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- O horror
A partir de BABEL , de Nuno Cardoso (Teatro Nacional São João) I. ANTERIOR Presente no livro Gênesis , o mito bíblico da Torre de Babel narra a origem das diversas línguas humanas. Naquele contexto, parece que Deus andava preocupado que as seres humanas, buscando 1) evitar um segundo dilúvio e 2) alcançar o céu, tivessem começado a construir uma cidade e uma torre bem alta para, ao mesmo tempo, evitar a dispersão de seus pares e “tocar” o divino. Um projeto de unificação e glória humana que Deus achou perigosa. Para impedi-las, ele trouxe à existência vários idiomas, confundindo as línguas das construtoras, que passaram a não conseguir mais se compreender. Incapazes de cooperar, abandonaram a obra e se dispersaram pela Terra. Tal mito costuma ser lido como um castigo divino e, simultaneamente, como o estopim que inaugurou tantas diferenças e diversidades culturais. Construir uma cidade com uma torre alta que nos protegesse de um dilúvio; construir, de algum modo, e em uma cidade, um porto seguro. Construir um porto como quem constrói uma encenação teatral: sítio capaz de acolher a colisão entre diferenças culturais. E caso, por agora, não seja possível construir um porto assim tão vasto e seguro, ao menos uma paragem de autocarro conseguimos. Mas a dispersão pelo mundo é castigo ou bênção? Imaginem uma humanidade unificada à força, sob um só projeto. O que acham disso? Sempre fico comovido quando vejo em cena o que vi em Babel , e por repetidas vezes. Tento explicar-me: há uma pessoa em cena, ela tem um papel, previamente definido, a desempenhar. Para desempenhá-lo, ela precisa dizer determinadas palavras, fazer alguns gestos específicos e se movimentar em relação a outras pessoas, ao espaço e, tal como estipulado a priori , seu repertório de ações, mesmo sendo de sua exclusiva responsabilidade, é crucial para a plenitude daquele evento que chamamos de espetáculo teatral. Mas, observem: eu disse haver uma “pessoa” em cena, não uma “atriz”. Todas as atrizes são pessoas ou todas as pessoas são atrizes? Durante a realização de seu repertório específico de ações, com que habilidade essa pessoa as executaria? Faria de um modo titubeante, tropeçando a cada passo dado? Ou, talvez, faria tudo de um modo mais ou menos convincente? Demonstraria algum hesitar? Ou ainda: será que ela tremeria, a pessoa sobre o palco e em cena, ela tremeria ao se fazer passar por outra que não ela mesma? Foi o poeta Dante Alighieri quem, certa vez, especulou quem poderia ser essa que treme. Ele disse: “o artista / a quem, no hábito d’arte, treme a mão”. E, nesta Babel , foi com delicado espanto que minha atenção foi cativada pelas pessoas em cena que, em cena, não apenas gesticulavam, não somente falavam, mas também tremiam. E tremeram muito. Às vezes, acho que é impossível não ficar comovido com a existência de outra ser humana. Com as histórias dela. Uso o verbo “tremer” como um modo de dar a ver algo que vi acontecer em cena: mais pessoas do que atrizes, mais disponibilidade do que técnica, muito mais vida do que atuação. Suspeito que eram pessoas que não atuavam porque, antes de poderem executar tal tarefa, já tinham sido separadas do teatro pelo rótulo desnecessário de seu amadorismo. Eu olhava aquelas pessoas indo daqui para lá, forjando interesse no que era dito por outra pessoa situada num ponto específico do palco para, em seguida, reposicionarem-se – todas – espalhadas pelo espaço. Não faço uma rejeição ao amadorismo, antes, recuso enfaticamente a necessidade dessa separação tecnocrata (como se aquilo que a arte teatral fizesse de melhor não fosse justamente misturar aquilo com isto). Fez-me ponderar que não haveria Babel se dependesse do teatro. Por que será que insistimos com mais afinco, nós, artistas, em encenar a incomunicabilidade humana quando poderíamos, com a mesma dedicação, encenar sua comunicação? Afinal, não estamos mais em tempos de pós-guerra. Estamos em tempos de guerra. E o que isso muda? Eu amo quando aquela mulher (a usar sapatos pretos de pontas finas) abre a boca para nos contar sua história (peço desculpas, não sei o seu nome). O texto que ela nos disse, para além do dito, pareceu-me ter afirmado um dizer de boca cheia como se dissesse algo como “eu amo profundamente”. Eu amo profundamente quando isso que chamo de vida, desimportante, invade o palco. Invade por quê? Porque não pertence a ele? Eu não sei o que ela ama, não sei como ela faz para amar algo assim nessa intensidade, mas ela tremia com sua bolsa e seu lenço, delatando o seguinte: aquela mulher que no palco dá corpo a outras pessoas nada mais é do que uma amadora, condição humana (anterior?) a qualquer profissionalização. Babel - Fotografia de José Caldeira II. INTERIOR Ó vós que temeis a cor, o canto, o nome, E que gritais por ordem e limpeza, Sabei que o tempo há de vos consumir como Areia cega, em torres de tristeza. Pois cada voz calada pela força É uma semente oculta no subsolo, E cada gesto impuro que se torça Um dia brota em flor por sobre o dolo. Não há nações — há nomes e pactos vãos Erguidos como falsos monumentos. Mas há no peito humano, em suas mãos, Um mapa feito de outros pensamentos. E quando o mundo for, por fim, ouvido Na língua dos que nunca foram lidos, Então Babel será não o perdido, Mas o começo dos que foram vencidos. Cantai, poetas, contra a torre infame Que ergue o medo em nome da virtude! Gritai nos becos, praças, onde a fome Se oculta sob a máscara da saúde. O novo fascismo vem como quem cura, Fala de ordem, paz, segurança e pão; Mas traz nas mãos, sutis, a arquitetura Do campo, da mordaça e da prisão. E vós, artistas, sede os atalaias Do verbo que acolhe e que perturba! Que cada cena dite novas praias, E cada riso abata a fala turba. Pois Babel não é ruína a ser temida, Mas um jardim de línguas redivivo: Toda vida humana, se for ouvida, É um coro mais humano e mais altivo. E quando enfim cair a última torre Do império que se impõe pela violência, O mundo, que de dor também socorre, Há de escrever de novo sua sentença: Não há idioma que se baste em si, Nem raça, nem bandeira sem mistura. Quem ama o verbo ama o que há por vir — E a liberdade é Babel em partitura. III. EXTERIOR Quando a luz se abriu sobre o palco, para além da banda ao fundo e sua partitura, para além de cadeiras e bancos, e mesmo para além daquelas pessoas, comoveu-me ter imaginado que a cenografia tenha escolhido uma paragem de autocarro como ingrediente primordial de seu jogo cênico-dramatúrgico. A paragem, no palco instalada, traz em si a ambivalência do parar e da partida, do movimento que cessa e daquele que, a partir dela, dela partiria. Um teatro como uma paragem de autocarro. Uma paragem dentro de um teatro. A cidade do Porto como uma paragem. Nessa língua extracontinental que é a portuguesa, quando aterrei em Portugal pela primeira vez, estranhei que os “pontos” de ônibus fossem chamados de “paragens” do autocarro. Paragens são espaços onde paramos para, assim é esperado, posteriormente, darmos seguimento à viagem. Só que, em Babel , mais do que sinalizar a tensão entre o ir e o ficar, mais do que indicar a tensão entre passado e futuro históricos, a paragem no canto do palco faz nascer um palco na cena da cidade. Mas é uma paragem que se move, a propósito, instalada sobre rodinhas que, num dado momento, fazem dela uma espécie de automóvel. Um pequeno púlpito, sem relevo. É nela onde vimos, de quando em quando, uma pessoa relatar a sua história e seus receios; é nela onde, com poucas palavras, uma moradora do Porto vinda de outro canto do mundo, faz-se falar e reúne, ao seu redor, figuras outras que, com ela, partilhavam apenas a cidade em que vivem. Esta é a Babel , um palco-porto-Porto que, suponho, faz da Babel bíblica menos uma punição e mais uma realidade. Porque há neste Porto atravessado por tantas línguas e suas pernas, movido por tantos braços e suas mãos, ainda há neste Porto um espaço dedicado a acolher alguma diversidade, espaço dedicado à árdua tarefa que é não simplificar tantas vidas que apenas sobrevivem porque escapam ao nome, às profissões e seus mercados. Você sabe de que sítio estou a falar: o teatro, essa paragem. A vida continua a ser feita dos momentos menos memoráveis. Babel - Fotografia de José Caldeira IV. POSTERIOR Então, eis o horror. Babel é uma peça teatral que se encerra com o hino de Portugal. A plateia levanta-se das cadeiras (por impulso, respeito patriótico, por medo, inércia ou por tácita obrigação) e canta, quase em uníssono, partes d’ A Portuguesa. Um orgulho destemido ganha um corpo estranho entre cena e público – afinal, há público em cena, não deixa de haver. O teatro nunca deixou de ter público em cena. Faz-me perguntar sobre qual cena encena o público que está na plateia. Imagino: uma Babel que acolhe e sente o prazer do acolhimento não pela razão moralmente instituída do “fazer o bem para outrem”, mas por uma sensação honestamente patética que é acolher porque não se saber fazer de outro jeito. O que vi: construíram outra Babel para ser, outra vez, destruída. Por que insistiram em encenar a incomunicabilidade humana quando poderiam, com a mesma dedicação e o mesmo financiamento, encenar nossa comunicabilidade? O estrangeiro que fala o mesmo idioma que você, ainda é estrangeiro? E Deus, ao criar a separação entre humanas provocada pela diferença linguística, será que contava que, no decorrer dos séculos, aprenderíamos outras línguas? Há muitas maneiras de produzir separações; a língua, talvez, já não seja a principal delas. Quando minha mãe se esqueceu da palavra “Portugal”, ela disse: “lá, no país do Gustavo”. O país do Gustavo é o seu próprio lugar, ainda mais quando o mundo, confirma-se, vive tempos de guerra. Não existe comunidade. Constrói-se. Não existe identidade. Constrói-se. O que serve um hino nacional? Ou seja: o que, ao ser cantado e ouvido, ele entrega? “Às armas! Às armas!” – é isso o que fica quando o espetáculo se encerra?! É isto o que se entrega? Eis o horror: quando o ato de amar a nação entrega outra coisa. PROGRAMA DE ESCRITA Gustavo Colombini assistiu ao espetáculo BABEL no dia 11 de junho de 2025, às 19h, no Teatro Carlos Alberto, no Porto; no dia 15 de junho, em um comboio entre Porto e Lisboa, Colombini propôs um exercício a Diogo Liberano: a partir da folha de sala do espetáculo, escolher três elementos do espetáculo não-visto para inventar um espetáculo imaginado; entre os dias 18 e 23 de junho, Liberano escreveu o texto crítico Colisão , e enviou-o para Colombini; de 24 a 26 de junho, Colombini modificou o texto recebido a partir de intervenções diretamente a partir do espetáculo visto; por fim, em 30 de junho, os dois finalizaram juntos esse texto . Babel A partir de Os Lusíadas , de Luís de Camões | Encenação, dramaturgia, cenografia e figurinos: Nuno Cardoso | Desenho de luz: Filipe Pinheiro | Desenho de som e sonoplastia: Francisco Leal | Vídeo: Fernando Costa | Assistência de encenação: Sara Azevedo | Interpretação e cocriação: Carlos Rodrigues, Cristina Almeida, Edilson Wa Ka Chambe, Emílio Costa, Hermínia Teixeira, José Teixeira, Luísa Costa, Madalena Costa, Marlene Pacheco, Rodrigo Matos, Roldy Harrys, Rosa Quiroga, Sérgio Nogueira, Tiago Ribeiro e Sérgio Sá Cunha, Telma Cardoso | Música: Adriano Silva (eufónio), Diogo Gomes (trompete), Lucas Domingos (trombone), Marta Figueira (clarinete), Rafael Fonseca (tuba) e Francisco “el Killo” Beirão (percussão) | Produção: Teatro Nacional São João
- Falhar o género
A partir de King Size , de Sónia Baptista Só para nos localizar, estamos nos Jardins do Bombarda, em Lisboa. Acabamos de assistir ao espetáculo King Size , com criação e direção de Sónia Baptista, e não nos conhecemos, correto? Correto. Consideras-te um homem? Não percebi. Um homem. Posso assumir que tu te consideras um homem? Sim, pode sim. Sou um homem. Qual é o teu nome? Podemos seguir sem nomes? Sim, claro. Não há necessidade de identificação. Afinal, somos homens. Podemos seguir. Creio que possa ter a ver com o que acabamos de ver no espetáculo, talvez? Essa confiança? Não, este gesto de autocentralização que tu fizeste com as mãos. Qual? Este? Sim, este mesmo. Creio que sim. Bem apontado. Durante o espetáculo passou pela minha cabeça que fosse preciso certa identificação com aquele masculino para haver uma desidentificação, compreendes? Fala mais sobre isso. Temos essa ideia da construção da masculinidade, os mitos masculinos, os gestos masculinos, o corpo masculino. O homem medíocre, a caricatura do seu atraso social. Algum tipo de precariedade. Sim. Aquelas personagens, performers, personas colocam em discussão uma definição de “homem”. Por meio de um discurso paródico sobre a masculinidade, elas indicam a precariedade de uma masculinidade hegemônica. Mas não a tua. A minha o quê? A tua masculinidade. Também a minha, claro. King Size - Fotografia de Filipe Ferreira Mas não és um indivíduo duro, sem prazer nenhum na vida, reprimido emocionalmente, sempre na defensiva, não cospes no chão ou sentas com as pernas abertas para conseguires coçar melhor os tomates. Não sou. Percebo o que estás a dizer. Ao zombar da masculinidade, aquelas narrativas apresentam os homens como objetos de riso e como sujeitos que se movem entre velhas e novas posições de sujeito. Mas a caricatura recai somente sobre as velhas posições. Aquele homem ultrapassado, inculto. É isto? Este homem que não eu. Então aprendeste algo sobre si mesmo. Não sei se aprendi algo sobre mim, para além de não ser, nem querer ser um macho. Estar numa sala, entrar numa sala, com a confiança, o privilégio de ser um homem, o ocupar do espaço, essa atitude que grita: “isto é meu, é tudo meu. Eu tenho o que quero e, se eu quiser isto, isto será meu”. Já perguntaste ao teu pai o que, pra ele, é ser homem? Provavelmente meu pai diria algo como “é cuidar bem de sua família” ou algo relacionado à existência de uma família. Eu sempre fico impressionado como estas performances de género existem e são estruturais. A criança recém-nascida, com seu pequeno pénis e seus minitestículos, já começa a compreender algo sobre a sua própria masculinidade no sorriso que vê estampado no rosto do pai. Essa construção da masculinidade é também uma coisa absolutamente artificial. Papéis de género são aprendidos desde a infância, enraizados na linguagem, na educação, nos trejeitos, nas expectativas sociais. O que parece “natural” é, na verdade, uma construção social profundamente enraizada. Uma denúncia da permanência do patriarcado nos detalhes mais cotidianos da vida social. O que é visto como “destino” passa a ser reconhecido como construção histórica. E nós ainda estamos falando sobre isto. Ainda estamos. Às vezes, eu acho que é impossível que não haja, mesmo que muito demoradamente e em pequenas doses, mudanças nesse pensamento de geração pra geração. Gerações de homens que enxergam seus avôs de um jeito, os seus pais de outro, a si mesmos de outro jeito completamente diferente . Sim, mas acho que outro assunto possível aqui é a autoconsciência da masculinidade tóxica, por exemplo. Ou simplesmente da masculinidade em si. O macho desconstruído. O que tu responderias a essa pergunta? Que pergunta? Pra você, o que é ser homem? É ser um problema, acho que diria assim. Ser homem é ser um problema, um acúmulo de tempos, hábitos, de intenções. Ser algo carente de transformação. Algo que precisa mudar. É interessante esta questão do acúmulo. Inclusive quando a masculinidade extravasa os limites do corpo e passa a habitar também objetos e coisas, por exemplo. Um carro, a fivela de um cinto, um palito de dentes na boca. Uma bota, um relógio pesado no pulso. Uma arma, por que não? Uma linguiça. Mas a linguiça esbarra na convenção do fálico. Gigante, se formos por aí, a lista passa a ser gigante. Pois é. Mas a lista é, de facto, gigante. Tu citaste a linguiça por causa do hot dog. Que hot dog? O hot dog que é montado em cena. O pão, a salsicha, o ketchup. Sim, claro, talvez sim. O hot dog que é ofertado à plateia. Confesso que não percebi bem essa parte. Entregaram só quatro, eu vi, acho que foram só quatro. Não sei, não reparei nisso. Recebeste um hot dog? Não, não recebi. Acho que deram só para os homens. Então por que não recebi? Foi o que eu disse, eram só quatro! Mas você queria um hot dog? Não sei. Existe qualquer tipo de fragilidade na salsicha, é mole, é fina, é delicada. Lembrou-me a imagem daquelas figuras a guiarem-se a si mesmas pelo próprio pénis, como fantoches, como uma trela. Prefiro um churrasco. Carvão, grelha, fumo. Carne com gordura, sanguinolenta, picanha, meio crua. Fica óbvia a conexão com a violência, a guerra, a carnificina. Sim, mas também uma dominação simbólica. Uma forma de poder sutil e invisível, que opera sem coerção física. Uma dominação que se perpetua nos símbolos, nos rituais, nas tradições, em representações que parecem neutras, mas carregam uma carga desigual de poder. Uma violência que não é percebida como violência por quem a sofre; e é justamente aí que mora sua eficiência. King Size - Fotografia de Filipe Ferreira Sinto que o espetáculo ficou um bocado perdido ao tentar “renegociar” a masculinidade hegemônica com o público que, no entanto, não era o da masculinidade hegemônica. Nós somos o masculino errado. Nós? Errado? Não percebi. Vou tentar dizer de outra forma. Na oportunidade que o espetáculo tem de desfigurar as normas hegemônicas do masculino, provando que as normas que instauram essa masculinidade seguem. Como posso dizer? Não estou conseguindo ser muito objetivo aqui. Não mesmo. O problema é que eu senti alívio. Em algum lugar, dentro de mim, prosperava um alívio por não pertencer àquele ideal de masculinidade. Por não me identificar com isso que o espetáculo dizia que era ser homem. Por não corresponder ao que me era predestinado. E, portanto, era eu contra eles. Eu, a me sentir um pouco superior. Um alívio por não ser como eles. Eles. Sim, eles. Eles que não somos nós. Nessa abstração pronominal, abrangente, desconhecida. Um sentimento de antagonismo. Equipa A versus equipa B. De que lado você está? Prisão ou liberdade? Potência ou morte? Passado ou futuro? Nós ou eles? Isso. Mas sinto que é mais sobre um lugar intermediário, não sei. Um lugar de possibilidades em aberto. Tudo o que nos tolhe, que nos agrilhoa, é limitativo, e este lugar in-between é livre. As figuras do espetáculo percebem que não são livres, e se não podem ser livres no planeta Terra, serão livres noutro lugar. Em Marte? Não! Na consciência de si. Naquilo que é nosso; naquilo que ninguém nos pode tirar. Compreendo. Concordo. Nossa consciência, nossas regras. Mas isso é meio perigoso também, não achas? Acho. Acho que devemos poder ser livres justamente no planeta Terra. Durante o espetáculo, eu acompanho o périplo daquelas personas queers , “em construção”, passo a passo, em provação, rumo ao masculino. Etapa após etapa, tentando compreender desajeitadamente – no corpo – a masculinidade. Como no fisiculturismo. Sim. Ficaria um pouco mais naquela cena, na menção visual ao fisiculturismo. Moldar seu corpo ao ideal humano-masculino. Força, potência, virilidade, autossuficiência. O músculo tanto como armadura, quanto fetiche. Não é só funcionalidade: é ostentação de um poder visual. Uma máscara viril. No entanto, também é sobre esculpir-se. Assim como um artista molda o bronze, moldo o meu corpo. Nesse caso, músculo e bronze são equiparáveis, são apenas materiais artísticos. Você disse que sentiu alívio. E você sentiu algum tipo de compaixão? Compaixão? Acho que não. Deixa eu pensar um bocadinho. Talvez. Talvez uma pequenita compaixão, sim, tem razão. Desse lugar pesado, fechado, dos homens. Eu pensei: “Viver assim deve ser horrível!”. Deve ser uma violência existir dessa maneira, tentando se encaixar nesse modelo constrangedor, muito pior que a sapatilha da bailarina. Assim é mais possível amá-los. Os homens mais desorgulhosos, que expõem fragilidade, demonstram estar cientes dessa prisão masculina que também lhes foi imposta. Mas isso é meio perigoso também, não achas? Achas? Sim, exatamente. Acho que também é por isso que eu senti que o espetáculo ficou um bocado perdido ao tentar “renegociar” a masculinidade hegemônica com um público provavelmente cheio de masculinos errados. Concordo. Fala mais sobre isso, se puder. Talvez eu esperasse perceber algo dentro de mim que me fizesse mais parecido com aqueles homens mais clichês. Às vezes, eu me sinto uma paródia de um homem desconstruído. A paródia de uma desconstrução. Às vezes, eu acho impossível desconstruir o masculino. Lembro-me que li algo interessante na folha de sala, poucos minutos antes do início do espetáculo. Nós ainda não nos conhecíamos. Era sobre a ideia de falhar o género. “Falhar” como verbo de ação. Senti, por alguns segundos, que essa era a grande revolução permanente; a grande responsabilidade, a grande solução. Falhem! Falhem todos vocês! E nós? Nós falhamos? Não percebi. Isso é bonito. Falhar! Só assim pra permitir que outras formas de vida existam. E é honesto. E está ao alcance de toda gente. Concordo. Não sei nem se é uma tarefa difícil. Pelo contrário. Falhar é a parte mais natural. Devias escrever isto pras artistas. Não, jamais faria isso. Fica entre nós. PROGRAMA DE ESCRITA Gustavo Colombini assistiu ao espetáculo King Size no dia 8 de junho de 2025, às 16h, na Sala Estúdio Valentim de Barros / Jardins do Bombarda, em Lisboa; estudou entre 9 e 10 de junho a folha de sala do espetáculo e interessou-se pelo formato de entrevista (a folha de sala é composta por uma entrevista de Sónia Baptista à professora e investigadora Francesca Rayner); realizou, então, uma entrevista com Diogo Liberano, em 18 de junho, sobre masculinidade e as identificações com o masculino; entre 20 e 22 de junho, escreveu um texto mesclando sua experiência com a peça, a entrevista com Liberano e desdobramentos da folha de sala; por fim, em 24 de junho, os dois estudaram o texto criado, fizeram alterações e finalizaram juntos esse texto . King Size Direção: Sónia Baptista | Interpretação: Ana Libório, Crista Alfaiate, Joana Levi, Maria Abrantes e Sónia Baptista | Espaço cénico: Raquel Melgue | Desenho de luz: Daniel Worm d'Assumpção | Vídeo: Ana Libório e Raquel Melgue | Som: Margarida Magalhães | Desenhos: Bárbara Assis Pacheco | Apoio à dramaturgia: Mariana Ricardo | Apoio à criação: Francesca Rayner, Marcus Massalami, Maribel Mendes Sobreira, Paloma Calle e Vânia Doutel Vaz | Apoio ao desenho de luz: Pedro Nabais | Direção de produção: Maria João Garcia | Produção executiva: Margot Silva | Comunicação: Helena César | Produção: AADK PORTUGAL | Tradução: Joana Frazão | Legendagem: Joana Frazão e Sónia Antunes | Coprodução: Teatro Nacional D. Maria II, Teatro Municipal de Matosinhos Constantino Nery/DDD - Festival Dias da Dança e Festival Linha De Fuga | Residência de coprodução: O Espaço do Tempo | Projeto apoiado pela República Portuguesa – Cultura / DGArtes
- Uma vida
A partir de HIGH FANTASY (I’m in Love!) , do teatroàfaca I. Diz o linguista e crítico literário brasileiro, Othon Moacyr Garcia, que “a existência de similitudes no mundo objetivo, a incapacidade de abstração, a pobreza relativa do vocabulário disponível em contraste com a riqueza e a numerosidade das ideias a transmitir e, ainda, o prazer estético da caracterização pitoresca constituem as motivações da metáfora”. Ao escrever-te, o mistério me acena e o perigo da resposta desaparece. Que este dizer permaneça inconcluso como tantas umas vidas. Como te escrevi noutro texto: “Amo-te, te amo e amo e nem sei o que isso mais possa significar, mas eu sinto. Sinto a sua presença disforme me afagando os cabelos. E se sinto, logo, eu sei... É porque ainda estou aqui.” E o teatro estava cheio. II. Naquele teatro, jovens jogavam um jogo cujo tabuleiro é a própria vida. Com doçura e sorriso marejado ali nos reencontrei. Ali percebi que outras também fizeram o mesmo que nós: saltos e atos, suicídios e seus poemas derivados. Do lado esquerdo do palco, uma mesa ao redor da qual cinco bancos (um para a ausência do amigo morto). Na mesa, as peças do jogo. Nas mãos das jogadoras, o livro daquela narrativa inventada pelo morto. E quanto mais liam a ficção do jogo, mais nos era permitido ver a vida a ser escrita em direto. O texto da vida mais aberto do que fechado, mais a ser do que já escrito. Num delicioso jogo de atuação, moviam-se as atrizes entre as reviravoltas de um jogo e os inacabamentos que continuam após a morte de uma amiga em comum. Por uma hora, um pouco mais, um teatro cheio de pessoas estava diante de uma história sobre como a vida inventa seus meios para continuar. Que meio de transporte amoroso pode ser uma metáfora. III. Quando decidiste partir, também lançaste mão de uma metáfora. Disseste, na carta deixada, que de “Peter Pan só faltava voar / E voou, enfim”. Seu voo concreto-poético, inaugurou a metáfora para mim. Seu partir pela janela abriu-me este mundo desde dentro, fez nascer horizonte no fundo e não na frente; se há um lugar onde a morte acontece, tinha dito, é na vida. Você partindo por uma janela e eu juntando amigas para refazer-lhe em peça. Na peça que criamos, após tua morte, tua mãe e pai cimentam a janela para impedir novos saltos; mas acabam por evitar, também, a especulação de novos horizontes; tentaram, certamente, o impossível, que é esquecer. Que sabor outro falar da tua morte não com 20, hoje tenho já quase 40 anos. HIGH FANTASY (I’m in Love!) - Fotografia de Afonso Molinar IV. “Um grupo de aventureiros enfrenta a sua última missão; ao mesmo tempo, um grupo de amigos, marcado por um acontecimento comum, junta-se para terminar o último jogo de uma longa campanha, que começa a ganhar paralelos com a sua vida privada.” Eis a sinopse do teatroàfaca, companhia de teatro, para HIGH FANTASY (I’m in Love!) . Neste espetáculo, amigas jogam um role-playing game (RPG) criado por um amigo em comum, morto recentemente. Sendo um RPG, torna-se também uma peça em que elas interpretam papéis que, a cada nova jogada, parecem falar, de dentro da narrativa, diretamente às suas vidas pessoais. No dentro-e-fora desse teatro-jogo, pouco a pouco, conhecemos aquelas figuras, a figura ausente e suas relações. São jovens, artistas e personagens. São também jovens as linhas que reivindicam a necessidade da ficção para lidar com a vida. Que texto pode uma vida escrever quando derrapam suas linhas? V. Soluções, às vezes, trazem dormência a um corpo que pena e que pensa. Remover, portanto, desde a fundação, o vício nas resoluções. (Penso muito em suicídio.) Não me assusta. Antes, comove-me a fragilidade do amor; intriga-me o necessário e incessante lembrar-se dele, dá-lo a ver, dele cuidar e fazê-lo florescer, coitado, como gripa o amor, fica amuado, e como esbarra nas coisas, como tropeça o amor, e perde pedaços, ah, amor, tu és coisa que fotossintetiza, que precisa de sol e, de quando em quando, de um pedaço de pizza. VI. Em voz alta ou através de palavras escritas. Não posso simplesmente confirmar que não estejas recebendo as palavras que destino a ti. Uma verdade escapa. Resta um espaço aberto, onde nem afirmo nem refuto tua ausência ou presença, isso não pode ser completamente demonstrado. Duas décadas após tua morte, isso não quer dizer que eu tenha finalmente apreendido algo. Mesmo o aprendido pode, novamente, se perder. Como a vida não prova sua própria integridade, permaneço incerto – sem conseguir que minha compreensão da tua ausência seja estável, completa ou definitiva. Demanda tempo. E corpo. VII. Você começou, nunca terminou, o curso de matemática. Durante tempos, busquei soluções para a coisa. Não explicações, mas resoluções práticas para aquilo que tua morte deixou em nós que aqui ficamos. Demorei respostas até encontrar o Teorema da Incompletude, de 1931, do matemático alemão Kurt Friedrich Gödel. Chegaste a estudá-lo, imagino. No Teorema 1: “Qualquer teoria axiomática recursivamente enumerável e capaz de expressar algumas verdades básicas da aritmética não pode ser, ao mesmo tempo, completa e consistente. Ou seja, numa teoria consistente, sempre há proposições que não podem ser demonstradas nem verdadeiras nem falsas.” No Teorema 2: “Uma teoria, recursivamente enumerável e capaz de expressar verdades básicas da aritmética e alguns enunciados da teoria da prova, pode provar sua própria consistência se, e somente se, for inconsistente.” Reformulo os enunciados de Gödel aplicando-os em uma vida: 1: Qualquer teoria sobre uma vida, capaz de expressar verdades básicas sobre ela, não pode ser ao mesmo tempo completa e consistente. Ou seja, numa teoria consistente, sempre haverá proposições sobre uma vida que não podem ser demonstradas nem verdadeiras nem falsas. 2: Uma teoria, mesmo que consiga descrever os acontecimentos que uma vida poderia ter e listar alguns enunciados que sirvam como prova, só poderia provar sua consistência se, e somente se, fosse inconsistente. Penso que a matemática lida melhor com o suicídio do que eu, não? HIGH FANTASY (I’m in Love!) - Fotografia de Afonso Molinar VIII. É 2011, recordo-me. Fui até a cidade onde nasceste, visita surpresa. Saí do terminal rodoviário e caminhei até o bucólico cemitério onde estás. Pela bússola do coração, encontrei seu túmulo e, sentado à relva, te fiz um pedido (não sei se lembras). Disse a você, minh’amiga, que em breve estrearia uma peça de teatro que contaria um pouco da nossa história. E disse mais. E pedi. Pedi que aceitasses minha empreitada, que confiasses na amizade, pois ainda estava sendo preciso tentar, de muitas maneiras, lidar com seu suicídio. Na peça criada naquele ano, inventei um título que traduzisse a tarefa que tomou meus dias e noites: Como ultrapassar uma questão que não admite resolução? IX. Vivi algo bonito, sensação gostosa. Foi numa noite tranquila: uma pequena porta – quase cirúrgica – foi aberta na superfície do meu corpo. Porta que, por muito fechada, rangeu leve antes de abrir mais um pouco. (Imagino o botão de uma flor que eclode ao romper da madrugada.) Naquela noite, no terreno do meu peito recém-aberto, nossa história – já antiga – acenou vivíssima em direção ao gesto que, no palco daquele teatro, ganhava carne. E o teatro estava cheio. X. Não consigo iniciar esta carta simplesmente escrevendo “querid'amiga”. Ontem foi seu aniversário. O que eu poderia te desejar? Quais realizações você, talvez, pudesse? É estranho como a morte modifica a vida. Até mesmo as palavras. Perdem o ânimo, a anima, quero dizer. Escrever “amiga”, hoje, escreve o quê? Escrevo na confiança de que há vida para além do que posso. Não te quero cansar. PROGRAMA DE ESCRITA Diogo Liberano assistiu o espetáculo HIGH FANTASY (I’m in Love!) no dia 4 de abril de 2025, às 19h, n’O Teatrão, em Coimbra; de 7 a 23 de abril, escreveu uma primeira versão desse texto – uma carta – que, no entanto, ficou guardada; de 22 a 28 de maio, Liberano voltou ao texto, modificando-o a partir de leituras e estudos sobre matemática; de 29 de maio a 4 de junho, tal versão foi lida e reordenada por Gustavo Colombini; por fim, em 6 de junho, os dois decidiram quais mudanças seriam feitas e finalizaram juntos esse texto . HIGH FANTASY (I’m in Love!) Criação: Afonso Molinar | Interpretação: Carolina Rocha, Fábio Batista, Laura Ribeiro, Simão Vaz | Assistência de encenação: Diana Especial | Figurinos: Inês Correia | Caracterização: Diana Especial | Impressão 3D: Galicerra, Miguel Lopes | Pintura de miniaturas: Joana Jesus | Sonoplastia: João Gamory | Direção técnica: Show Doutor | Direção de produção: Diana Especial | Fotografia: Afonso Molinar | Coprodução: Município de Lagos/Centro Cultural de Lagos, Município de Lagoa/Auditório Carlos do Carmo e teatroàfaca
- Com cão e espirro
A partir de Crocodile Club , do Teatro Oficina Sexta, 9 de maio de 2025 23:25 – Lindeza , amei ver vocês, mas saí correndo, tenho aula amanhã cedo! 23:26 – Conte-me tudo! Desta peça, 23:27 – ai quero saber tu!!! que achaste? Sábado, 10 de maio de 2025 13:04 – Oi, meu amor . Desculpa, mandei mensagem ontem, depois me enrolei com coisas . Como foi para você a experiência, como foi para vocês? É… É o velho dilema, né? , assim… Como compor, escrever e criar uma crítica à extrema-direita ou à direita sempre extrema. Que não seja por meio de um simples deboche ou por uma reunião de piadas , né? Piadas racistas, piadas misóginas e por aí vai. Eu fiquei com a sensação de que é mais uma peça que não consegue ir além da piada, ainda que ela traga , sem nenhuma dúvida, um desejo de investigar uma poética quase de um filme de terror, de horror, de terror . Nesse sentido, o espetáculo me pareceu interessante . Ah… Enquanto investigação da poética do horror, do terror, dos filmes de terror, me pareceu legal , divertido , é um plano sequência no palco, a gente vai vendo ali tudo na nossa frente. É uma investigação muito meticulosa , eventualmente menos , e isso me interessou enquanto experimento cênico potente, assim . Dramaturgicamente, assim, a coisa da extrema-direita, para mim, resulta um pouco, eu fico um pouco com o pé atrás, sabe? Estou um pouco cansado de fazer deboches sobre a extrema-direita, eu acho muito mais sério do que ficar repetindo piadas racistas, ou misóginas, ou qualquer coisa desse teor. Me fala o que você achou, por favor . Crocodile Club - Fotografia de TNSJ Domingo, 11 de maio de 2025 14:07 – Meu amor. Olá, também , entretanto, não te consegui responder. Resolvi agora o teu áudio e, tenho a mesma sensação que tu. Acho que\ Ai, cãozinho. Desculpa, está aqui a passar um cãozinho. Desculpa, é um cão muito giro. OK, desculpa, então, senti que esta pincelada na extrema-direita, ou seja, esta, esta, passar por cima do assunto, passar por cima no sentido de só fazer assim uma referenciazita jocosa, pá, já, também já não me interessa. Acho que é preciso trazer o tema de uma forma muito mais concreta e afirmar de que lado da barricada é que tamos. E não ser só assim ao de leve. Ui, vou espirrar . 14:11 – Desculpa, tive que espirrar. É isso, senti que foi assim muito, pá. Preciso que sejam mais concretos. Aquilo que querem trazer, concretos de assumir a seriedade de que trazem para palco, de que lado é que estão, estás a ver? Claro que eu sei qual é o lado, mas parece-me que está a ser abordado a medo. Eu saí de lá a rir-me , ou seja, acho que foi essa, acho que foi esse o resultado para mim. Não foi, tipo, vi um espetáculo político. Vi uma cena gore , isso achei fixe . Nunca tinha visto em teatro uma cena tão gore , essa coisa fantasmagórica, nunca tinha, nunca tinha visto, isso achei muito fixe. Como é que fazes para trazer o imaginário que temos sempre nos filmes de terror para uma caixa de palco, achei isso muito interessante . Achei que vi imagens de vídeo durante demasiado tempo. Achei que estava sempre a olhar para cima e preferia que eles me obrigassem a não olhar tanto, ou seja, que havia momentos atrás da cena que sim, que era, que era fixe termos ali o vídeo, ou então não, se calhar deixar no imaginário também podia ter sido fixe ou arranjarem outra solução. Agora, de repente, tudo o que tá a aparecer ali no primeiro plano da cena também tá projetado em cima e eu tive constantemente a sensação de “para de olhar para o ecrã e olha para a cena” , sabes? Não sei se isso aconteceu. Tive isso. Porque, pronto, mas o cinema é fixe, dá-te detalhes que o teatro não dá, mas o teatro dá-te outras coisas e eu fui para ali para ver isso. Tenho assim uma relação um bocadinho. Bem, eu estou a perceber qual é o meu, a minha sensação a ver vídeo em teatro. Agora, quando de repente entra tanto, aí já me custa, aí já me já fico, tipo, espera aí, “eu não vim ver cinema”, sabes? Já entra, pronto, para mim, já foi demais o que o recurso que eles, o que eles, o quanto eles recorrem ao vídeo, para mim, foi demasiado. Mais. Acho que o elenco notava-se muito a diferença, de quem é que tem realmente arcabouço e de quem não tem? Acho que eles foram todos muito fixes , mas uns muito, muito fixes , e outros só fixe . Por exemplo, a política não achei nada de especial . Até no início achei que estava muito nanananananã. E sinto quando entra a irmã, que o palco fica mesmo bu!, aí parece que a cena começa. Tive essa sensação, mas pode ser muito influenciada pelo facto de conhecer a atriz . De outros, de outros trabalhos, não é? E já tem muito bem na memória, mas é isso, fiquei um bocadinho aquém, ou seja, aquilo para mim foi fixe , foi, foi uma, um serão fixe, é isso, mas não foi mais do que isso. Não foi tipo “foda-se, que power , vou sair daqui e vou falar sobre isto! Vou sair daqui e falar da importância da extrema, de, de combatermos a extrema, sabes? Não são assim, olha que giro, vi um espetáculo de terror, nunca tinha visto. Acho que é isto, mas concordo plenamente quando dizes essa. Essa questão de estou cansada de ver esta abordagem de ser jocosa e de repente temos que ir buscar o preto, o gay, a mulher, pronto. Temos que ir por aí, pá, acho que já não temos que ir por aí. Acho que, acho que já, já chega de irmos por aí. Já não, já não chega. Ai que horror, não basta ir por aí. Precisamos de, de ser mais declarados quando é que temos que ir. Acho eu, estou a pensar nisso um bocadinho por alto. Desculpa, isto já está muito longo, parece um podcast! Beijinhos. Segunda-feira,12 de maio de 2025 10:09 – Oi, meu amor , bom dia. Espero que meu áudio não venha com muito barulho, que eu estou caminhando aqui em direção à casa . Ah… Eu adorei te ouvir. Obrigado. É… Foi um depoimento, assim, se você quiser, a gente pode transformar ele num texto e publicar, mesmo que, se você preferir, no anonimato. E falo sério, acho, acho uma maneira gostosa de pensar o espetáculo, sabe?, assim, é uma fala, uma sensação. Eu estou muito de, de acordo com tudo que você diz, acho que você foi até longe em algumas, ah…, sensações e elaborações. É… Eu concordo totalmente, foi o que eu tentei manifestar no meu áudio. Estou muito esgotado da posição que o artista ocupa , né? Ah…, esse grupo de artistas. Ah… Vamos dizer assim, eles são, eles são melhores, né? Eles não. A crítica não bate neles, eles é que criticam. Isso é muito ruim, porque você fica assim, gente, é tão simples a crítica de vocês, porque não é uma crítica, é um deboche. Ah… Eu preferiria que fosse só um filme de terror, ou seja, uma peça de terror. Não precisava falar da extrema-direita, porque o modo como é falado me soa emburrecedor, né?, simplificador . Acho que alimenta ali uma maneira de criticar muito cansativa, muito ensimesmada e concordo, acho que a experiência fílmica é exaustivamente cansativa . E já é moda, né? Eu fui assistir um outro espetáculo, ah, há tantas semanas no Teatro Carlos Alberto e, pelo amor de Jesus, eu tive que lutar para conseguir olhar para baixo, para a cena, porque eu não parava de olhar para cima, tendo em vista a cultura em que nós vivemos, né? Das imagens e por aí vai. Então pronto, vamos publicar essa sua, esse seu depoimento, me fala, eu transcrevo tudo, incluindo o cão e o espirro. Beijo. Bom dia. 11:32 – se for com cão e espirro, vamos ❤ Crocodile Club - Fotografia de TNSJ Quarta-feira, 21 de maio de 2025 09:57 – Tal pensamento deriva diretamente de breves palavras na folha de sala do espetáculo Crocodile Club . No texto Escatologia, paródia, desencanto e resistência , o professor, autor e dramaturgista Rui Pina Coelho, ao abordar o trabalho de Mickaël de Oliveira, destaca a sua escrita como um trabalho repleto “de ironia , densidade filosófica e humor ácido ”. Tal formulação abre-nos um problema maior que parece não caber num espirro: será que a ironia e o humor ácido ainda constituem forças críticas? Sistema e História. Pensar, por exemplo, no sistema ósseo de um corpo. Ele é feito de suas partes (seus órgãos) e, por definição, eles trabalham em conjunto visando dar sustentação ao corpo. No entanto, se pensarmos artisticamente, não é apenas a função de um sistema aquilo que garantiria a sua relevância ou importância num organismo. Pensar, por exemplo, no que determinada época histórica provoca nos ossos de um corpo. O organismo agora torna-se social e, mais do que somente desempenhar funções predefinidas, sendo social, está sempre vinculado ao que lhe é externo, sendo influenciável ao que escapa às suas intencionalidades e desejos. Será, portanto, que ainda podemos pensar num género artístico como um sistema alheio à história? Será o humor ácido uma categoria já acabada e invariável, a ponto de ser indiferente ao contexto em que opera? Reacordar. Pensamos sobre a ironia. Consideramos que a ironia tenha por pressuposto falar com nossos pares, ou seja, eu preciso que a outra – com quem eu falo – saiba daquilo que estou falando para que ela entenda aquilo que não estou dizendo. Ou ainda: eu preciso que a outra – com quem falo – saiba do que não estou falando para que entenda o que estou dizendo. Podemos partir de uma pressuposição que, no entanto, não temos a certeza se existe? A ironia, assim deduzimos, só funciona com os pares e o teatro não é, feliz ou infelizmente, um espaço onde todas que ali estão partilham do mesmo repertório (de vida, de palavras, de densidade filosófica, de experiências vividas, de condições de vida…); é preciso renovar os acordos a cada noite. Quais ignorâncias, indiferenças, quais esquecimentos acerca dos dias que correm, precisam ser interiorizados para que a artista continue podendo encenar seu deboche? O deboche salva-se a si mesmo, egoísta que ele é. E quem salva nossa época? Em que época estamos para que alguma acidez ainda seja desejada e possível? 12:01 – Acordar. PROGRAMA DE ESCRITA Diogo Liberano assistiu ao espetáculo Crocodile Club no dia 9 de maio de 2025, às 21h, no Teatro Nacional São João (Porto); de 9 a 12 de maio, trocou mensagens de texto e voz com uma amiga que também assistiu ao espetáculo naquela mesma noite; de 14 a 18 de maio, ele transcreveu as mensagens de áudio e escreveu uma primeira versão que, de 19 a 20 de maio, foi lida e teve palavras e trechos pintados de branco por Gustavo Colombini; por fim, no dia 21 de maio, os dois escreveram o último trecho e finalizaram juntos esse texto . Crocodile Club Texto e encenação: Mickaël de Oliveira | Desenho de vídeo e cinematografia: Fábio Coelho | Cenografia e figurinos: Pedro Azevedo | Desenho de luz: Rui Monteiro | Apoio coreográfico: Cristina Planas Leitão | Sonoplastia e composição: Sérgio Martins e Rui Lima | Caracterização: Catarina Santos | Direção de produção: Gabriela Cavaz (Colectivo 84) e Susana Pinheiro | Produção executiva: Héloïse Rego (Colectivo 84) e Hugo Dias | Interpretação: Afonso Santos, Bárbara Branco, Beatriz Wellenkamp Carretas, Fábio Coelho, Gabriela Cavaz, Luís Araújo e Inês Castel-Branco | Participação especial: Eduardo Breda, Francisco Ferreira e João Tarrafa | Produção: Teatro Oficina e Colectivo 84 | Coprodução: Teatro Aveirense e Teatro Nacional São João | Parceria de criação e apresentação: Fábrica ASA, Centro Cultural Vila Flor e Teatro Académico de Gil Vicente
- Do fazer imaginar
A partir de Os outros , espetáculo dos alunos finalistas da licenciatura em teatro da Escola Superior de Teatro e Cinema – IPL Contar uma história. Podemos começar com a ideia dos fantasmas. Quando eu era criança, esperávamos os nossos pais dormirem e, depois que fingíamos estar dormindo, uma nova vida começava. Meu irmão acendia uma lanterna sob os lençóis e passávamos a noite a partilhar histórias. Contar histórias era um jeito de estarmos juntos; gastar o tempo que podíamos partilhar imaginando. Tudo o que narrávamos era uma maneira estranha nossa de existir: submarinos, naves espaciais, cavernas, fantasmas… Eu perdia o sono. (Imaginar custava-nos o sono). Gastar tempo a imaginar, naquele momento, era ganhar tempo de vida. E, mesmo precisando dormir, eu não sabia mais como descansar. Mesmo sentindo os olhos pesados, as pálpebras a se fecharem quase sozinhas, era inaceitável a ideia de abandonar aquele estado. Por que desperdiçar aquela atenção? A vontade de imaginar. Durante todos aqueles anos, nunca mencionamos a palavra “verdade”. Acho que até hoje nunca falamos sobre isso. (Imaginar nada tem a ver com essa palavra, não é mesmo?) Onde estão os fantasmas senão nas histórias? (Protegidos e possibilitados por elas) Os outros começa com a leitura de um manuscrito. Os personagens reúnem-se à volta de uma lareira; é próximo ao fogo que a contação dessa história acontece. É o diário de uma perceptora de duas crianças, Flora e Miles, em uma propriedade rural localizada em Bly, Essex, Inglaterra. As duas crianças acabam por se envolver num universo de aparições guiadas ora pela ideia do paranormal ora pela força da imaginação num espanto que circunda espectadores e personagens. E, assim, seguimos. Os atores-personagens investem-se nessa ideia: contar essa história (falada e cantada). A dramaturgia de Bruno Bravo baseia-se na novela de Henry James, The Turn of the Screw , assim como nas adaptações subsequentes de Truman Capote e Benjamin Britten. Propõe, sobretudo, uma relação muito próxima ao convívio cénico entre teatro e literatura. E no centro desse convívio, está a contação de uma história. No centro desse convívio, estão também alunos finalistas da licenciatura em teatro da Escola Superior de Teatro e Cinema – IPL. Esse texto que agora está sendo lido também nasce no centro desse convívio. Um convívio pessoal entre a ideia de formação, teatro, pedagogia, dramaturgia, literatura. Elenco essas palavras, lado a lado, com o intuito de também me provocar. Penso na minha formação; na minha trajetória-aluno, a tentar perceber em QUE eu estava me formando. É inevitável, hoje, não pensar nesse verbo (não sei se o português de Portugal comporta esse ideário). Formar-se, como ter uma profissão. Dar corpo ou forma. Constituir-se. Organizar-se de algum jeito pra exercer um papel na sociedade. Uma formação, um conjunto de valores ou qualidades morais resultantes de uma educação que escolhemos pra nós. Uma profissão, então, que elabora comunidades, proponho. Minha formação consiste em pensar gestos que tentam tocar pessoas através de narrativas inventadas; que tentam deixar claro que imaginar é estar vivo e que, tudo o que não é imaginação, é mentira. Durante todos esses anos nos quais ainda vivemos, nunca mencionamos a palavra “mentira”. Acho que até hoje nunca falamos sobre isso. (Imaginar continua não tendo a ver com essa palavra, não é mesmo?) Imagino, então, essa formação pra mim: contar histórias. E lembro desses colegas de profissão (André Rita Baião, Beatriz Viamonte, Dany Duarte, Lúcia Pires, Margarida Gonçalves, Rafael Dultra, Rogério Maurício) que vi trabalharem em cena esse convívio entre teatro e literatura; entre o trabalho dramatúrgico, coletivo, de tradução, cortes, distribuição de personagens, leituras, avanços e recuos, trabalho de chão e mesa, canções. E, enfim, chego mais uma vez nessa indagação: quando foi que paramos de desejar a contação de histórias? Quando foi que apagamos o fogo desse mistério? Contar histórias como quem inventa, como quem sabe que perder tempo é ganhar vida? Sinto que esse trabalho, como saldo de uma “finalização” (voltaremos a isso na ideia de “exercício final”), ensina artista e público a reimaginarem o motivo do teatro. Ou, ainda, a reimaginarem outras imaginações para além daquilo que o senso comum afirma caber ao teatro. Resgatar a possibilidade de o teatro fazer outras coisas tal como contar uma história, coisa essa que parece ter sumido de vista (um gesto tão antigo e ultrapassado que é oferecer ao presente momento não um espelho reflexivo, mas um capaz de estranhá-lo). A justaposição de vários espaços que, normalmente, seriam ou deveriam ser incompatíveis, mas que encontram o seu lugar no teatro. Tudo isso, como contramão da informação, que apesar de produzir uma crescente conectividade, acaba por nos isolar uns dos outros: afinal, estar conectado não significa estar vinculado a nada. Talvez, somente narrar estabeleça algum vínculo entre nós (sem a acelerada mediação das informações). Nossa atenção, ultimamente, sente-se tão fragmentada, que impede uma escuta que se demore de modo contemplativo no que é narrado. Então penso: qualquer narração pressupõe uma comunidade de ouvintes atentos, já que narrar uma história e escutar uma história se condicionam mutuamente. Será que hoje perdemos a paciência para estar à escuta e a paciência para narrar? Será que a escuta, na verdade, concentra-se principalmente não no conteúdo que está sendo partilhado, mas na pessoa que narra? A própria dramaturgia respondeu-me: “A realidade é melhor apreendida por aqueles que sabem imaginar.” Chamou-me a atenção escutar de uma pessoa sentada atrás de mim, antes do início do espetáculo, a fala: — É um exercício final. Um exercício final, dos alunos, destes artistas em formação. Aos colegas de profissão que se propõem a esse desafio, ousaria dizer: não há exercício final. Exercício final faz pensar na redundância de outra expressão que adentrou o fazer artístico: produto final. Ora, todo produto é o final da linha de produção. Aceitaríamos exercício final se o seu final fosse um fim, ou seja, uma finalidade. Se a finalidade de tal exercício fosse a prática da invenção e do contar, que não acabam, não enquanto uma artista segue viva. Celebro, naquele momento, cada um de vocês pelo corpo e pelo trabalho que cultivaram em contar uma história. Imagino que lá estamos outra vez e, por ser tanto aquilo que já fora, ainda agora é diferente. Imagino aplausos volumosos em noite quente e estrelada. Estou sozinho na plateia, mas o palco está cheio de pessoas e histórias. Agora, o espetáculo termina, o elenco sobre o palco recebe os meus aplausos, aplausos daquele único espectador que era eu naquela noite quase inenarrável. E então, em vez de os artistas agradecerem por minha presença, sou eu quem os agradece. Eu agradeço, diante deles, como quem diz e pede que continuem querendo e contando, querendo contar histórias, que continuem contando histórias. Minhas mãos estão quentes, eu continuo em aplauso, e sei que é possível ler o que minhas mãos estão a escrever: elas dizem que isso vale a pena, elas insistem em dizer que continuem, que vocês continuem. Portanto, em mim, a calma d’esse texto. O artista que conta uma história, duplica o mundo (multiplica o mundo). Solicita calma a uma sociedade apressada. Eu mesmo, recaído (quase sempre) na armadilha da informação, sinto que esses momentos são preciosos por me relembrarem fisicamente da existência da imaginação. E seria a imaginação (diferentemente da descoberta) um gesto que não depende de nada ou de ninguém? É físico? É interno? É relacional? Tenho pensado nisso. Foi quando me lembrei dessa relação que temos entre imaginação e a ideia dos fantasmas. Celebrá-los por existirem para além da nossa certeza. Agradecer aos que nos introduziram à atividade de narrar, sem medo do que é verdade ou mentira. Imaginem comigo essa profissão: imaginar. Imaginem comigo essa outra profissão: fazer imaginar. PROGRAMA DE ESCRITA Gustavo Colombini assistiu ao espetáculo Os Outros no dia 12 de julho de 2024, às 19h30, no Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa; do dia 13 a 24 de julho, escreveu uma primeira versão desse texto; de 25 a 29 de julho, tal versão foi lida e comentada por Diogo Liberano; por fim, em 31 de julho, os dois finalizaram juntos esse texto . Os Outros Dramaturgia: Bruno Bravo | Interpretação: André Rita Baião, Beatriz Viamonte, Dany Duarte, Lúcia Pires, Margarida Gonçalves, Rafael Dultra, Rogério Maurício (alunos do ramo de Atores) | Direção de Cena: Carolina Teodoro, Raquel Caetano e Rita Fernandes (alunas do ramo de Produção) | Desenho e Operação de Luz: Gonçalo Monteiro (do ramo de Produção) | Sonoplastia e Operação de Som: Inês Saraiva e Raquel Caetano (do ramo de Produção) | Cenografia e Figurinos: Inês M. Silva (do ramo de Design de Cena) | Espaço Cénico: Inês Silva (Design de Cena) | Assistência De Construção: Nuno Redin (Design de Cena) | Produção: Carolina Teodoro, Inês Saraiva, Inês Almeida e Luís Santos (Produção) | Comunicação e Redes Sociais: Inês Almeida (Produção) | Arquivo Fotográfico e Audiovisual: Inês Almeida e Raquel Caetano (Produção) | Arranjos Musicais: André Rita Baião, Beatriz Viamonte, Dany Duarte, Lúcia Pires, Margarida Gonçalves, Rafael Dultra, Rogério Maurício (Atores) | Equipa Pedagógica ESTC: Andreia Carneiro, Bruno Bravo, José Espada, Maria Repas, Mariana Sá Nogueira, Marta Cordeiro, Sérgio Loureiro e Stéphan Alberto | Gabinete de Produção da ESTC: Rute Reis, Rui Girão e António Sofia
- Esta não é uma história que acaba ao ser contada
A partir de uma conversa com Axelle Ribeiro, aluna do Mestrado em Estudos Artísticos da Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra Seria preciso calma para refazer o caminho percorrido e se posicionar, outra vez, no instante que hoje julgamos já ter ultrapassado. É lá onde você está agora. Outra vez você, um pé no início de uma ponte. Não sabemos se esquerdo ou direito. Não sabemos se, ao falarmos “pé”, isso significará você inteira. Mas lá está você. Esse texto começa com esse convite: tente ver a si mesma através dessa distância. Suponhamos, então, que você esteja inteira, apesar do desnorteio característico daquele momento [aquela ponte]. — Não me disseram exatamente para onde ir, com quem falar, deram-nos boas-vindas, mas esqueceram de falar que muito não seria dito, bastante não seria explicado, que seria preciso descobrir pelo caminho, o que era óbvio, mas óbvio para quem? Acho que foi por conta disso que desenvolvi esse hábito de sempre chegar um pouco mais cedo… — ela disse, com seus olhos mais lá do que aqui. Esse susto: estamos desnorteadas, mas o caminho também está. Será que nosso desnorteio, naquele momento, nos impede de ver o desnorteio do caminho? Aquela sensação da "escolha de um caminho para a vida". Pensamos que não haveria problemas no caminho, que o problema – caso viesse – viria apenas de mim, eu, caminhante. Por isso seria preciso a calma. A calma de quem confia que lembrar, sobretudo, é não conseguir. Lembrar seria mais invenção do que arquivo ou documento. E temos os documentos, guardados ou amassados, digitais ou corrompidos. Mas por que desejamos lembrar daquilo que já não temos? Quando esteve tomada pela rotina daqueles dias, o que ela fez foi exatamente o [que seria considerado] necessário. Seu agir nasceu tanto do desejo de aprender quanto do movimento da ignorância manifesta em cada passo dado. Seu ímpeto nasceu, por assim dizer, de um desejo que desconhecia espera. Era preciso escolher em quais cadeiras sentar. E, mais que isso, era preciso descobrir outro verbo para uma cadeira que não apenas sentar. E ocupada tal como esteve, ela sequer percebeu o quanto seus pés deram passos e mais passos ponte adentro. — Gostaria de continuar […], mas gostaria urgentemente de uma […] — ela disse e, por assim dizer, as palavras, tal como tijolos ou pedras, imediatamente puseram-se a abrir outros caminhos. — No mundo académico, gostaria de, mas gostaria urgentemente — Urgentemente, de uma pausa, mas no mundo — Gostaria de uma pausa no gostaria — Académico, pausa, continuar, gostaria — De continuar no mundo urgentemente — e, após tantas pausas, ouviríamos ela dizer: — Estou a terminar meu mestrado e não me sinto preparada para nada. Pontes que não se veem, mas que são atravessadas [com a mesma ignorância daquilo que nos atravessa]. Surgem entre um passo e outro, onde o chão parece sumir e o ar se torna um pouco mais espesso [e não estamos a falar de aprendizados, nem anteriores ou posteriores]. Caminhamos sobre elas sem saber para onde seguem, mas quem disse que precisávamos saber de antemão? Talvez o destino seja uma invenção que criamos para aliviar o mal-estar com a indefinição do que é estar viva [mais dura, menos desenvolvida, mais poeticamente viva, menos na mesmidade]. Pegue o lápis e, suavemente, deixe-o deslizar pelo papel branco, traçando uma linha curva. Esboce o focinho, desenhe o contorno do rosto. Use a borracha para ajustar os traços, suavizando até que o animal ganhe forma, pronto para saltar do papel [ou não]. O coelho não precisa saltar [da ponte]. Porque salta, não quer dizer que isso é apenas aquilo que um coelho possa fazer [comer]. O coelho está tranquilo, ele teve uma boa refeição ao almoço [e não foi cenoura]. O coelho não vai saltar, já você, você talvez precise de outra borracha. O susto seria perceber — e aceitar — que se tratava, diariamente, de cruzar a ponte. E que a ponte não era apenas da profissão, mas [nem tão somente a] da vida. O susto seria aceitar — e reconhecer — que pontes não são feitas de espaço ou de tempo, mas de propósitos. Um propósito é coisa medida por métricas dispendiosas [fazer arte, coisa dispendiosa]; propósitos não se dão bem com mais-valias. — Fiquei com a sensação de que não estou na ponte, numa ponte em si, mas que estou em ponte, eu estou em ponte, faço-me perceber? — é evidente que sim. Num dia esquecível, ela teve a sensação de que o seu caminho estava encerrado. Alguns pensamentos são becos sem saída. Pensou que não havia nada a ser feito, pensou na família, noutras profissões, em assistir a um filme ou série, em não ler por tantos dias [ou semanas]. Ela pensou que fazia tempo que não tantas coisas [enviar relatório do estágio]. A ponte diante dela, naquele dia, dentre tantos papéis, cadernos e livros pelo quarto, tinha a medida da procura e do reencontro com um antigo desenho a lápis [e muita borracha] feito na adolescência. Nessas travessias, encontramos o que não procuramos. Uma flor na rachadura do betão é imagem cliché porque repete-se incessantemente na contundência daquilo que ela própria revela; sim, será ali mesmo, justo onde não esperamos, que nascerá algo querendo viver. Naquela noite, enquanto as luzes do quarto contrastavam com o brilho do ecrã, ela assistiu a um documentário que afirmava que as pontes deveriam ser bonitas. Engenharia, construção civil, alturas, taxas de suícidio [enquanto resvalava a pensar no que uma Universidade constrói, na construção da sua civilidade, enquanto resvalava]. Pontes de aço ou concreto, revoluções na história das civilizações, incríveis, mesmo que pequenas quando diante daquelas que unem pessoas e átomos, células e corações. Não seriam sempre físicas, ela confirmava, mas estariam sempre entre. — E eu vou tentar escrever esse texto, que é o meio do caminho entre o que você está trazendo e como eu me encontro com você — ele disse, confiante na névoa do caminho, no bosque que parecia ser aquela conversa. Há uma ponte à frente, mas a frente é sempre para onde olhamos. Olho para dentro e lá está uma. Olho para trás, outra frente. A ponte não está num ponto específico. Não é bem feita do tempo. É ponte vertical e seus degraus parecem empilhados em si mesmos; é ponte horizontal e seus degraus parecem deslizar para dentro de si mesmos. A imagem dessa ponte-ilusão-de-ótica. Quanto mais caminha por essa ponte, mais você desce e simultaneamente subiria; essa ponte é a profissão que você escolheu. A imagem dessa ponte-ilusão-de-ética. Foi o esforço de lembrar – exigido no depois – que inventaria essa construção que convencionamos chamar de ponte [a tríade passado-presente-futuro aborrece a possibilidade de uma relação outra – e melhor – com a vida]. Esta não é uma história que acaba ao ser contada. A parte longa de cada história são as tentativas, mas estas quase sempre são substituídas por certezas apressadas. Tentativas demandam a carne dos espaços. E o bonito delas é que sabem acabar. Tentativa é tijolo, palavra. Poderíamos construir um abrigo [moletom] por tanto tentar. Ainda assim, no meio da praça, livre e esvoaçante, olha ali outra tentativa. — É um diálogo — ela afirmou como quem sugere, sugeriu como quem já soubesse. E mesmo quando você pensa em saídas, em terminar ou defender algo, ainda assim, você estará na ponte, sem saber se ponte é um ponto no espaço ou se ela é você. A imagem da ponte não oferece outra saída, senão o outro lado dela própria [não se esquecer da possibilidade do salto]. Mesmo com bifurcações, tripartições, uma vez dentro da ponte, é ela que determina por onde você sai, caso escolha sair. [Mais tarde, se o mundo precisasse de outro nome, você sugeriria que ele fosse rebatizado como Planeta Ponte. Mais tarde, se o mundo precisasse, você sugeriria Planeta Fuga]. Chegar mais cedo a um compromisso que você poderia simplesmente faltar, escreveu um filósofo, seria um modo crítico de pertencer ao nosso tempo. Aderir ao tempo, mas a ele resistir, oferecendo ao tempo que corre alguma resistência mais lenta. Mesmo que chegar com antecedência não seja em si um grandioso evento, ainda assim, é um tijolo ou vértebra [inebriada pelo pensamento-ponte] na cadeia dos acontecimentos. Certos fenómenos não estão presos a um sítio específico, mas se manifestam ou têm influência em múltiplos lugares sem depender de qualquer proximidade física. Quer dizer que aquela travessia pode continuar depois e para além dela; que a construção profissional não começa ali nem lá se encerra; que os encontros já tidos ainda podem ser visitados e celebrados [em qualquer ponto de qualquer ponte, seria preciso calma para refazer o percorrido e se posicionar, outra vez, no instante hoje ultrapassado]. — Só depois […] é que voltei a desenhar um pouco. Por exemplo, tenho aqui […] um dos melhores que fiz até agora e não faço ideia como desenhei […] não sei mesmo. E muitas vezes as pessoas costumam dizer que eu desenho muito bem. Eu não desenho bem, porque não aprendi técnicas. Eu aprendi pela experiência. Essa foi a primeira experiência que tive de “eu criei algo” […]. Lembro que usei muita borracha, muita […] e quando comecei a perder esse medo de “eu não consigo fazer as coisas bem” e comecei a fazer algo, percebi que “eu sou capaz”. Era um medo que eu sentia, das minhas experiências anteriores, que me dizia que eu não conseguia fazer […]. PROGRAMA DE ESCRITA Diogo Liberano realizou uma conversa com Axelle Ribeiro no dia 7 de agosto de 2024, às 14h30, via Zoom, ele no Porto, ela em Coimbra; de 8 a 18 de agosto, escreveu uma primeira versão desse texto; de 19 a 26 de agosto, tal versão foi lida e comentada por Gustavo Colombini; de 27 a 29 de agosto, Liberano retrabalhou o texto; por fim, em 30 de agosto, os dois finalizaram juntos esse texto .
- Que as salas de aula tenham muitas janelas
A partir de uma conversa com algumas integrantes do NAVIO (Núcleo Artístico de Vontades Inusitadas e Outras) — Então, como arquivar um navio? — Era o que estava a falar, só que de um jeito menos objetivo. — Antes, acho que posso retomar a discussão anterior. A relevância da formação que tivemos é justamente essa: estarmos juntos. Estarmos aqui, juntos, a pensar sobre a relevância da formação que tivemos. Olhar pra esse ponto de cruzamento que é uma formação, a diversidade das urgências ali reunida, a própria existência em partilha. Qualquer tipo de formação, qualquer tipo de licenciatura é isso: pessoas a coexistirem, a partilharem as aflições do mundo lá fora. — O mundo lá fora, olha que curioso. Como se estivéssemos apartados do mundo. — Dois mundos. Nenhuma ponte entre eles. — Como se estivéssemos sendo protegidos. Será que o ambiente ideal para o aprendizado é esse? Será que essas são as melhores condições de temperatura e pressão? — E depois o tropeço. O empurrão pro mundo lá fora, o jogo económico. — Acho que tudo isso é sobre as condições da formação. Antes do tropeço, antes do empurrão, parece haver esse treinamento do corpo, os estudos, as referências, o académico, os saberes, os atos de comunicação, os desafios trazidos pelos amigos, os estímulos provocados pelos professores. O artista forma-se a si mesmo, não? Claro, sempre provocado por algo, por alguém, por alguma coisa. O artista em formação sabe provocar-se a si mesmo? — Penso que depois da formação, vem isso: uma necessidade de aprender para além do que foi aprendido. — Ou desaprender o que foi aprendido. — Aprender melhor o que foi aprendido, diria. Acredito nesse acúmulo. O artista em formação é um ser em treinamento. — Quero voltar ao que foi falado, agora não sei mais quem mencionou isso, mas quero voltar ao que foi falado sobre condições de temperatura e pressão. De qualquer forma, associo muito a minha formação a uma soma de referências e de trocas com pessoas que, por motivos particulares, escolheram estar ali ao mesmo tempo em que eu estava. Haveria aqui, pra mim, algum dado estranho de coincidência, mas não deixaria a conversa seguir por esse caminho. — O próprio teatro como formador do teatro. — A sensação de algum espetáculo qualquer ser ele mesmo uma “aula”. — E essa aflição contínua. Como me é marcante esse estado de espírito! Imagino-me a olhar pro fim da minha formação profissional e já saber, de antemão, que a minha insistência e o meu desejo deverão, a partir daquele momento, estar sempre renovados. — Desejo ou vontade? — Ela disse “insistência”. — E daí, a pós-formação. Aquele empurrão que já mencionamos. Veio-me na cabeça aquela imagem de alguém preso muito tempo dentro de uma sala escura, de um porão e que, de repente, é colocado pra fora aos pontapés. Então, encontra-se ali no mundo de fora, com as mãos erguidas em direção ao sol, tentando bloquear a luz solar para tentar ver alguma coisa à frente. — Ou o contrário disso. Posso reescrever a sua frase? — Como assim reescrever? Isso não é uma conversa? — Acho que foi uma conversa, agora é um texto. — Pode sim, fica à vontade. — Veio-me na cabeça aquela imagem de alguém preso muito tempo dentro de uma sala muito clara, de um porão muito iluminado e que, de repente, é colocado pra fora aos pontapés. Então, encontra-se ali no mundo de fora, com as mãos erguidas em direção ao céu, tentando afastar as sombras para tentar ver alguma coisa de modo sempre limpo e claro e certo. — E a visão demora a reestabelecer-se. É preciso acostumar os olhos outra vez. — E a visão demora a aprender como faz para enxergar a escuridão. É preciso enxergar os olhos outra vez. — Por isso é importante que as salas de aula tenham muitas janelas. — Que as salas de aula tenham muitas janelas, então. — Ou que as janelas tenham muitas salas de aula! — Quem é que continua? — Tenho uma questão objetiva. — Sim. — Como posso ganhar dinheiro com teatro? — Bom, ganhar dinheiro com teatro pode ser desafiador, mas existem várias formas de transformar essa paixão em uma carreira rentável. Aqui estão algumas estratégias que podem ajudar: 1. Atuação em peças e espetáculos; 2. Criação de Produções e Espetáculos; 3. Ministrar Oficinas e Aulas de Teatro; 4. Conteúdo Digital e Mídias Sociais; 5. Editais, Patrocínios e Incentivos Fiscais; 6. Audições para TV, Cinema e Comerciais; 7. Parcerias e Colaborações; Enfim, se você for criativo e persistente, é possível combinar várias dessas fontes de renda para viver de teatro. — E, então, como arquivar um navio? Alguém já quer tentar responder isso? — A pós-formação vem junto com esse abismo. O que se aprende é o quê? A ter um sonho. Uma utopia. O dia a dia é outro, as contas não são pagas com expressão artística. Há trabalhos paralelos, é natural, ingrato e frustrante. Mas é preciso não perder a essência. Não é para ganhar dinheiro. Essa é a dimensão real dessa vida profissional. Ela existe sobretudo para ser não-lucrativa. — Essência. Tenho sérios problemas com essa palavra. Sinto que ela não diz nada exceto reforçar uma conceção meio inerte do que é ser artista. — Uma formação íntima, então. Uma formação de seres humanos melhores. — Nem isso. Nem sempre são eles os melhores seres humanos. — Não é preciso dizer que é ou não é. Pode ser. Pode ser que seja lucrativo. Pode ser que não seja. Pode ser que num determinado momento vá ser lucrativo. Pode ser que não seja sobre lucro. Pode ser. Depende. — Do quê? — Mas é certo que o retorno financeiro é sempre advindo de outras estruturas. É preciso muita articulação do lado de fora para manter o dentro. — É sobre a prática de um teatro pós-ofício, então. — Um teatro pós-ofício? Desculpem lá, eu ouvi a palavra utopia, não ouvi? — Não sei, ouviste? — Sim, um teatro que se faz depois do trabalho. Depois do desempenho básico civilizatório. — E o gesto artístico não faz parte do desempenho básico civilizatório? — Acho que você não entendeu a ironia. — Um teatro pós-emprego. Pós-salário. Pós-civilização. — Inventar um espaço para criar artisticamente sem a necessidade do dinheiro. — Mais uma vez essa história, reparem. O lado de fora e o lado de dentro. — Custa-nos imaginar o teatro dentro do mundo? Em algum momento, ele sempre escapa – ploft! – e vai pertencer a outro. — Custa-nos quanto? Em dinheiro? — É a capacidade que ele tem de criar outros mundos, é isso. — Ele. — Uma vez, durante uma aula, um professor interrompeu a cena de um colega e perguntou-lhe o que ele estava a fazer ali. “O que estás a fazer aqui?”, ele disse. E ninguém disse mais nada até o fim da aula. Acho que, naquele momento, todos nós, cada um de nós, abaixamos a cabeça e tentamos responder pra nós mesmos essa mesma pergunta. O que nós estávamos a fazer ali? — Já estamos a falar do teatro, repararam? A formação virou teatro. — Ou do mercado de trabalho. — Até hoje eu me pergunto o que eu estou a fazer aqui. — Que mercado? Pra qual trabalho? — Não gostava de parecer repetitivo, mas o fim daquela resposta artificial dizia “se você for criativo e persistente, é possível combinar várias dessas fontes de renda para viver de teatro”. Criativo e persistente. Em que momento essas duas qualidades se conectam na vida de um ser humano? Quais profissões pressupõem persistência e criatividade para os seus profissionais? O que eu quero dizer é que tudo isso me pareceu demasiado as regras de um jogo com competidores. Competidores que serão vencedores ou perdedores, nessa conotação. Uma subordinação estranha às leis de competição. Como construir um navio assim? É possível perder esse jogo, não é? — É sim. — É sim? — E “combinar várias dessas fontes de renda” também me chamou a atenção. É preciso combinar várias dessas fontes porque nenhuma é suficiente por si mesma. — Como construir desejo se o sistema capitalista afastou o ser humano daquilo que ele é e daquilo que ele pode? — Não entendi por que a palavra utopia, até agora, não foi mencionada novamente. Foi por que eu havia notado a presença dela naquele momento? — Achas que estamos parecendo muito enraivecidos? — Eu já quis lutar muito contra o capitalismo. Ou melhor, eu já lutei muito contra o capitalismo. — E aí? — E aí o quê? — O que houve? — Nada. — E, desculpem lá, mas são tantos os falsos problemas. Se a nossa formação nos propõe a inventar, a fazer imaginar, por que não assumimos, ou sequer desconfiamos, que podemos estar a criar novos problemas? Problemas sem corpo, problemas sobrenaturais? Alguém já calculou quanta energia gasta-se com as perguntas erradas? — O quanto esse texto também faz as perguntas erradas? — Esse texto, que não é a conversa que tivemos. — Então, como arquivar um navio? — Arquivar um navio para quê? — Navegar um arquivo para quê? — Essa pergunta não faz o mínimo sentido. — Era o que estava a falar, só que de um jeito menos objetivo. — Mas temos um núcleo. A nossa formação trouxe-nos até aqui. — E o trabalho de imaginação é constante e diário. É um caminho de obstáculos. Obstáculos externos e internos, obstáculos entre nós, inclusive. Imaginar não é um exercício mercantil. Não é sobre o tema do momento, o uso das redes sociais como divulgação, o tempo de criação e o de temporada, o facto de enchermos salas com rostos conhecidos. — Criar ferramentas. Experimentar ferramentas. Imaginar ferramentas. E utilizá-las. Desafiá-las ao mundo. — O mundo de dentro ou o de fora? — O mundo. — É uma provocação. — Quero ficar com essa imagem. Situar a imaginação na gestão do grupo, para além da imaginação da criação artística, do tema, da cena, do texto, da narração. Não apenas como um gesto público, poético, mas um gesto administrativo. Um exercício democrático de imaginação que vem antes da arte, por exemplo. — A imaginação tornada pública, por meio de um gesto artístico, é derivada de um exercício íntimo do coletivo. — E manter essa conversa é também um jeito de persistir. — Então, ela continua. PROGRAMA DE ESCRITA Diogo Liberano realizou uma conversa com Catarina Chora, Inês Sincero, Jaime Castelo-Branco e Tomé Nunes Pinto (integrantes do NAVIO – Núcleo Artístico de Vontades Inusitadas e Outras) no dia 17 de setembro de 2024, às 18h, via Zoom; de 18 a 24 de setembro, Gustavo Colombini, a partir de uma gravação em vídeo da conversa, escreveu uma primeira versão desse texto; de 25 a 27 de setembro, tal versão foi lida e comentada por Liberano; de 28 a 29 de setembro, Colombini retrabalhou o texto; por fim, em 30 de setembro, os dois finalizaram juntos esse texto . Saiba mais sobre o NAVIO (Núcleo Artístico de Vontades Inusitadas e Outras) através do perfil do coletivo no Instagram: https://www.instagram.com/companhia.navio/
- Assombrar a convenção
A partir dos espetáculos assistidos, das conversas realizadas e dos textos criados para a Edição 3 d’Esse texto Começar pela ideia dos fantasmas. Imaginar sua possibilidade, cientes de que o lugar que os guarda e expõe é uma história. Considerar que você, espectadora, sentou-se diante de um palco para ver uma história; diante de um arquitetónico livro, eis você, leitora, a ler uma história. Um convívio entre literatura e teatro. Imagino mais, caro amigo, imagino que sobre este palco arde uma lareira. Mesmo sem vê-la, ainda que nela não se queimem as personagens, o palco emana algo invisível para umas, mais evidente para outras. Este algo ou o mistério e seu chamado, ou a fagulha de um gesto pequeno-incendiário. Sentado diante de Sombras , pinçando desse espetáculo algo que o faça continuar a crepitar, o que você me faria imaginar? Começaria assim, amigo: uma mãe e uma filha. A primeira, imbuída dos valores familiares moldados pelo Estado Novo português, acolhe a segunda que, com o marido preso e uma recém-nascida nos braços, é forçada a regressar ao lar de infância. Ali há sombras da ditadura, da morte, da tortura, do medo. A imagem que paira é essa: são duas mães a pensar sobre o que pode assolar o futuro de suas filhas. Diante de Sombras , tenho essa estranha sensação de estar diante de um texto antigo; não apenas por evocar um passado histórico, mas por contar uma história a partir de uma dimensão formal pedagógica. Tenho certeza de que com essa expressão, "dimensão formal pedagógica", ainda não sei o que quero dizer. Mas uma das minhas coisas preferidas aqui, entre as nossas trocas e conceções para a nossa revista, é justamente essa: jogar uma ideia amorfa, uma intuição, uma pista, para que, juntos, possamos desdobrá-la. Pensando na ideia dos fantasmas que, de algum jeito, inaugurou essa nossa terceira edição, faço uma conexão entre esta peça e sua tentativa de revelar seus próprios fantasmas. No caso, são fantasmas históricos de um país, que assombram o presente e o futuro. Ela não nos convoca a desaprender uma verdade histórica, mas sublinha um aprendizado em que não cabem dúvidas. O medo do futuro está sendo dito, não sentido. A dramaturgia tenta me ensinar a contar uma história. Como você sente essas palavras? Ou melhor, você que não viu Sombras , a partir dessas poucas palavras, como imagina esse trabalho? É intrigante imaginar o que não foi visto. Suas palavras me fazem procurar: aquelas duas mulheres, a proximidade dos seus rostos, suas inquietações. Sinto uma leveza provocada pela ausência masculina no palco, mas o medo, paradoxalmente, continua a assombrá-las. O assombro, as sombras. Porque, mesmo sem a presença de homens, o medo persiste? Penso no trabalho de um escritor, na sua paixão pelos hábitos, a paixão por fantasmas históricos, e como essa paixão dificulta a possibilidade de escrevermos outro texto. Quando mencionas a "dimensão formal pedagógica" de Sombras , penso sobre um teatro aprisionado em determinados modos de fazer. O medo que é "dito, não sentido" é consequência inevitável desse hábito no fazer: ele aparece nas palavras, mas não provoca corpo – seja o da atriz ou o nosso, como espectadoras. É um medo intelectualizado, emoção apenas nomeada. A metáfora da ponte, construída no segundo texto crítico desta edição, ecoa: Sombras me parece erguido sobre uma travessia inacabada, o presente condicionado pelo peso do passado, o futuro obrigado a ser frustrado. Mas não há futuro porque não foi possível ou porque o autor não quis? Qual diferença entre fatos da vida e atos de uma dramaturgia? Também no segundo texto desta edição, especulamos que lembrar não é um simples ato de arquivo, mas de invenção. E talvez o que Sombras me impeça, enquanto imagino o espetáculo diante de mim, seja inventar novos modos de atravessar a história já contada. Da mesma forma como a história recente de Portugal não acaba ao ser contada, será que o medo desaparece simplesmente por ser nomeado? Com isso em mente, seria possível, caro amigo, que você descrevesse um ou dois momentos de Sombras , valorizando a dimensão espacial e visual dos acontecimentos escritos no palco? Antes desses convites, amigo, gostava de reverberar esse seu pensamento sobre um teatro aprisionado em determinados modos de fazer. Pareceu-me estranho, de repente, que a ideia da “dimensão formal pedagógica” nos levasse a essa compreensão. E isso tem necessariamente a ver com algo que esta edição tem investigado: o binômio aprender x desaprender. Podemos tirar daí uma primeira conexão fragilizada entre pedagogia (ou formação artística) e “aprendizado” de como fazer. Como se “aprende” modos de fazer? (Onde ou como terão nos ensinado um modo de fazer?). Ou ainda, completando: como se “aprende” modos de fazer, uma vez que cada matéria, cada contexto, cada tema prescinde de um modo próprio e íntimo? Sinto Sombras nessa problemática: aprisiona-se o medo do passado no passado e, de modo análogo, as convenções dos modos de fazer teatro me impedem de trazer aqueles momentos para perto de mim. (Aliás, há tempos não pensava nessa palavra: “convenções”). Preocupo-me com a sensação falsamente aliviante que me diz “que bom que esses já são tempos idos”. Aquela experiência, em mim, é uma ilha isolada: tem um começo, um meio, um fim. E realmente acaba. Não permanece comigo, não sai daquele teatro agarrada ao meu corpo, não atravessa as ruas, não me acompanha até a minha casa. Fico imaginando, agora, que essas duas palavras (“fantasma” e “ponte”) que estão em ronda nesta edição, possam formar uma imagem interessante para o pensamento sobre pedagogia e formação artística. Volto, então, aos seus convites com essas duas palavras na cabeça. O primeiro momento que gostava de descrever é o instante em que sentamos na cadeira da plateia, respiramos fundo e começamos a tatear com os olhos o que é aquilo, o que pode vir daqueles objetos, daquela figura já em cena. E minhas primeiras respostas não são variadas: é um passado facilmente percebido como passado. Uma casa antiga, objetos antigos, sons antigos, de um telefone antigo, gestos antigos, dos dedos a rodarem os números para uma ligação telefónica antiga. E assim seguiremos: uma mãe dura e conservadora nos sinais, elegantemente composta para ser uma figura fechada, de poucas afetações. Diante da chegada surpresa da filha, nem mesmo com a presença também surpresa da neta recém-nascida, ela desestrutura sua pose. Parece não haver fantasmas suficientes para assombrá-la. O segundo momento que gostava de descrever é o momento em que a cenografia da casa se reorganiza para dar lugar a um ambiente hostil de aprisionamento. A filha termina presa pelas suas ações clandestinas e revolucionárias. A iluminação é avermelhada, a mãe revela que acompanhou as peripécias rebeldes da filha por estar em contacto direto com autoridades de polícia. Algo ecoa nessa traição intergeracional. Nesse momento, a transição cenográfica aprofunda ainda mais o abismo entre passado e futuro: as possibilidades de pontes entre tempos encerram-se com a alusão à desistência da filha em permanecer naquelas condições de aprisionada. Ela mesma não consegue imaginar outro futuro; e eu, diante daquela recusa, encerro a minha participação na história. Instigado por esse seu convite descritivo, amigo, fiquei querendo te perguntar (ou também te convidar a pensar) na conexão entre essas duas palavras diante de nossa mais recente edição: pontes e fantasmas. Se você pudesse inventar uma imagem com essas duas ideias, como ela seria? Permito-me imaginar que fantasmas são pontes e que estamos a atravessá-las. Seja com os pés no chão, com as pegadas do pensamento, com os batimentos do coração. E pontes são fantasmas pois nos assombra a possibilidade de sermos transformados, de não estarmos prontos, assombra-nos a insegurança de não sabermos integralmente algo. Quando especulamos, no terceiro texto desta edição, que “[…] é importante que as salas de aulas tenham muitas janelas”, creio que antevíamos a janela como uma moldura pela qual vemos o movimento. Aqui, para nós, o movimento é o emblema da transformação. E se fantasmas são pontes é porque, insistentemente, convocam-nos para atravessá-los, ou seja, para nos dedicarmos ao movimento da nossa própria transformação. Fantasmas são pontes porque fraturam a estabilidade do espaço, ora sendo verticais, para o fundo e ao dentro, com degraus derretidos, escorrimentos, ora sendo pontes que nos escorregam por anos, num instante, são pontes fantasmas por serem convites para o emaranhamento entre tempos; do mesmo modo como só são pontes se forem movimento, você já viu um fantasma parado, caro amigo? Voltemos ao dilema da expressão “dimensão formal pedagógica”. Aqui, rememoro que a criação de novos modos de fazer, como afirma um importante dramaturgo brasileiro, é resultado compulsivo da necessidade de expressão temática e não somente a procura artificiosa de novas formas: “a originalidade como sofrido ponto de chegada, e não ponto de partida.” Quando ouço “dimensão formal pedagógica”, no caso de Sombras , não entrevejo nem a fundação de um novo modo de fazer nem sequer a repetição de modos já estabelecidos ou reconhecíveis; sinto um enrijecimento da intenção pedagógica. Trata-se de um relato conclusivo ou de um convite à experiência das contradições que sustentam os ditos factos históricos? Em uma peça de teatro, existe a possibilidade de vermos uma questão através de um ponto de vista que escape ao senso comum? Em uma peça de teatro, existe a possibilidade de algo ser transformado, ou seja, há nesse teatro algum movimento? Faz pensar que o binômio “aprender x desaprender” deva ser ultrapassado enquanto oposição para ser reescrito enquanto adição: aprender + desaprender, afinal, aprender pressupõe desaprender, e desaprender propulsiona o aprendizado. Se a pedagogia artística está mais preocupada em ensinar do que desensinar, perdemos. Perdemos a frágil e delicada perceção do gesto artístico como incessante exercitação do posicionar-se: assumir posição, criar uma forma provisória, não total nem totalitária; tomar outra posição, compor outra resposta contextual ao desafio diante de mim. Aprender como fazer arte, aprender arte no gerúndio, movimento e transformação. Entre fantasmas, pontes, janelas e saberes que escapam, amigo, queria te pedir que olhasse para a nossa revista. Você conseguiria identificar três fantasmas que a revista esteja a cruzar neste momento? Meu primeiro pensamento, amigo, foi identificar a nossa prática a partir de três movimentos que nos assombram sempre, fantasmas que estamos sempre a cruzar, a cada texto, a cada edição. O primeiro fantasma mora na sensação da edição. Quero localizar a sensação da edição no nosso gesto primordial para a construção de um texto: a escolha. Todos os nossos textos nascem “a partir” de algo; são textos, assim, interessados em investigar como a escritura artística desse algo convoca a continuação de outras escritas. Um ponto de partida, no entanto, é imprescindível. Ele é qualquer? Ele, por si, já carrega uma intenção? Digo isso porque nossa terceira edição é a primeira a desvendar-se num tema, num assunto que funciona como uma ponte-fantasma (fantasma-ponte?) que nos ajuda a caminhar. O segundo fantasma mora na sensação da leitura. Essa, por sua vez, já está localizada no corpo que vê, no corpo que usa o tempo que tem para ser leitora de algo. No caso, os nossos corpos. O que é uma leitora? O que usa uma leitora ao ler? E o que mais ela faz que não apenas ler? Sempre achei instigante a nossa posição-leitora: não aquela que espera pelo texto a ser lido, mas aquela que cria enquanto lê. O terceiro fantasma mora na sensação da escrita. É quando a leitora precisa escrever aquilo que leu. Mas como ela escreve uma leitura? Como ela escreve aquilo que escapa da leitura e que, ainda assim, parece querer continuar? É o fantasma que cruzamos quando assustamos o próprio fantasma, ao transformar leitura (por escrito) em mais leitura (por escrever): prolongar a vida do processo artístico, a partir do texto que se escreve. Por fim, não acreditamos no texto crítico como armadilha para esses fantasmas, nossos textos críticos querem celebrá-los; afinal, o que os fazem ser o que são é exatamente esse instinto incapturável que partilham, seus formatos incompletos, escorregadios. É como sentir a presença de algo sem vê-lo. Ou perceber que quando encontramos o nome de algum sentimento, ele escapa e não está mais lá. Sinto, às vezes, em muitas críticas que leio por aí que elas intencionam capturar os fantasmas e exibi-los como uma descoberta. Descobertas, eles jamais serão porque ali já estavam – e tampouco podem ser capturados. Nossa tarefa é seguirmos permanentemente assombrados. PROGRAMA DE ESCRITA Gustavo Colombini assistiu ao espetáculo Sombras , com dramaturgia de Miguel Falcão e encenação de Ana Nave, no dia 6 de outubro de 2024, às 19h, na Sala Estúdio do Teatro da Trindade, em Lisboa. De 9 a 30 de outubro, através de um documento de texto compartilhado, Colombini e Diogo Liberano escreveram um diálogo a partir do seguinte esquema: Liberano pergunta a partir do primeiro texto da edição; Colombini responde a partir de Sombras e faz uma nova pergunta ; Liberano responde a partir do segundo texto da edição e faz uma nova pergunta; Colombini responde a partir de Sombras e faz uma nova pergunta ; Liberano responde a partir do terceiro texto da edição e faz a última pergunta; Colombini responde . Por fim, em 31 de outubro, os dois finalizaram juntos esse texto .
- Cena 4: Da paixão pelo hábito da indiferença
Algo que fica da cena performativa contemporânea de Portugal “A que tempo pertence um trabalho artístico?”, era com essa frase que o performer começava a sua apresentação. Depois completava: “Encenar um texto com décadas de idade torna esse texto contemporâneo? Citar o passado sem esforço algum para revirá-lo e provocá-lo, ainda assim, é uma manifestação poética?”. Depois, ele abria um caderno e lia algumas frases aleatórias para a plateia. A primeira frase era: “Sou uma viajante perdida no mar de informações, afogada por ondas incessantes de dados que me arrastam. Sou levada sem direção por correntes imprevisíveis de notícias e ruídos.” A segunda era: “A tempestade de palavras me envolve, machucando minha lucidez e me impedindo de pensar.” A terceira era: “As questões deste momento parecem vastas, e as vozes discordantes tornam difícil ouvir qualquer princípio de verdade. Tento escapar das armadilhas das opiniões, mas sua inundação me arrasta de volta, impedindo qualquer fiapo de compreensão.” A quarta era: “Busco um sítio para descansar meus olhos, onde a paragem me permita assentar minha mente, mas sinto-me cansada, e não é simplesmente um cansaço.” A quinta era: “Todo dia de manhã, eu desembarco num país estrangeiro. A língua é familiar, mas desconheço as pessoas, os assuntos. Queria voltar para o meu país um dia. Se eu lembrasse qual é.” A sexta era: “…” G.O.L.P. - Fotografia de Maglio Pérez Em seguida, o performer pergunta: “Pode um artista hoje em dia dar-se o direito de não se preocupar com as reverberações que a sua criação artística produz na época em que está? Em que medida ao dar-se esse direito, isso não se tornaria um profundo e autoritário exercício de indiferença?” “Indiferença a quê?”, alguém da plateia levanta-se e diz. Ouvem-se alguns instantes de silêncio. Depois a mesma pessoa volta a levantar-se e diz: “Não sou alguém da plateia”. E continua: “Tenho um nome, uma história e muitas opiniões. E o performer retruca: “Mas ninguém aqui chamou-lhe de ‘alguém da plateia’”. Peço desculpas, fui eu que chamei. “Indiferença a você”, o performer continua. “Veja: um exemplo da indiferença de um artista pode ser observado quando ele insere no próprio trabalho que faz uma crítica à natureza alienante de seu próprio trabalho. Ao se tornar o foco de suas próprias piadas, o artista parece buscar proteção contra críticas externas, antecipando-as.” A plateia ri. A plateia para de rir. A plateia faz silêncio. A plateia volta a rir do seu próprio silêncio, depois para de rir novamente. A plateia, então, cai no sono. Dorme por alguns minutos e depois acorda. A plateia está séria. “É isso que está a se passar aqui!”, alguém da plateia levanta-se e diz. Alguém com nome, história e opiniões. “Isso que está a se passar aqui diante de nós pode ser visto como uma forma de você, dito artista, esquivar-se de suas responsabilidades! Suas responsabilidades de artista!”. O performer olha em silêncio. “Faça-nos a pergunta!”, a plateia grita. “Que pergunta?”, o performer responde. “Você sabe qual pergunta!!!”, a plateia retruca. O performer, então, respira fundo e acata o pedido: “Ok! Quais são as minhas responsabilidades como artista?”. A plateia fica em silêncio. Todos devem estar a pensar: “Mas em que época estamos?”. Performer e plateia, então, encaram-se em um longo silêncio, por um longo tempo. Nenhum telemóvel toca, nenhuma garganta tosse. Então, começam a chorar juntos por alguns minutos. Em seguida, caem todos na gargalhada diante daquela situação. E, então, voltam a ficar sérios. Levantam-se, abraçam-se e despedem-se. As Bruxas de Salém - Fotografia de TUNA/TNSJ LEIA TAMBÉM Cena 1: Da fronteira entre corpo e pensamento Cena 2: Da mistura entre autoridade, história, memória e simplicidade Cena 3: Da desconfiança do que pode o teatro Cena 4: Da paixão pelo hábito da indiferença PROGRAMA DE ESCRITA Gustavo Colombini, a partir da leitura e do estudo de textos críticos da Esse texto ( O teatro como indiferença , Hashtag e Planeta melancólico ), compôs uma reflexão buscando manifestar uma questão central da cena performativa contemporânea de Portugal. Os três textos estudados pelo autor foram atribuídos de modo aleatório, mesclando textos das três primeiras edições da revista. Após criar o texto, Colombini e Diogo Liberano fizeram uma leitura que gerou posteriores aprimoramentos na escrita. Por fim, juntos, os editores buscaram identificar e nomear a questão abordada, fazendo dela o título desse texto.
- Cena 3: Da desconfiança do que pode o teatro
Algo que fica da cena performativa contemporânea de Portugal Para mim, o mais importante na tragédia é o sexto ato: o ressuscitar dos mortos das cenas de batalha, o ajeitar das perucas e dos trajes, a faca arrancada do peito, a corda tirada do pescoço, o perfilar-se entre os vivos de frente para o público. […] Wisława Szymborska — Desejas algo. — Antes ter dito boa tarde. — Aqui é sempre noite. — Não tentarei esconder. — Seu espanto é visível, e delicado. — Lembrou-me uma poesia, um trecho diz que “o mais sublime é o baixar da cortina / e o que ainda se avista pela fresta: / aqui uma mão se estende para pegar as flores, / acolá outra apanha a espada caída”. — E daí? — Pensava no som da espada a cair. — Aqui já muitas caíram. — Fora daqui outras são erguidas. — Tens as mãos enfiadas nos bolsos do casaco. — Tens as cortinas abertas hoje. — Elas sabem fechar. — Meu espanto, não tentarei escondê-lo. — São apenas impressões sobre o teatro. — A vida em acontecimento. — E o que mais? — Em potência, quero dizer, a vida em potência. — E vossa teimosia de usar as mesmas palavras. — Incomoda-te eu dizer “a potência do teatro”? — Você morrerá, mas eu continuarei morrendo. — Preferes “a urgência do teatro”? — Imagine que há alguém ali, sentado, a ver teus passos sobre esse chão de madeira. O que pensas que tal pessoa veria? — Não sei, talvez, talvez visse a vida em potência, olha aí, o vício, eu percebo, a vida em potência não seria o que essa pessoa veria, mas ela veria algo, um ser, eu, alguém, ela veria alguém a fingir, não no sentido ruim, no sentido bom, foda-se, quero dizer, alguém a representar, foda-se, sinto que todas as palavras que digo são indevidas, não importa, veria algo vivo, percebes? A pessoa sentada na plateia a olhar para este palco veria algo vivo, percebes? — Percebo. É mesmo na vida onde mentiras acontecem. Os Outros - Fotografia de Estelle Valente — Estive numa aula faz dois anos. Ou um. Faz quase dois anos, enfim, e a investigadora convidada disse uma coisa intrigante. — Há farpas saindo das tábuas do proscénio, atenção. — Não faz mal, ela disse: “você disse escrever para teatro, mas nunca entrou num teatro apenas para ter com ele uma conversa, não é mesmo?”. — Imaginar um espaço como ferramenta; este sítio como um microfone. — Entrei aqui, portanto, apenas para observar. — Mesmo o silêncio, aqui, microfona. — Por isso comparecer. — Por isso, aquilo. Por aquilo, ainda hoje isto. — Não faço um simples elogio a um simplório anacronismo. — Simples, complexo, frio, quente, passado, futuro, tudo palavra, como antes. — Estás a zombar de mim? — Não aplaudimos palavras de ordem nem certezas, não seguimos tendências ou modas, aqui há sempre muitas maneiras para dizer o mesmo. — Tenho pensado que trabalhamos tanto para fazer uma peça de teatro e, no entanto, quando estamos sobre um palco, a apresentar a tal peça, é como se não conhecêssemos o sítio onde pisamos. — A tal peça sobre o palco, sempre a elogiar imaginações, possíveis e impossíveis, a peça tal como um modo demasiadamente humano de se livrar da responsabilidade que deveria ser desejar, ou seja, dar a ver imagens. — Precisava de algum exemplo. — Precisava ou precisa? — Tens um horrível senso de humor. — Acenderam uma fogueira, veja. — Era cenográfica? — Tinha fogo, imagine. — Mas de papel? Quero dizer, não papel a queimar, pergunto se o fogo era representado com ventoinhas e papeis coloridos, a flamejar? — E se assim fosse, não queimaria? E ao fogo nada mais é possível que não apenas queimar? — Achei que estivéssemos a conversar. — Não estás pronto para confiar no teatro. Última memória - Fotografia de Estelle Valente — Outro exemplo. — Outro exemplo? — Outro: aquela janela, a que já não podemos ver. Pois bem, ela foi quebrada. — Quebrada com uma pedra? — Quebrada com um sopro? — Isso não é mesmo uma conversa. — Isso, ao menos, não é uma conversa entre você e outro alguém. — Isso é uma pedra, sendo fatiada ao meio. — Isso é um problema, sendo atravessado. — Isso é um, ou seja, isso é um diálogo, não é um diálogo? — És esperto. — E velha. — És charmosa. — Um velho charmoso. — Um diálogo, ou seja, um através de, um por meio de… — Um por meio das palavras, por meio do discurso. — Um através da razão? — Atravessamento da razão. — É isso que escuto. — É o que digo. — E é isso que penso. — Observe que mesmo o modo como penso. — O modo de pensar. — Aqui dentro o pensar funciona de outro jeito, aqui dentro. — Quisera eu morar dentro de um teatro. — Quisera meu eu não ser apenas eu mesmo. — Queria fazer uma pergunta. A artista caminha, cabisbaixa, sobre o espaço vazio e com cortinas abertas. — Se muitas janelas já foram quebradas aqui, posso ainda abrir o alçapão? O teatro responde, de um jeito ou de outro, o teatro sempre responde. — O alçapão: há sempre algo não dito, mesmo depois de tantas palavras. Saiba: no momento em que questionas, o teatro já cá está. LEIA TAMBÉM Cena 1: Da fronteira entre corpo e pensamento Cena 2: Da mistura entre autoridade, história, memória e simplicidade Cena 3: Da desconfiança do que pode o teatro Cena 4: Da paixão pelo hábito da indiferença REFERÊNCIA SZYMBORSKA, Wisława. Poemas . Seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. PROGRAMA DE ESCRITA Diogo Liberano, a partir da leitura e do estudo de textos críticos da Esse texto ( Último socorro , Do fazer imaginar e Que as salas de aula tenham muitas janelas ), compôs uma reflexão buscando manifestar uma questão central da cena performativa contemporânea de Portugal. Os três textos estudados pelo autor foram atribuídos de modo aleatório, mesclando textos das três primeiras edições da revista. Após criar o texto, Liberano e Gustavo Colombini fizeram uma leitura que gerou posteriores aprimoramentos na escrita. Por fim, juntos, os editores buscaram identificar e nomear a questão abordada, fazendo dela o título desse texto.
- Cena 2: Da mistura entre autoridade, história, memória e simplicidade
Algo que fica da cena performativa contemporânea de Portugal Girafas - Fotografia de Jorge Gonçalves Antes de dormir, escreve no papel: Três tarefas para a cena contemporânea e dezoito derivações (digressões). Exibir o passado no presente e apresentá-lo ao futuro como um animal vivo. Olhar a autoridade nos olhos. Desaprender com a simplicidade. Exibir o futuro no presente e apresentá-lo ao passado com simplicidade. Olhar o animal vivo nos olhos. Desaprender com a autoridade. Exibir a autoridade do passado no presente e apresentá-la a um animal vivo. Olhar a simplicidade nos olhos. Desaprender o presente. Exibir um animal vivo no presente e apresentá-lo como autoridade. Olhar para a simplicidade do futuro. Desaprender com os olhos. Exibir a simplicidade no presente e apresentá-la aos olhos como passado. Olhar o futuro nos olhos. Desaprender como um animal vivo. Exibir os olhos da autoridade e apresentá-los como um animal vivo. Olhar o passado no presente. Desaprender com o futuro. Exibir a autoridade nos olhos e apresentá-la como passado a um animal do futuro. Olhar os olhos da simplicidade. Desaprender com o presente vivo. Pai para jantar - Fotografia de Patrícia Black LEIA TAMBÉM Cena 1: Da fronteira entre corpo e pensamento Cena 2: Da mistura entre autoridade, história, memória e simplicidade Cena 3: Da desconfiança do que pode o teatro Cena 4: Da paixão pelo hábito da indiferença PROGRAMA DE ESCRITA Gustavo Colombini, a partir da leitura e do estudo de textos críticos da Esse texto ( O singelo supérfluo , Animal vivo e A priori ), compôs uma reflexão buscando manifestar uma questão central da cena performativa contemporânea de Portugal. Os três textos estudados pelo autor foram atribuídos de modo aleatório, mesclando textos das três primeiras edições da revista. Após criar o texto, Colombini e Diogo Liberano fizeram uma leitura que gerou posteriores aprimoramentos na escrita. Por fim, juntos, os editores buscaram identificar e nomear a questão abordada, fazendo dela o título desse texto.
- Cena 1: Da fronteira entre corpo e pensamento
Algo que fica da cena performativa contemporânea de Portugal O pensamento não é nenhum meio para o conhecimento. O pensamento abre sulcos no agro do ser. Por volta do ano de 1875, Nietzsche escreve o seguinte: "Nosso pensamento deve ter o cheiro forte de um trigal numa noite de verão". Quantos ainda possuem olfato para esse cheiro? Martin Heidegger Longe do terror ou de qualquer fantasia, aqui temos a imagem de uma cabeça sem corpo. Uma cabeça viva, vivendo sua vida ordinária, sem as marcas de ser mais ou menos algo que, talvez, deveria ter sido. A cabeça sem corpo não é menos nada. Sem corpo, ela existe à revelia de qualquer falta, é sem memória, sem saudade de uma completude originária, porque sendo sem corpo, por dedução, é cabeça sem história. Uma cabeça desanuviada daquele longo desfile de acontecimentos que fazem do corpo uma morada para uma identidade fixa, ainda que trêmula e insatisfeita. A cabeça sem corpo agora caminha pelas ruas. Tranquila, tem suas tarefas, e hoje é terça-feira e ontem nada. E não falamos aqui de pernas ou braços, de como uma cabeça anda ou corre, se tropeça a cabeça – não falamos disso porque, se sabemos que quem tem boca vai à Roma, deduzimos o passeio dessa cabeça que, apesar de não ter corpo, sim, tem boca. É quando a própria ideia de corpo precisa ser revista. E como é bom, a partir de agora, olhar para aquela cabeça e dizer: sim, estamos diante de um corpo em movimento. E aquele corpo tem uma extensão diferente, se comparado a outros corpos. Esta cabeça sustenta e fomenta alguma vida. Ela sorri, se abre, fecha-se, soa, soa e sua pensamentos. Era onde gostaríamos de chegar: nos pensamentos da cabeça. Se é que ela pensa, se é que os pensamentos são dela. Pensar seus pensamentos como gestos inevitáveis daquilo que uma cabeça é: uma cabeça. Mas sem diligência. Pensamentos não pedem licença, não precisam de rigor, não se afligem com a chuva, não tratemos, portanto, os pensamentos como se fossem feitos da mesma matéria dos nossos medos. Pensamentos existem porque vieram e se fizeram. Pensamentos não são ideias. Disse a mãe ao filho, antes que ele saísse para a escola, que o menino estava esquecendo – de novo – a mochila sobre a cama. O menino estalou os beiços, entrou no quarto, pegou a mochila e a colocou, pesada, nas costas. A mãe, como quem diz bom dia, disse que ele só não esquecia a cabeça porque estava costurada ao corpo. Era meio da tarde quando o diretor da escola ligou para o trabalho da mãe (uma grande imobiliária da cidade) para informar que seu filho havia cortado a cabeça num ato de protesto após uma aula de expressão corporal. – Mas como isso é possível?! – bradou a mãe ao telefone. O diretor, calmo: – Senhora, facto é que o menino está bem, mas partido. Quero dizer, a cabeça está aqui, sentada sobre minha mesa, e o menino também está aqui, sentado sobre a cadeira. A senhora quer falar com quem? – perguntou, receoso de que a questão pudesse causar demasiada impressão. Como se nada fosse - Fotografia de Renato Cruz Santos Na época em que viviam juntas, cabeça e corpo comunicavam-se de um modo que escapava à nossa compreensão do que é ser humano e/ou corpo. Se entrevistada, a cabeça talvez dissesse: – Não percebo a questão. Poderias reformular? – e, somado à ela, o corpo se mexeria, inquieto. Afinal, por que perguntar quando o que se deseja, na verdade, é afirmar? Na aula matinal, a professora não hesitou: – Há sempre o perigo de que um poema pense demais. – e esperou que a turma reagisse. Mas a turma não reagiu, o que não quer dizer que os corpos ali presentes não estivessem gritando. Até que Helena levantou a mão: – Eu sinto, professora, que há outro perigo. Pior que pensar demais é pensar de menos. A senhora não concorda? – E cá estamos nós, sempre a pensar, porque somos cabeças e estamos exaustas de ser expulsas do divinal reino dos corpos que já nem precisam pensar, corpos que debocham do pensamento como se isso aqui não fosse musculatura, que se movem e se dão por satisfeitos porque bom mesmo, dizem, é gesticular as mãos, numa manifestação trivial de baixíssima performance, porque corpo que é corpo só é corpo se se mexer! – disse uma cabeça à outra, ambas jogadas no chão da sala, enquanto alunas preparavam seus corpos para o início de uma aula prática. – Jamais teórica. Agora é tendência: fico sentada o dia inteiro e se tento participar sou tirada da conversa, como se pensar tivesse virado uma impropriedade, e como se uma cabeça só soubesse pensar. Você acompanha meu raciocínio? – perguntou uma cabeça à outra, que balançou a si própria, triste, mas concordante. É com escandalosa arrogância que um ser humano separa a cabeça do corpo, como se o corpo não fosse cabeça, como se a cabeça não participasse. – Como se o arrepio que me toma o corpo não fosse aquilo que é justamente por causa dessa maquinaria que é minha maldita cabeça! – disse Roberta à terapeuta, naquela tarde chuvosa em que pulsava nela um desejo de costura mais forte do que qualquer independência. – “Para o filósofo alemão Martin Heidegger, a separação entre cabeça e corpo não procede porque ele não pensa o ser humano em termos dualistas, como mente versus corpo. Na sua filosofia, o ser humano é um ser-no-mundo, inseparável de sua existência concreta e de suas relações. E é nesse sentido que também o pensamento não pode ser tratado como algo que ocorre isolado na ‘cabeça’, mas sim como um modo de ser que se dá no mundo, em meio às coisas e aos outros.” A Minha Vitória Como Ginasta de Alta Competição - Fotografia de João Peixoto Após ler o excerto acima, foi com desconforto que o professor, já descabelado, pediu a Pedro que ele se explicasse. Pedro largou o pedaço de papel no chão e respirou fundo, estavam todas sentadas no chão da sala após um extenuante treinamento físico. E o professor mirava o menino como se ele tivesse cometido um crime, não bem interessado no que ele diria e mais preparando-se, ruminante, para cortar sua fala caso fosse preciso. – Se trouxermos isso para a questão das artes performativas, que é o nosso trabalho, acho que temos perguntas desafiadoras. – disse o menino, um bocado trêmulo. – Quais perguntas, Pedro? –, arrematou o professor. – Ora, professor, podemos perguntar: como a cena pode evitar essa divisão forçada entre pensamento e corpo? Como podemos criar práticas onde imaginar, sentir e mover sejam inseparáveis? – e a turma, então, ficou em silêncio. E Pedro não tinha respostas porque perguntar não é demandar respostas. Nem Paulo nem Paula tinham o que dizer. Hugo sequer sabia o que pensar, e ainda assim pensava, o pensamento agitado, correndo, já molhado, abrindo frestas e provocando solavancos abruptos na sala confinada que pode ser uma visão de mundo imutável. E a língua do professor, impaciente, querendo transformar palavra em resposta, resposta em faca, querendo matar a dúvida para, em seu lugar, semear o apaziguamento, como quem, mais uma vez, catequiza o outro. – Penso que estamos a falar a mesma coisa, Pedro, ainda que eu não perceba, Pedro, por qual motivo as suas perguntas, Pedro, insistem em se distanciar um bocado daquilo que estamos, inclusive, Pedro, a treinar aqui, Pedro, ou seja, é o corpo que tem de responder, o corpo deve responder, não é a ideia, não é o teu pensamento, percebes? – ao que Pedro respondeu, irascível. – Mas pensar também é um gesto, e o corpo não é um país fora do mapa da mente, mas sim um lugar onde o pensamento acontece e se esbalda, professor, o senhor insiste em falar do corpo, mas fala através da mente, porque é uma coisa só!, e se você se ergue agora, para me provar que o movimento do corpo é algo sem relação com a mente, é mentira, é tudo mentira!, ainda estamos rivalizando corpo e mente! E apesar das exclamações, Pedro não gritou naquela aula. Ele ergueu-se e, logo ao chegar à porta, retornou, pegou sua mochila, outra vez esquecida, colocou-a nas costas e foi direto à casa de banho. Olhou-se no espelho, balançou a cabeça, e sem hesitar, fez o que insistentemente lhe ensinaram. O que acontece quando deixamos que o pensamento invente os pensamentos sem submetê-los à hierarquia do corpo? Talvez fosse necessário retornar à ideia de jogo. Não um jogo arbitrário ou meramente lúdico, mas um onde o corpo experimenta o pensamento sem precisar provar que pensa. Um jogo onde o gesto não se limite à execução, mas se dobre no tempo da imaginação. E se, em vez de cristalizar o pensamento, insistirmos na experiência do pensamento que sua, que se move junto ao corpo sem pretensão de controle? Se todo ato de comunicação é um esforço corporal, que toda ação realizada em cena seja um pensamento encarnado. Se o teatro é jogo, que seja um jogo que amplifique a reflexão, que faça do gesto um desdobramento do pensamento, e do pensamento um movimento imprevisível. Pois, afinal, se o poder teme as pessoas que pensam, não será exatamente porque o pensamento insiste em mover-se? LEIA TAMBÉM Cena 1: Da fronteira entre corpo e pensamento Cena 2: Da mistura entre autoridade, história, memória e simplicidade Cena 3: Da desconfiança do que pode o teatro Cena 4: Da paixão pelo hábito da indiferença REFERÊNCIA HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem . Tradução Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2003. PROGRAMA DE ESCRITA Diogo Liberano, a partir da leitura e do estudo de textos críticos da Esse texto ( A competição desumana , Virar em diferentes direções e Lusophone manifesto ), compôs uma reflexão buscando manifestar uma questão central da cena performativa contemporânea de Portugal. Os três textos estudados pelo autor foram atribuídos de modo aleatório, mesclando textos das três primeiras edições da revista. Após criar o texto, Liberano e Gustavo Colombini fizeram uma leitura que gerou posteriores aprimoramentos na escrita. Por fim, juntos, os editores buscaram identificar e nomear a questão abordada, fazendo dela o título desse texto.