afonso, Mariana Afonso, Maria João Machado | Revisão final: Filomena Louro | Interpretação: Alexandra Von Hummel, Pedro Vilela, Manuel Peña, Patrícia Gonçalves, Alexis Moreno, Gonçalo Amorim | Direção plástica: Catarina Barros | Desenho de luz: Alfredo Basaure | Luz: Francisco Alves | Direção de produção: Patrícia Gonçalves | Produção executiva: Abigail Raposo | Coprodução: Teatro Municipal do Porto, Teatro La María
- Animal vivo
A partir de Girafas , dos Artistas Unidos Em um pequeno apartamento sob o céu de Barcelona, alguns sonhos acumulam-se. São emanações do desejo que, por não possuírem massa ou volume como os objetos de uma casa, podem coexistir umas sobre as outras, sem ocuparem o mesmo espaço que ocupamos. Uma máquina de lavar roupa, um filho que tarda a nascer, a esperança de ser levado embora por qualquer coisa que desconhecemos, Paris. Essa coexistência de desejos ocupa a cena de Girafas e pesa o ar da experiência dramatúrgica do texto do autor catalão Pau Miró, ao mesmo tempo em que as personagens se apresentam de forma difusa, como se participassem de um estado de delírio. Prolongam-se uns nos outros e colidem os seus próprios universos autónomos; negociam os seus diálogos e medem a própria existência a partir da presença do outro. Esse estado de delírio remeteu-me às atribulações da organização política dos seres humanos, seus avanços e retrocessos. A falência da democracia em nossas sociedades atuais é uma das coisas que nos lembram ou que nos ensinam que é impossível seguir adiante em direção ao futuro sem carregar nosso passado nos braços, como cuidadores e guardiões. Exibir o passado no presente e apresentá-lo ao futuro, não como um retrato, mas como um animal vivo. Uma girafa, por exemplo. Que só quando se sente completamente segura, deita-se no chão para descansar. A ditadura de Franco, o salazarismo, a ditadura militar brasileira e tantas outras formas de morte individual e coletiva não são, nesse caso, símbolos contextuais ou conteudísticos de uma cena teatral, mas encarnações (carne, matéria, corpo) dos conflitos internos e externos dessas pessoas que, por algum acaso desconhecido, partilham tempo e espaço no mundo. Penso, ao olhar para o elenco e suas personagens, nesse grupo diverso e inconstante de pessoas no mundo que dividem comigo a admirável experiência de estarem vivas ao mesmo tempo. O que desejamos juntos? O que justamente nós, eu mais vocês, temos tanto em comum a ponto de partilharmos tudo isso? Que poder ou que insuficiência conecta-nos no mesmo tempo-espaço? Mesmo conscientes de que não possuímos pescoços tão grandes, por que insistimos em cavar esse buraco tão fundo? No caso desta encenação dos Artistas Unidos, um buraco fundo e revestido de papel cartão. Depois da visita de um obstinado vendedor, a mulher passa a desejar uma máquina de lavar roupa, este eletrodoméstico que lhe fará poupar horas de trabalho doméstico por semana. Anima-se tanto com a prosperidade económica que a presença daquela máquina vai lhe trazer, quanto com a expectativa de tempo que resgatará finalmente das mãos do trabalho. Seu marido, um carpinteiro que garante o sustento da casa, deseja um filho que demora cada vez mais a nascer. Quer ser pai, pela motivação de ser um homem terrivelmente básico, mas cujo ciúme inclina-se a transformá-lo em alguém cada vez mais austero, melancólico e despótico. É a prova viva de que os sinais do tempo nos invadem mesmo inconscientemente; jamais estaremos alheios ao que nos cerca: esse é o preço da vida partilhada. É ele que acaba fisicamente mutilado pelo trabalho que faz, como se pudesse perder partes do corpo a cada centímetro que adentra em sua própria severidade; ou quanto mais o cheiro da madeira (o trabalho) e o cheiro da casa (a família) passam a se confundir para ele. Torna-se ele mesmo o meio pelo qual a realidade opressiva de seu contexto histórico é exposta. No mesmo apartamento, habita o irmão da mulher, um jovem emudecido que gasta seu tempo a vigiar os céus da cidade à procura de qualquer coisa que desconhece: a mãe morta, um sinal intergaláctico, uma aventura extraterrestre. Ao se comunicar apenas por gestos, desenhos e pequenas frases escritas, o jovem resguarda sua voz ao mistério, a um elo exterior (nós, os espectadores), como se pudesse nos ensinar qualquer lição sobre a nossa própria comunicação: e se falássemos (gastássemos a nossa voz) apenas com quem realmente nos escuta? O desconhecido tem essa vantagem. Ele escuta-nos como mais ninguém nos escuta, talvez porque não precise de nós. Só falamos quando queremos ser escutados, nem que seja por nós mesmos; o aprendizado da emissão vocal, assim como em qualquer outro animal, é o caminho mais curto para a comunicação. Seu emudecimento, portanto, para além de um trauma pessoal, é a imagem de um segredo; aquele que mais parece delirar é o que mais se conecta com si mesmo. Como uma girafa. Que sempre foi dada como muda só porque não se comunicava do mesmo jeito que outros animais se comunicavam. O pequeno apartamento também possui um hóspede misterioso que sustenta uma vida dupla como a drag queen Aurora, no clube La Polvera , donde a cada uno le sirven lo que quiera , referenciando também uma das principais avenidas da capital da Catalunha, conhecida pela sua noite agitada e clubes noturnos. Sonha em ganhar muito dinheiro na lotaria e fugir para Paris, a cidade onde finalmente poderá ser quem é. Ao som de Milord , de Edith Piaf, num cabaré barcelonês, a inversão das superfícies acontece: o que é recôndito torna-se incontestável; o que é percetível torna-se cifrado. "Venha, Milorde! Sente-se à minha mesa! Aí fora é tão frio, aqui é aconchegante. Deixe-se levar, Milorde, e fique à vontade. Ponha suas angústias no meu coração e os seus pés, numa cadeira". Somos remetidos à realidade histórica como ponto de vista; o poder dela (lá fora) é que vai condicionar todo e qualquer desejo, a fim de que percamos o nosso sono ou nos percamos de nós mesmos. Como uma girafa. Que dorme apenas duas horas por dia e só um bocadinho de cada vez. Talvez porque rezemos aos deuses errados, como argumenta a encenação, quanto mais tentamos evadir-nos do real, mais afundamo-nos nele. Quando afirmo no segundo parágrafo deste texto sobre a forma difusa como são apresentadas as personagens, aludo a uma sensação de estarem sequestradas de si mesmas, roubadas de seus sujeitos, como borrões de memória, perdidas dentro de seus próprios corpos. A encenação de Nuno Gonçalo Rodrigues funde a dramaturgia de Pau Miró ao conteúdo do tempo, sem dar a este último protagonismo excessivo. As imagens da realidade histórica em que as personagens vivem, a ditadura franquista durante os anos 1950, não aparecem como um retrato, mas como “animais perigosos” que habitam a noite. Sabemos do perigo não porque ele é gritado, transformado em fala, mas porque em cena há corpos que sentem medo. Acabei por lembrar-me da relação que faz Theodor W. Adorno, em sua Teoria Estética de 1970. Para ele, o conteúdo de um trabalho artístico funde-se com o seu conteúdo crítico, um conteúdo que não se encontra fora da história, mas constitui a sua “cristalização” na obra. Lembro-me sobretudo de parar e levantar a cabeça na palavra “cristalização”. Afinal, a cristalização, em linguagem química, é um processo em que átomos ou moléculas organizam-se em uma estrutura rígida e bem definida para minimizar o seu estado energético. Ora, nada deveria ser mais incompatível com um processo artístico do que a ideia de cristalização; a permeabilidade, a mutabilidade, a instabilidade da matéria artística são predicados importantes da prática (e do pensamento) das artes. Entretanto, coloquei-me a imaginar a ação da luz/escuridão no processo de cristalização. A superfície cristalizada tanto absorve quanto dispara luminosidade/escuridão para os seus diversos lados, dispersando uma única incidência para inúmeras outras linhas de dispersão. A partir desse ângulo, na reconstrução cênica desta imagem, portanto, consigo assistir a Girafas como “esta parte do mundo que parou de girar”, mas que ainda respira, como um animal vivo. Nesta parte do mundo que parou de girar, quem segue os seus desejos, quem consegue realizar os seus sonhos, é presenteado com o maior dos prémios da existência: poder desaparecer. A misteriosa abdução do jovem irmão e o número acertado na lotaria pelo hóspede são a permissão que ganham para o desaparecimento e, portanto, para a salvação. Permanecer é ser entregue ao castigo eterno da repetição. O preocupante diálogo final do casal aponta-nos ao que podemos perder se não conseguirmos desaparecer. Girafas parece, de facto, como considera o encenador Nuno Gonçalo Rodrigues, “uma peça sobre desaparecimentos”, pois “mesmo quando as pessoas não desaparecem fisicamente, há sempre qualquer coisa nelas a desaparecer”. Mas desaparecer é habitar este lugar onde justamente as coisas podem ser as coisas. A simplicidade do teatro a ser teatro devolveu-me a ideia de que a vida tem tudo para ser a vida, a arte tudo para ser a arte; que as coisas têm tudo para serem as coisas. E que o teatro pode também ser um animal vivo que nos cabe proteger e ofertar, neste presente, ao futuro – uma espécie que ainda vive, respira, tem casa e família, os Artistas Unidos. As girafas dormem aproximadamente duas horas por dia e apenas um pouco de cada vez. Elas dormem em pé e, apenas em ocasiões muito especiais, quando se sentem completamente seguras, deitam-se no chão para descansar. São os animais mais altos do mundo e, na natureza, não vivem muito tempo. Possuem o segundo maior coração de todos os animais terrestres, aproximadamente quarenta vezes maior do que o coração humano. São vistosas e não conseguem esconder-se com facilidade. E, embora por muito tempo acreditou-se que as girafas não emitiam nenhum som, por não possuírem cordas vocais, descobriu-se que elas gritam, bufam e sibilam; mas em ruídos de baixa frequência, muito além do que pode alcançar a audição humana. PROGRAMA DE ESCRITA Gustavo Colombini assistiu ao espetáculo Girafas no dia 13 de março de 2024, às 19h, no Teatro da Politécnica (Lisboa); de 20 a 24 de março, escreveu uma primeira versão desse texto que, de 24 a 26 de março, foi comentado por Diogo Liberano; por fim, no dia 27 de março, os dois finalizaram juntos esse texto . Girafas Dramaturgia: Pau Miró | Tradução: Joana Frazão | Encenação: Nuno Gonçalo Rodrigues | Assistência de encenação: Inês Pereira | Com: Eduarda Arriaga, Gonçalo Norton, João Vicente, Pedro Caeiro e Vicente Wallenstein | Cenografia e Figurinos: Rita Lopes Alves | Assistência de cenografia: Francisco Silva | Luz: Pedro Domingos | Som: André Pires
- Planeta melancólico
A partir de Uma vida no teatro , do Teatro Aberto Saio do Teatro Aberto a pensar na escolha que fiz. Lembro-me ao longo do caminho de volta a minha casa da primeira peça de teatro que me marcou; tento recriar, fechando os olhos no meio da rua, a sensação daquele sentimento novo que eu acabava de experimentar, eu devia ter uns treze anos; mas não consigo. Tento de novo, falho mais uma vez. Tento uma terceira vez e desisto. Não me pertence mais? Aquela certeza tão segura sobre a revolução pessoal e coletiva que opera o teatro em nós e em nossa comunidade, ainda existe? Ainda me tira o ar pensar que essa forma de comunicação artística, um acontecimento, uma receção, um momento, tem a força que um dia eu já imaginei que tinha? São mesmo sem volta os nossos primeiros contatos, ou melhor, de quantas novidades uma vida humana é feita? (Qual é o máximo de novidades que uma vida humana pode ter?). Ora, o teatro é só mais uma profissão como qualquer outra, não é? É sim, eu respondo a mim mesmo. É uma profissão como qualquer outra, um modo de ocupar a existência, distrair-se; é uma escolha (que faço junto a tantas outras). ⁋ Aprende-se diversas coisas em diversas profissões, cada qual com as suas estruturas, suas incoerências, seus problemas, seus modos de construir. Então, me perguntei mais uma vez, o que é que o teatro me ensinou? Logo, o verbo que apareceu nesta pergunta me incomodou, “me ensinou”, por que o passado? Estou vivo, estou a pensar teatro, estou a fazer teatro. Corrigi: o que o teatro me ensina? Que tudo é feito de tempo, espaço e conflito? A pensar mais nos outros, a alteridade, a descobrir a importância das relações entre seres vivos? A viver em sociedade? A viver, simplesmente? Não quero prolongar essa sequência de questões. Essa abundância de interrogações, ultimamente tem-me deixado aflito. (A escala dessas indagações me deixa aflito, a distância que essas questões colocam entre o teatro e a minha vida). ⁋ A peça apresenta ao público Robert, um ator mais velho e experiente, e John, um ator mais jovem, aparentemente em seu auge para os protagonismos, no momento em que terminam uma apresentação. Os dois estão nos bastidores, a tirar a maquilhagem e discutem a performance daquela noite. Estão separados por um espelho imaginário e, por isso, confundem-se. Não são seres humanos – são atores, sinto essa sugestão da dramaturgia (será que o seu autor considera que os atores ocupam uma posição diferente na medida humana?). John ansia por prosseguir os seus planos de vida após a apresentação, mas Robert está com disposição para uma avaliação crítica de seu próprio desempenho de ator, além de ter também uma ou duas considerações para o trabalho de John. Antes de trocarem apontamentos, Robert fala de nós, do público. Quando somos mais acalorados, quando somos difíceis. É claro que não éramos nós, ali, os espectadores da peça que acabava de terminar; mas é impossível para mim não me sentir como um representante desse todo, dessa ideia de público. Desloco-me, por isso, para a responsabilidade do acontecimento – parece óbvio, mas, de facto, não há teatro sem público. (Robert sabe disso). Podemos chamar do que quiser, mas é preciso um olhar estranho, alheio, um corpo qualquer que receba algo, pelos olhos, pelos ouvidos, pela cabeça ou por qualquer outra parte ou não de si mesmo. (Penso, como público, no meu papel enquanto tal: eu faria mesmo alguma diferença?). Somos capazes, como público, de fazer uma peça de teatro ser diferente? Mas diferente como? Diferente do que seria se não estivéssemos lá? Ou diferente pela presença que dispomos no sentido público-teatro? ⁋ A preocupação com o público sai da boca de Robert, o ator mais velho; John não parece se preocupar tanto com isso. Quando John, em troca, oferece um pequeno apontamento sobre a atuação de Robert, podemos ver esse comentário rastejar na consciência de Robert, fazendo-o revirá-lo repetidamente em uma busca de alguma perfeição fugidia. Fica tranquilo, Robert, não é nada de mais; você deve ter tantas outras coisas para se preocupar, não devia se importar tanto com isso. Vá, tira esse figurino e volta pra casa, descansa. Ou então saia já daí e toma um copo, guarda as suas preocupações pra depois. (Ou então, Robert, apenas lembre-se de que você é só mais um personagem e que, a despeito da sua vida, o teatro é o único que sabe morrer e ainda assim continuar). ⁋ Logo no início, vê-se que estamos diante de duas versões do tempo, encarnadas nestes atores. Um passado e um futuro partilhando o mesmo espaço presente. (Ou um presente e outro presente, ocupando o mesmo presente). E essa partilha não deixa de ter um tom de melancolia. A morrer, não é? O teatro me ensina a morrer, eu penso. Que pensamento inoportuno! Como é que vou explicar isso sem parecer presunçoso? (Logo eu, que ainda não morri). Mas é que vendo aqueles dois é difícil não pensar que é sobretudo o conhecimento ou o desconhecimento da mortalidade que nos move. ⁋ Vamos a isso. Mesmo que inconscientemente, é a condição da morte, do fim e do desaparecimento que angaria sentido à trajetória da vida. É a condição finita da temporalidade que fundamenta o sentido da existência e que permeia todo o tempo da vida humana. (E é uma pena que isso tenha se tornado, talvez, uma verdade final). Em outras palavras, a existência está condicionada a uma sucessão infinita de possibilidades, entre as quais se encontra justamente a morte como elemento artístico significante que possibilita a imersão do olhar crítico sobre a vida habitual. (Seria possível afirmar que esta peça apresenta a morte assistindo dois atores enquanto eles conversam?). ⁋ Em Uma vida no teatro desvelam-se as relações entre a vida como teatro e o teatro como vida. A barroca imagem de que a vida é um teatro em que vamos, ao longo dela, desempenhando distintos papéis através de nossas idades e em função de variadas circunstâncias; o teatro como preparador da experiência diária, ou como forma de vida profissional, ou ainda como um universo autônomo onde encontramos os mesmos problemas que fora dele. O próprio David Mamet, autor da dramaturgia deste trabalho, evoca Albert Camus ao citar a ideia do ator como exemplo da natureza de Sísifo: uma vida no teatro não precisa ser análoga à “vida”; é a vida. A mesma pedra que rola, que pesa, que esmaga, é a que constrói. ⁋ À medida que a peça continua, assistimos a conversas contínuas entre os dois atores enquanto eles se sentam em suas penteadeiras e se preparam ou decoram o seu texto. Mas além disso, também vislumbramos performances desses atores, pequenos esquetes que são encenados pelos dois, porém, de costas para nós. Afinal, o fundo do palco onde o Teatro Aberto apresenta a sua peça é, para os atores dentro da peça, onde se encontra a sua plateia que, no entanto, nós só podemos imaginar. Quando os esquetes acontecem, ocupamos o fundo do palco deles. Assim como os atores, quando estão no camarim, partilham um espelho imaginário entre si, nós, o público, partilhamos a mesma matéria com o público invisível à nossa frente; nós estamos frente a nós mesmos. (Podemos perder mais tempo, talvez isso tenha importância, talvez seja isso o que o teatro faz e que a vida ainda não tenha aprendido a fazer: estamos nós diante do fundo de um palco que, no entanto, está cheio de gente; atrás dos atores, que é onde agora estamos, no entanto, não há nada, exceto o fundo de um palco; e mais, podemos imaginar que, por um momento, aquilo que não existe passa a existir e o que existia, eu, nós, oscilamos, como uma luz que ora acende, ora apaga). As narrativas e as representações variadas empregadas nos trechos desses esquetes, proporcionam momentos de leviandade ao mesmo tempo que revelam fraquezas em cada ator; embora seja revigorante notar que, apesar das frustrações de ambos os atores e dos esforços nem sempre bem-sucedidos, há uma superação de qualquer possível conflito entre eles. Experimenta-se até alguns instantes de ensaio e de mútua colaboração entre os dois. ⁋ Uma vida no teatro apresenta a sua própria prática como esse planeta melancólico. Uma sensação de que as coisas passam e que, bom, isso é tudo. Aliás, acaba de passar pela minha cabeça uma banda desenhada da Laerte. “Todo dia de manhã, eu desembarco num país estrangeiro. A língua é familiar, mas desconheço as pessoas, os assuntos. Queria voltar para o meu país um dia. Se eu lembrasse qual é.” ⁋ Saio desse texto a pensar na pergunta que a minha escolha me fez. O que o teatro me ensina? Creio que seria interessante não tentar respondê-la, deixá-la como uma chamada ao pensamento, às reflexões, sobretudo aos que escolheram o teatro como profissão (pelo menos, como uma delas). O que o teatro me ensina? Espero que ninguém nunca me pergunte isso, mas vou deixar uma resposta para ser apagada depois. ⁋ O teatro me ensina a viver na intimidade de um ser estranho, não para me aproximar dele ou conhecê-lo, mas para saber mantê-lo estranho, distante, quase improvável. PROGRAMA DE ESCRITA Gustavo Colombini assistiu ao espetáculo Uma vida no teatro no dia 10 de maio de 2024, às 21h30, no Teatro Aberto (Lisboa); do dia 15 a 22 de maio, escreveu uma primeira versão desse texto; por fim, no dia 22 de maio, Colombini e Diogo Liberano finalizaram juntos esse texto . Uma vida no teatro Dramaturgia: David Mamet | Tradução: Maria João Vaz | Encenação: Cleia Almeida | Cenário: David Serrão | Figurinos: Marisa Fernandes | Desenho de Luz: Diana dos Santos | Sonoplastia: Noiserv | Vídeo: Eduardo Breda | Com: Alfredo Brito e Vítor Silva Costa